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3 A CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS FRANCISCANAS DE DILLINGEN

5.5 O REGIME DE ENSINO

5.5.4 A confissão

Ao longo do quarto ano primário o ensino religioso que se iniciava na alfabetização, assumia uma orientação específica visando à preparação das crianças para o seu primeiro ato penitencial, quando eram instruídas mais intensamente no conhecimento de si e na ascese a Deus, por meio das aulas de catecismo cujo objetivo era sedimentar na criança a disciplina da doutrina católica pela evitação do pecado em suas três ordens de manifestação: o pensamento, as palavras e as obras. No mês de novembro, realizavam sua primeira confissão, ato de penitência em que se submetiam à pena prescrita pelo confessor; ato confessional em que não bastava abominar o seus pecados, mas acusá-los; ato de submissão em que proferiam algo vergonhoso ao representante de Deus; e ato de controle do confessor sobre o confidente que habitava o mesmo espaço e não raramente exercia na instituição a função de professor126. Aludindo ao princípio segundo o qual o discurso produz o objeto do qual fala (BUTLER, 2001), nos atos de fala da confissão as alunas, ao falarem sobre si mesmas, se autoconstituíam e se autoconheciam, como também se tornavam conhecidas.

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A Congregação sediada em Areia teve como assistentes espirituais: em 1937, o Padre João Coutinho; de 1938 a 1939, o Padre Antonio Costa; de 1940 a 1941, o Padre Emídio Viana; de 1942 a 1948, o Padre Francisco Lima; em 1949, o Monsenhor Jerônimo Cesar. A partir de 1950, por força do contrato celebrado entre o Colégio Santa Rita e a Província da Ordem dos Franciscanos Menores em Olinda/PE, irmãs franciscanas assumiram os trabalhos domésticos no Seminário Franciscano de Ipuarana em Lagoa Seca/PB e os franciscanos mantiveram um Capelão no Colégio, como celebrante, confessor, pregador de retiro e professor. Foram eles: Frei Fabiano Gundling (1950); Frei Leopoldo Plass (1951-1954); Frei Niceto Schaeffer (1954-1955); Frei Vicente Senge (1955-1962); Frei Lúcio Reher (1962-1967); Frei Geraldo (1968-1973). O capelão residia no próprio colégio. (Crônica da Congregação das Irmãs Franciscanas de Dillingen. P. 51, 57 e 86. Arquivo da Província Franciscana Maria Medianeira das Graças, Colégio Santa Rita, Areia, PB).

A culminância deste processo era a Primeira Eucaristia, ritual dos mais importantes no calendário da instituição, que conferia a graça santificante por meio da qual corpo e alma recobravam a pureza, a força e a beleza evanescidas pela prática do pecado. Uma vez atingido este estágio, a criança era orientada a permanecer em estado de graça e o meio mais eficaz para consegui-lo era persistir no sacramento oferecido regularmente na missa dominical, na primeira sexta-feira do mês, em eventos como os retiros espirituais e em celebrações especiais como o mês de Maria, a Festa do Sagrado Coração de Jesus, a Festa de Santa Rita e a Festa de São Francisco. Em ocasiões de vacilação, não sendo possível receber o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo transubstanciado na Hóstia, devia-se comungar em pensamento, como forma de fortalecimento contra o pecado.

Adotada na rotina do colégio, a confissão era um mecanismo de constituição da subjetividade à medida que colocava a individualidade em discussão como condição para a salvação:

[...] a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado; é, também, um ritual que se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente o interlocutor, mas a instância que requer a confissão, impõe-na, avalia e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar; um ritual onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve de suprimir para poder manifestar-se; em fim (sic), um ritual onde a enunciação em si, independentemente de suas consequências externas, produz em quem a articula modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação (FOUCAULT, 1988, p. 61)

Os efeitos deste discurso recaiam na confidente de quem era solicitada a verdade, muitas vezes, a partir de perguntas encadeadas para detectar contradições. Enquanto procedimento disciplinar do dispositivo institucional, a confissão cumpria o papel de subjugar as energias rebeldes, interditar os desejos carnais, evitar a desobediência e conter os discursos ilícitos, ajudando a conformar e homogeneizar as condutas. E, para além destas funções, seu componente catártico e purificador pelo alívio experimentado com o extravasamento dos tormentos interiorizados, ajudava a manter a harmonia no interior do colégio.

Como primícias ao casamento, a Primeira Eucaristia era amplamente explorada na festa sacra, com a veste específica, o Adoremus em capa de madrepérola, o Terço em ouro ou em prata, a vela grande com o decalque do símbolo da Eucaristia, a coroa de flores brancas na cabeça, a procissão das neo-comungantes ao som do côro evocando letras específicas para o

primeiro encontro com “Jesus Hóstia Santa” e a presença das famílias emocionadas, na capela. Terminado o ritual religioso, as famílias distribuíam lembranças e santinhos com dizeres gravados em letra dourada e ofereciam em seus lares rica merenda de biscoitos, doces e bolo confeitado em branco, acompanhado de sucos variados e de bebida gasosa. As mesas eram forradas com toalhas de renda ou de bramante aberto em richilieux ou ainda de linho bordado em branco, em uma pompa que marcava contraste com as cerimônias das escolas públicas, podendo-se afirmar que a festa da Primeira Eucaristia do Colégio Santa Rita na pequena cidade de Areia era um ritual distintivo de classe social.

Tomando como referência as elaborações foucaulteanas sobre a constituição do sujeito, nos é possível situar uma projeção do discurso confessional avançando da função primária de heterocondução para uma governamentabilidade “autônoma”, na medida em que, ao buscarem uma verdade para sua vida, as alunas faziam o exame de consciência, o auto- escrutínio de suas ações, exercendo uma auto-regulação. E, para além da ação sobre si mesmas, aprendiam ainda a exercer uma crítica sobre sua atuação no âmbito profissional e social, elaborando uma estética da existência referenciada no cristianismo católico, com ênfase nas virtudes franciscanas e marianas e no pragmatismo alemão arraigado no espírito das madres.