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3 A CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS FRANCISCANAS DE DILLINGEN

5.4 DISCURSO, SUBJETIVAÇÃO E IDENTIDADES

Ao proclamar a palavra como instrumento capaz de abrir o coração, modelar o espírito e desenvolver as capacidades humanas, o franciscanismo imprimiu ao discurso um caráter pedagógico amplamente explorado no domínio da educação, que veio a constituir um braço importante da congregação. Entretanto, mesmo não impondo restrições à palavra com a severidade observada por outras ordens religiosas, o discurso franciscano para a educação inscrevia-se nos limites impostos pela fidelidade à Revelação como fonte primária da teologia cristã, e nos limites colocados pela própria Ordem, que aspirava conciliar a ação no mundo

com a busca da perfeição-religiosa no silêncio do claustro, excluindo da sua constelação discursiva as enunciações incompatíveis com os seus postulados.

No discurso da revelação, o sujeito é imagem e semelhança da divindade, o que lhe confere superioridade em relação aos animais e subordinação em relação ao Criador. Não lhe compete criar suas leis morais, mas submeter-se à suprema razão universal pela qual Deus dirige o sujeito enquanto substância por Ele concebida. É na imanência com o Criador que a pessoa obtém a direção divina no percurso de sua subjetivação115.

Já na perspectiva foucaulteana, o sujeito não é uma entidade anterior e acima da sua própria historicidade. Ele se constitui no plano das relações de poder e de saber vigentes em seu tempo histórico e manifestas nos espaços sociais em que se insere, nas práticas discursivas e não-discursivas a que é assujeitado, com destaque para a instituição escolar enquanto agência transmissora e legitimadora dos poderes e saberes que o constituem. Enquanto construção histórica, o sujeito é atravessado pelo discurso116 e através dele se manifesta, em um jogo complexo e instável, que o instaura, ao mesmo tempo, como instrumento e efeito de poder

[...] o discurso veicula e produz poder, reforça-o, mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas, também, afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras (FOUCAULT, 1988, p. 96).

Sua produção não é aleatória, senão regulada por procedimentos que lhe afiançam condições de validação, dentre os quais Foucault ressalta a “vontade de verdade” que tem suporte nas instituições e atravessa os planos e objetos a conhecer, os métodos para efetivar o conhecimento, as funções e posições dos sujeitos cognoscentes, os investimentos materiais e técnicos para alcançar o conhecimento. Ao determinar o modo pelo qual a vontade de saber se materializa, a “vontade de verdade” manifesta-se através do aparato do sistema educacional, editoras, materiais didáticos, bibliotecas, laboratórios de pesquisa e demais instrumentos de

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Agostinho (séc. IV, d. C), ao estilo da filosofia dos antigos que buscava a sabedoria na relação direta com Deus, é considerado, dentre os pais da Igreja, o primeiro a levantar a questão da subjetivação na Filosofia, diferenciando semanticamente as perguntas: “Quem sou? – Sei quem sou”; e “O que sou”? – Deus meu criador tudo sabe a meu respeito”. À primeira questão, responde de pronto: Sou um homem. A segunda questão reporta a uma explicitação divinamente revelada, já que o homem é obra de Deus (CONFISSÕES, Livro I, 5-6, 1984).

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Para além da noção de discurso como conjunto de signos redutíveis à língua, os discursos, enquanto “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”, enquanto espaços de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos, são “conjuntos de enunciados que se apóiam em um mesmo sistema de formação”, podendo-se aludir a um discurso religioso e a um discurso pedagógico, assim como aos discursos clínico, econômico, psiquiátrico, mencionados pelo autor (FOUCAULT, 2007, p. 55, 61 e 122).

produção e veiculação do saber, colocando em evidência a relação poder-saber cujos vetores são reciprocamente implicados:

[...] não há relação de poder sem a constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder. [...] os processos e as lutas que os atravessam é que determinam as

formas e os campos possíveis do conhecimento (FOUCAULT, 2008, p. 27).

Em “A Ordem do Discurso”, Foucault (1996) refere-se tanto ao discurso doutrinário religioso quanto ao discurso educacional, fornecendo-nos elementos para refletir sobre o corpus enunciativo vigente no Colégio Santa Rita. Referindo-se ao discurso religioso, menciona sua dimensão coercitiva, ao realizar, sob a aparente aceitação de uma regra e o reconhecimento de algumas verdades, um duplo assujeitamento: “questiona o enunciado, através do sujeito que fala; e questiona o sujeito que fala, através do enunciado (p 42)”. Por meio desta estratégia, “liga os sujeitos congregados a certos tipos de enunciação e lhes proíbe outros; liga os congregados entre si e os diferencia dos outros (p.43)”, inscrevendo-os em relações de poder-saber segundo as conveniências da doutrina. Referindo-se ao discurso da educação, menciona sua capacidade de definir a posição do sujeito no interior da escola e da sociedade segundo a relação poder-saber que veicula, ao traduzir o querer da instituição e do contexto político-ideológico que o sanciona:

[...] todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo[...] O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papeis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes? (FOUCAULT, 1996, p. 44-45).

Em sua analítica do sujeito117, Foucault estabeleceu as maneiras pelas quais os seres humanos se constituem como tal a partir de três modos de objetivação: primeiro como objeto do saber118 no âmbito das ciências humanas, que assumindo a forma de discurso científico,

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Foucault menciona a existência de dois significados para a palavra sujeito: sujeito subordinado a alguém pelo controle e dependência; e sujeito preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento (VEIGA NETO, 2005, p. 136).

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Os estudos sobre o saber, em que Foucault se utiliza do método arqueológico, são representados sobretudo nas obras “As Palavras e as Coisas (1966), “ A Arqueologia do Saber (1969) e a “A Ordem do Discurso (1971),” que enfatizam as tecnologias da dominação e a produção dos corpos dóceis pelas Ciências Humanas. Remetem à articulação da anatomia política do corpo e de biopolítica da sociedade no exercício do poder, sem abertura de

constituem “regimes de verdade”; segundo, como objeto de práticas divisórias de poder119 mediante as quais os sujeitos são individualizados conforme um eixo de normalização e enquadrados objetivamente como saudáveis e úteis ou anormais e delinqüentes, no âmbito dos “jogos de verdade” que os submetem a certos fins de dominação; e, finalmente, por meio de operações através das quais transformam a si mesmos em sujeitos, elaborando uma experiência e uma verdade a respeito de si enquanto sujeitos de desejo, no âmbito das “práticas de si”, efetuando operações sobre seus corpos, suas almas e sua conduta, inferindo sua própria identidade120 (FOUCAULT, 1982, apud PETERS; BESLEY, 2008).

A governamentabilidade, conjunto de práticas pelas quais é possível constituir, definir, organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos no uso de sua liberdade podem experienciar, se dá no ponto de articulação entre as práticas de governo dos outros e as práticas de si. É nesta intersecção que investigamos a constituição das identidades de gênero e profissão das ex-alunas do Colégio Santa Rita.

Dado que não existem comunidades discursivas absoltamente livres de regulações, é possível identificar situações que sinalizam a distribuição, a apropriação e a restrição da palavra tanto para as irmãs quanto para as alunas inseridas no corpus anunciativo do discurso vivenciado no interior do colégio, que lhes conferiam uma posição a partir da qual, ao serem instruídas e reguladas, se constituíram como sujeitos.

Investido da “inspiração divina”, das virtudes franciscanas, do exemplo mariano e de uma suposta superioridade eugênica e cultural alemã, o discurso da educação no colégio devia conduzir as alunas a servirem a Deus, à família e à pátria como esposas, mães e educadoras católicas. As estratégias usadas na disposição de suas enunciações apoiavam-se na hierarquia, que imprimia aos proferimentos da superiora, da diretora e das mestras, poder de verdade inquestionável, e na liturgia, já que os discursos religiosos adotam uma ritualização que determina propriedades singulares e papéis preestabelecidos para os sujeitos que os proferem (FOUCAULT, 1996). Tais proferimentos eram marcados pela intransitividade, de modo que entre a palavra e a escuta não se abriam às alunas possibilidades de replicação.

espaços suficientes para que haja a ação do “eu”. A posição do sujeito não é a de produtor, mas a de produzido no interior dos saberes.

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Tais estudos representam a virada genealógica inaugurada com a obra “Vigiar e Punir,” publicada em 1975, que tem relevância direta para a teoria e a prática educacional, permitindo a problematização de conceitos e práticas relacionadas ao poder, conhecimento, subjetividade e liberdade na educação.

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Este estágio do pensamento foucaulteano é marcado pelos estudos no domínio da ética e da sexualidade, remetendo às maneiras pelas quais o sujeito experiencia a si mesmo nos jogos de verdade em que se acha inserido, abrindo espaços para a autoconstituição ética, pela autodeterminação através das práticas de si, resistindo às estruturas de dominação (PETERS; BESLEY, 2008).

A aspiração de pertença à família franciscana impunha restrições ao uso da palavra. Assim, as postulantes ao longo do noviciado, eram submetidas ao silêncio como forma de discurso através do qual deveriam iniciar-se na doutrina.

Durante o noviciado, período de recolhimento, estudo da doutrina, trabalho espiritual profundo e do exercício consciente do silêncio, da solidão e da oração como formas de abrir um espaço para a ação divina na vida religiosa, a candidata interrompia o curso, retomando-o, em geral, um ano depois (Depoimento oral de Terezinha Pereira de Andrade, ex-noviça do Colégio Santa Rita, em 16/06/2008).

Ordinariamente, para as alunas, o discurso era facultado dentro dos limites disciplinares vigentes e das normas enunciativas exigidas, como: “com licença”, “por favor”, “muito obrigada”, “desculpe-me”, acompanhadas de gestos e atitudes como: a espera pela concessão da palavra, o timbre da voz, a posição de pé e a expressão do olhar de modo a evitar a insolência e a acatar com humildade as enunciações das irmãs. Estes marcadores de restritividade situavam a posição dos sujeitos discentes na distribuição do discurso. As enunciações que conferiam notoriedade nos momentos solenes vividos no colégio, eram feitas por alunas alvas, belas, bem comportadas e de boa condição econômica. Convenhamos que “não se tem o direito de dizer tudo, não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 1996, p. 09).

Em função do lugar institucional que as irmãs ocupavam, da propriedade discursiva que detinham, das suas posições de desejo e da sua capacidade de derivar o discurso em práticas, seu magistério deteve o poder de moldar nas alunas uma maneira peculiar de compreender o mundo e de agir sobre ele. O discurso do Colégio, portanto, constitui uma lente para a objetivação da sua subjetividade, imprimindo-lhes uma marca identitária que podemos abstrair na enunciação da lembrança de formatura que se segue (Ilustração 37).

A mensagem não deixa dúvidas: em que pesasse na constituição do perfil da normalista a excelência da formação teórico-metodológica ministrada no colégio, sua missão comportava uma dimensão de transcendência, um apostolado superior que, além de formar cidadãos e cidadãs para a pátria, deveria salvar almas para Deus. Tal estratégia discursiva que colocava a professora como colaboradora predileta de Deus e esteio da sociedade, como guardiã da moral e da ordem, neutralizava possibilidades de organização enquanto categoria, colocando sua missão coletiva acima da sua condição material.

Afastando-nos da noção de discurso como elemento restrito aos signos gramaticais, acatamos com Foucault (1996), que a construção do conhecimento é produto de discursos encetados no acontecimento e nos poderes que ingerem ao acontecimento, à determinação histórica e às condições de possibilidade resultantes das relações de força que precipitam sua emergência.

O discurso da educação católica foi instituído a partir de condições que lhe permitiram justapor-se e sobrepor-se a outros discursos educacionais no jogo de relações que o enraizaram desde os primórdios da colonização na história social, política, econômica e

Ilustração 37 - Recordação de Formatura de Edézia Gaião – 1948. Fonte: Arquivo do Colégio Santa Rita

cultural do país, reconhecendo-o como exclusiva fonte de orientação moral. Para além de sua credibilidade enquanto saber valorizado no contexto em que se instituiu, seu valor de verdade foi sancionado pelas funções política e disciplinar atribuídas na ordem histórica que aspirava fundir a identidade católica com a nacionalidade brasileira.