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3 A CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS FRANCISCANAS DE DILLINGEN

5.5 O REGIME DE ENSINO

5.5.1 O internato

Ingressavam no internato meninas e moças procedentes das famílias economicamente bem situadas dos engenhos e fazendas do município de Areia e circunvizinhos, mesmo daqueles em que havia colégios de Religiosas como Campina Grande, João Pessoa e Guarabira, e também de municípios do sertão, e de outros Estados. O poder aquisitivo das famílias das internas pode ser aquilatado pela composição do seu enxoval: 12 calcinhas; 04 combinações brancas; 06 pares de meias brancas; 02 pares de sapatos pretos modelo colegial; 01 chinelo para banho, 01 par de sandálias; 06 lençóis; 02 cobertores; 02 colchas brancas; 03 fronhas brancas; 15 toalhinhas higiênicas (para as moças); 03 toalhas de banho; 03 toalhas de

rosto; 03 toalhas de mão; 01 uniforme de educação física; 01 farda em gasimira azul para a diária (saia de pregas com suspensório em cuja alça listras em sutache branco indicavam a série que a aluna cursava); 01 farda de gala em gasimira azul; 04 blusas brancas de mangas curtas para compor a farda diária; 02 blusas brancas de mangas longas para compor a farda de gala; 01 boina de feltro azul-marinho e um par de luvas brancas para compor a farda de gala; 01 maleta pequena com os objetos de uso pessoal; 02 agasalhos; 03 camisolas e 02 pijamas. Afora este enxoval, a indicação para participação em festas e eventos cívicos, requeria trajes especiais, desenhados pelas irmãs Rafaela e Eleonore e enviados aos pais que providenciavam a sua compra ou autorizavam o colégio a adquiri-los, debitando o valor no carnê da mensalidade.

A rotina do internato era rigorosíssima, com o despertar as 05:30 horas, ao som da voz gregoriana da madre Rafaela – “Viva Jesus!”, a que as alunas respondiam, sonolentas: - “Para sempre, em nossos corações”; missa diária às 06:00h, exceto às segundas-feiras, em que era opcional; café da manhã as 06:40h, início das aulas às 07:15h, banho às 11:45h; almoço às 12:20h, após o que as alunas tinham um tempo livre. As 14:20, estudo na “Sala do Anjo”, no primeiro andar do Colégio, sob a supervisão da irmã Mestra e de sua auxiliar. Terminadas as tarefas, as internas se distribuíam nas atividades opcionais oferecidas pelo colégio: língua estrangeira opcional, trabalhos manuais e educação musical nas modalidades: canto ofeônico, piano, harmônio, violino, acordeon, violão e escaleta, que eram ministradas em um nível de profundidade muito avançado; o curso de piano, por exemplo, tinha a duração de dez anos.

Rezava-se ao despertar, às refeições, antes de cada uma das cinco ou seis aulas do curso seriado, antes do estudo, à hora do ângelus e ao deitar às 21:00 horas. O sábado à tarde era reservado para os cuidados pessoais, para a limpeza dos sapatos e para a arrumação milimétrica do armário. O uso de maquiagem era proibido, mas discretamente burlado pelas internas mais vaidosas e indóceis. Aos domingos e feriados, o horário era mais flexível, cumprindo-se a missa, passeios ao ar livre, recreios prolongados, com a projeção de filmes selecionados121 e festinhas promovidas pelas internas do Curso Colegial Normal, através do Clube Lítero-Recreativo por elas fundado com o apoio e controle do colégio; benção vespertina, manhãs ou tardes esportivas em que o colégio recebia rapazes e depois, em oração, continha a efusão das internas.

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No Relatório do Movimento Escolar do ano de 1964, são mencionados: Viagens de Gulliver, O Gigante no Gelo, O Ártico Selvagem, The Sinking of The Titanic, O Salário do Medo, São Vicente de Paula, Rosa de Castilha, Vítima de Sedução, o Gordo e o Magro, Meu filho deve nascer, Branca de Neve e os Sete Anões. Além destes filmes foram mostrados, em 1964, slides sobre Miami, sobre a Terra Santa e sobre as vocações (Arquivo do Colégio Santa Rita).

Particularmente, três aspectos do internato nos chamam a atenção: o recreio, o banho e a separação entre internas e externas no interior do colégio. Em dias de sol, o espaço ocupado pelas internas durante o recreio era a área descoberta no pavimento superior. Quando chovia, ocupavam a área coberta e o pavilhão dos anjos. Em qualquer dos locais, elas estavam sempre sob a observação da mestra e de sua auxiliar. Se as internas ultrapassavam a área destinada ao recreio, eram surpreendidas por um apito indicando “volte”! É que além das irmãs que eram vistas, havia sempre alguém a vigiá-las, como é próprio dos sistemas panópticos nas instituições totais, onde o poder disciplinar é “absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre em alerta e não deixa nenhuma parte às escuras”, mas é também “absolutamente discreto, pois funciona permanentemente, e em grande parte em silêncio” (FOUCAULT, 2008, p. 148). As que desejassem podiam ocupar esse tempo fazendo trabalhos manuais. Por isso, as irmãs responsáveis por aquelas atividades chegavam sempre, com sua cesta de linhas, agulhas e amostras, tricotando, sorrindo, conversando afavelmente, cativando as alunas para tirarem dúvidas e para adiantarem o seu trabalho com vistas à exposição no final do ano, quando os pais vinham buscar as filhas para as férias e podiam apreciar seu desempenho nas prendas domésticas. Ademais, o trabalho era norma de São Francisco a que a irmã Trautlinde Frischholz dava fiel cumprimento em sua lida ininterrupta pela perfeita condução da vida no Colégio, pois os “trabalhos manuais são um grande meio de ocupar as meninas e de discipliná-las”. As ordens religiosas

foram as especialistas do tempo disciplinar, equacionando tempo-ato-atitude global do corpo bem disciplinado que é a base de um gesto eficiente, pois é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago pelos homens; o horário devia conjurar o perigo de desperdiçar tempo – erro moral e desonestidade econômica. (FOUCAULT, 2008, p. 128).

As alemãs não assimilavam bem a efusiva comunicação das habitantes dos trópicos e, neste sentido, o agrupamento em duplas era estrategicamente evitado entre internas e abertamente abordado entre internas e postulantes ao noviciado, como podemos perceber no depoimento de uma atual religiosa brasileira:

A Madre X perguntou-me ao final do recreio: “você contou quantas vezes a interna ‘Y’ pegou na sua mão enquanto conversavam”? A resposta da religiosa que era então postulante: “não, madre, eu não contei. Se eu não gostasse dela, talvez tivesse contado. Mas ela é minha amiga, e está longe da família, necessitando de amparo. É natural que, ao me confiar seus problemas, busque apoio, segurando a minha mão”. (Aluna Z) 122.

Quando soava o apito indicando o final do recreio, as alunas em fila indiana e em silêncio absoluto voltavam às classes (pela manhã) ou à sala de estudo (à tarde). Se identificada uma aluna fazendo barulho após o sinal de silêncio, era severamente repreendida diante das demais. Se não fosse possível a identificação, toda a turma era punida com repreensão coletiva, de modo que nenhum ato de desvio passava impune, nenhum deslize ocorria sem a devida correção para que, por meio de uma educação perfectível, se construíssem profissionais, esposas e mães corretas, eficientes e virtuosas.

Mesmo aos domingos quando saiam a passear pelas ruas da cidade acompanhadas por várias irmãs, perfilavam-se em fila dupla. Nestas ocasiões os rapazes da cidade colocavam-se em pontos estratégicos onde o passeio era mais lento, para paquerá-las e, muitas vezes, recorriam a alunas externas como pombos-correio, para mandar-lhes bilhetes ou recados. Por isso, a perspicácia franciscana inviabilizava a comunicação entre internas e externas, mantendo-as separadas durante o recreio e valendo-se principalmente da administração do espaço, como ocorria na distribuição das alunas por classe, em que as internas ficavam sempre nas carteiras do lado da porta para facilitar a sua saída antes das externas que ficavam do lado das janelas; no centro da sala, demarcando a separação, ficavam as postulantes ou irmãs que completavam sua formação, de cujo lugar deveriam observar toda a turma.

O banho das internas era controlado pelo apito. As alunas em fila indiana esperavam a vez, com sua toalha e seu material de toucador, cujo aroma se expandia no ar penetrando as narinas das externas mais humildes que eventualmente passavam pelo corredor. O apito, na boca da irmã Isabel, marcava o tempo do banho:

apito 1: tirar a roupa; apito 2 : abrir a torneira e molhar-se; apito 3: ensaboar com sabonete (sic); apito 4: tirar o sabonete e lavar-se; apito 5: fechar a torneira; apito 6: abrir a porta, final de banho. Eu achava divertido e interessante. Havia o ritmo da eficiência do bem lavar, com o tempo gasto. Acostumava, desde criança, à rapidez nos movimentos e decisões. Essa rapidez seria válida para toda a vida (ALMEIDA, Z., 2010, p. 134).

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A justificativa para este controle era o elevado número de internas em face do exíguo intervalo de tempo entre o final das aulas e a hora do almoço, o que era verdade, mas não esgotava a intencionalidade da estratégia: a prevenção ao despertamento de sensações prazerosas a partir do mapeamento do corpo. Com o poder disciplinar nasce uma arte do corpo humano, uma política de controle,

[...] uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis (FOUCAULT, 2008, p. 119).

A separação entre as alunas internas e externas, visível em sua distribuição espacial no auditório, na capela, no recreio, nas salas de aula, era desejada pelas irmãs em face de sua responsabilidade para com as alunas, algumas das quais se encontravam internas a contra-gosto, e alimentavam o desejo de fugirem (tentativa que chegou a ocorrer na história da instituição, mas sem sucesso). A influência de alunas externas poderia facilitar-lhes tal intento. Na verdade, ao considerarem perigosas as relações entre internas e externas, ao controlarem as visitas e a correspondência, ao proibirem o contato com o sexo masculino, as irmãs estavam exercendo um controle que era reforçado pela satisfação dos pais em saberem salvaguardada a “honra” de suas filhas. Em uma cidade pequena como Areia, que tinha duas escolas de rapazes (o Ginásio Coelho Lisboa e a Escola de Agronomia do Nordeste) funcionando também em regime de externato e internato, pairava uma energia erótica que não passava despercebida às franciscanas, mas eram jogos de sedução mais sonhados que concretizados.

Como na erótica cortês, o desejo fortalecia-se na impossibilidade de sua concretização. Sua forma possível de expressão eram as serenatas que perturbavam os corações das internas e a rotina das noites no colégio ao ponto de esgotar a tolerância das mestras do internato. A Madre Rafaela, depois de ouvir muitas trovas resolveu aplacar o ardor dos seresteiros com um banho de água gelada em plena madrugada areiense. Alguns daqueles amores “platônicos” resultaram em casamento, enquanto outros terminaram, mas não foram jamais esquecidos... Houve também o caso em que rapazes parentes de internas, em visita ao colégio, se apaixonaram por alunas internas e casaram com elas.

Encasteladas, distanciadas do mundo pelos altos muros do colégio protegidos por São Francisco, Santa Rita, e pelo sistema disciplinar das religiosas alemãs, as sequestradas

internalizavam também o sentimento de uma identidade diferenciada que muitas já cultivavam por pertença genealógica e que era reforçado dentro do próprio colégio por sua participação nos eventos especiais em função das habilidades desenvolvidas através dos saberes artísticos opcionais ofertados pela casa e pelos quais seus pais podiam pagar. Enfim, por serem as pupilas beneficiárias da excelência imputada, nos quatro cantos do “mundo”, ao ensino do colégio, em justiça ao esmerado trabalho das franciscanas.

Muitas alunas ricas, orgulhosas de pertencerem ao colégio, expressavam sentimentos filiais pelas irmãs que exerciam, ao seu modo, uma maternagem. Outras, insatisfeitas com a vida de “sequestro”, não construíam laços e eram indóceis no cumprimento do regulamento da casa. Mascavam chicletes que pediam às externas para comprar, subiam o comprimento da saia, não usavam a combinação, planejavam fugas, confrontavam-se com as madres ao ponto de terem sua matrícula rejeitada no ano seguinte.

A função de mestra do internato era tarefa capital que só perdia em responsabilidade, para o mestrado do noviciado. Madre Carolina foi a primeira mestra do internato maior, de 1939 a 1960, auxiliada pela madre Rafaela e pela Irmã Isabel Florentino. Revezando-se, elas acompanhavam as internas desde o despertar até o adormecer, orientando o cuidado no trajar, no andar, na ordem, na civilidade, na pontualidade, na postura, na higiene pessoal, na etiqueta à mesa, na nutrição, na saúde e na observância do silêncio que, no contexto da ordem franciscana, era uma prática rigorosamente perseguida. O mestrado ao internato era, portanto, tarefa árdua, que levou Madre Carolina a ponderar:

É verdade que o nosso trabalho na Escola muitas vezes é difícil, o caráter do povo é totalmente diferente. Não existe interesse pelo estudo, estuda-se porque é o jeito. As alunas precisam de muita compreensão por parte dos educadores, deve-se ter uma mão firme, mas uma mão de luva. Pode-se conseguir tudo delas, das pequenas e das grandes, quando se procura compreendê-las. Se as tratarmos injustamente, elas podem se enraivecer e se tornar completamente obstinadas. Nossas ex-alunas, pelo menos a maior parte, exatamente as que causaram mais preocupação, permanecem ligadas ao Colégio, partilhando conosco suas dores e alegrias (Carta da Madre Carolina, mestra do internato,123 a Madre Gonsalva Staudacher em Dillingen – Alemanha, datada de 15.08.1946. In: Crônica da Congregação das Irmãs Franciscanas de Dillingen. Arquivo da Província Franciscana Maria Medianeira das Graças, Colégio Santa Rita, Areia, PB).

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Durante o período de 19.06.1942 a 28.02.1954, a Madre Carolina exerceu, simultaneamente, as funções de mestra do internato e Superiora do Colégio.