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3 A CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS FRANCISCANAS DE DILLINGEN

5.5 O REGIME DE ENSINO

5.5.5 O sistema de avaliação

A prerrogativa de avaliar tem sido uma demonstração cabal de poder das instituições escolares sobre o aluno, à medida que se outorgam o direito de aferir até que ponto o ensino converteu-se em aprendizagem. Através da avaliação, o saber do professor afiança-lhe poder para ajuizar e decidir sobre o aproveitamento do aprendiz, aprovando-o ou reprovando-o. Na escola confessional total que aspirava configurar um modelo de sujeito pressuposto como o desejado por Deus, polarizado na dualidade virtude x pecado, a avaliação buscava averiguar também o seu grau de enquadramento àquele modelo e o nível de eficiência do dispositivo acionado para alcançar tal objetivo.

No Colégio Santa Rita, a avaliação era um processo complexo e difuso que permeava todas as atividades das alunas: o perfil religioso, o grau de atenção às aulas, o desvelo e a economia na distribuição da escrita, a qualidade da letra, o nível do discurso, o trato nas

relações interpessoais, a pudicícia na fala, nos gestos e no andar, o cuidado no material escolar, o zelo no traje, o brilho nos sapatos, a limpeza nas unhas e a arrumação dos cabelos. Todos estes aspectos mereciam registro na Ficha Individual e figuravam de forma codificada no Boletim Escolar cujas quatro primeiras notas remetiam à constituição da subjetividade das alunas: a primeira nota, sobre o comportamento, avaliava o proceder e a conduta; a segunda, rotulada civilidade, referia-se à polidez e à urbanidade; a terceira, aplicação, remetia à concentração do espírito na execução das tarefas, e a quarta nota, ordem, aludia à disciplina e subordinação ao regime do colégio (Ilustração 38).

Este conjunto de indicadores127 codificava a subjetividade das alunas, documentando sua individualidade, sancionando sua identidade, permitindo, enfim, a constituição dos sujeitos da educação como descritível, analisável e singularizável à feição de um caso que precisava ser estudado, treinado, retreinado, classificado, normalizado ou excluído. Uma nota abaixo de oito nestes indicadores remetia a uma avaliação sobre a proveniência das alunas,

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Ao longo do período investigado, verificamos mudanças na nomenclatura destes indicadores. No Boletim da mesma aluna referente ao ano de 1964 figuram: “Interesse”, “Responsabilidade”, “Trato Moral” e “Trato Social”.

Ilustração 38 - Boletim Escolar – Curso Colegial Normal 1ª Série Ano 1970. Fonte: Acervo pessoal da ex-aluna Maria Helena Marinho do Monte Silva

pois moças bem criadas não apresentariam demérito nestes itens. Como vimos, é próprio do controle panóptico capilarizar-se, difundir-se e amplificar-se no corpo social (FOUCAULT, 2008). Também para as alunas que faziam aulas particulares de Música como instrumentistas, era emitido um boletim mensal que, além do conteúdo específico, mensurava os citados indicadores atitudinais (Ilustração 39).

O mesmo rigor era aplicado na avaliação dos conteúdos disciplinares. Por isto, o período de provas fazia circular uma energia diferente na dinâmica do colégio, já que o seu resultado determinava uma descrição individual da aluna, uma comparação com as demais e um lugar na distribuição da população discente. Conscientes de que os custos da educação eram altos para suas famílias e que o julgamento das mestras impingia-lhes um estigma individual, ao atribuir-lhes como status sua própria capacidade, e também coletivo, em relação às medidas-padrão a que estavam submetidas todas as colegas, as alunas estudavam, colocavam o livro sob o travesseiro para que durante o sono os conteúdos se registrassem em suas mentes e, na manhã seguinte, à passagem pela capela, pediam iluminação à padroeira Santa Rita. A redobrada vigilância das mestras não impedia totalmente a “cola” que, se comprovada, levava não só a um julgamento negativo no campo do saber, mas principalmente no domínio da moral, com a comunicação aos pais.

Ilustração 39 - Boletim de Música – Acordeon - Ano 1963

As notas alcançadas nos conteúdos disciplinares eram registradas na cor azul quando a aluna obtinha aproveitamento da média para cima e, na cor vermelha, em caso de aproveitamento inferior à média. Representando a interpretação da instituição sobre a aluna, o Boletim Escolar definia sua pessoa, o que assinalava seu caráter decisivo na vida da aluna, pois, como enfatiza Gallo (2003), avaliar é decidir, decidir é dominar, dominar é ter poder. Poder de aprovar ou reprovar, qualificar ou desqualificar, incluir ou excluir. A entrega do Boletim era momento de expectativa e o seu retorno ao colégio tinha prazo definido e só era recebido com a assinatura dos pais ou responsáveis. Nos casos de notas baixas tanto em relação à avaliação atitudinal quanto em referência à avaliação de conteúdos, os pais eram chamados ao colégio para falar diretamente com a diretora e a mestra de classe e/ou do internato. A reprovação não era um fenômeno raro na rotina do colégio, tanto nos exames ordinários quanto nos exames prestados em “segunda época”, sem atenuantes nem ponderações sobre o resultado final emitido.

O sistema de avaliação era correlato ao sistema de privilégios expressos através da premiação e de sua contraparte, o castigo, aplicados em função da obediência ou da desobediência às normas institucionais. Durante muito tempo o colégio distribuiu cartões distintivos e de louvor (Ilustração 40) e outorgou aprovação honorífica. A aluna era aprovada simplesmente, quando obtinha nota de cinco a sete; plenamente, se alcançava a nota de sete a nove e com distinção, quando obtinha de nove a dez, sendo registrado no boletim o lugar que ocupava na ordem de classificação em relação às demais colegas de turma. Nas séries iniciais, era adotada a nota dez nas tarefas escolares, em suas graduações de uma até três estrelas, conforme o merecimento atribuído ao trabalho da aluna.

Desse modo, a avaliação não se limitava a aferir a aprendizagem, mas classificava as alunas por meio de um registro que codificava sua existência. Contestações às notas eram impensáveis, tal a autoridade do magistério franciscano, inspirado nos eflúvios da revelação. Assim, o exame estava no centro dos processos que constituíam os sujeitos como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber, “ao combinar vigilância hierárquica e sansão normalizadora realiza as funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões” (FOUCAULT, 2008, p. 160).

As ex-alunas inquiridas, em sua maioria, referiram-se de forma positiva ao sistema de ensino do colégio, por seu nível de exigência quanto à formação de hábitos de estudo, ao desenvolvimento do raciocínio analítico, ao treinamento das habilidades intelectuais, o que era atestado tanto pela satisfação dos pais quanto pela facilidade de acesso das ex-alunas a níveis mais elevados de ensino, e ainda pelo seu desempenho profissional, o que demonstra que o poder não deve ser analisado apenas em termos negativos: o poder produz saber, produz realidade, aperfeiçoa as habilidades humanas, organiza as forças sociais (FOUCAULT, 2008, p. 161). O discurso da educação no Colégio Santa Rita foi competente no sentido de favorecer

Ilustração 40 - Cartão de Louvor - Ano 1950

à aprendizagem, mas também à submissão das alunas aos interesses das elites, já que a crítica da realidade não era um aspecto explorado.