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A CONVERSA INTERDISCIPLINAR COM JAIRO SOBRE O FATO PEDAGÓGICO: O exercício da crítica

Tese antítese síntese.

AS HIPÓTESES

3 A CONVERSA INTERDISCIPLINAR COM JAIRO SOBRE O FATO PEDAGÓGICO: O exercício da crítica

O exercício da crítica é também uma forma importante de participação política, pois fornece elementos para que cada indivíduo proceda conscientemente ao tomar suas próprias decisões e ajude as demais a formarem suas respectivas opiniões (DALLARI, 1984, p. 80).

Antes de mais nada, Jairo, quero lhe dizer que legitimei o seu retardamento em dois anos de vida escolar, a despeito de você saber pensar. Submeti à sorte toda a aprendizagem de que comprovadamente você tinha condição de realizar naquele tempo situado. E, por certo em todos os outros tempos ulteriores. Hoje, trago claro que não apenas o retardei, mas nos retardamos todos... em todas as dimensões do ser, sobretudo a humana: vivência aqui assumida... experiência aqui redimida, porque somente aquilo que é objeto do desejo fica impregnado na memória.

Saudoso menino pensante, naquele tempo-espaço de alegria eu desconhecia a natureza da sua fome, ou melhor, eu não via que a sua fome de saber era tão intensa quanto a minha, exceto por um diferencial captado por mim só algum tempo depois de você: você tinha fome de saber aprender e de mostrar-me o já sabido a respeito da leitura e da escrita. Sua fome sabia-se de quê e para quê. Aprendi um pouco mais tarde, com o educador Rubem Alves, que “Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome” (ALVES, apud LAGO, 2004, p. 31).

Em contrapartida, eu, Jairo, tinha fome de ensinar, porquanto a fome de aprender pensava já ter sido saciada no Curso Normal – Formação para o Magistério Primário, como já dissemos, feito no Instituto de Educação Júlio Prestes de Albuquerque, em Sorocaba, cidade que ostentava status de progressista e cujo desenvolvimento econômico-industrial aliado à proximidade geográfica com a capital São Paulo a colocava entre as mais desenvolvidas do interior paulista. Seus sistemas escolares e instituições formativas da educação básica eram tomados como vanguardistas.

Acresce ainda que, àquele tempo, o Diploma de Professora Primária representava o passaporte para a ascensão social, sobretudo quando essa habilitação sobrevinha da excelência de formação resultada de notas altas dentro da escala zero a dez e alcançadas por “moça de boa família”, não obstante de origem humilde, da classe trabalhadora e de cultura fabril, como no meu caso. Na verdade eu tinha fome de “ensinar tudo a todos”, bem aos moldes da premissa comeniana51

de sustentação teórica e prática pedagógica firmada na obra clássica intitulada “Didática Magna”. A expressão obra clássica atribuída à “Didática Magna” de Comenius (1592-1670) – século XVII pode abarcar sentidos duplos:

[...] clássico tem a ver com o que permanece, que resiste ao tempo e se mantêm vivo e significativo. Clássico é o reverso de efêmero, circunscrito. Por ter valor “universal”, por transcender tempo e espaço é que se refere a alguma coisa como clássica. Estaríamos falando por acaso do absoluto? Aí reside um equívoco. Resistir ao tempo, transcender ao presente, nada tem a ver com imutabilidade. As produções clássicas mantêm, sim, estreito vínculo com o seu tempo, mas não se restringem a ele. Porque, em alguma medida, tocam no essencial daquilo a que se refere é que permanece. Permanecem, transcendem por serem necessariamente transmutáveis: podem ser “lidas” e sentidas com o olhar atual sem, contudo, perderem seu sentido original (ROSA, 2007, p. 36-37, grifo do autor).

Nesse sentido, a autora defende que a escola tradicional mantenedora da mentalidade pragmatista está superada, não propriamente pelos conteúdos que ensina, mas pelo modo disciplinar como os aborda e pelo tratamento estéril a eles dispensados no ato de ensiná-los. Pela ausência de percepção sobre o atributo da sensibilidade própria da alma infantil e de como as crianças dela lançam mão na aquisição do saber, objeto único de desejo que as fazem procurar a escola.

Repensar o modo disciplinar de ensinar é também ideia sugestiva de Antunes (2008):

É importante às vezes acreditarmos que o “novo” em educação muitas vezes não é assim tão novo. Isto nos ensina que educar, em muitas circunstâncias é simplesmente fazer de maneira nova algumas coisas que há muito tempo se ensina (ANTUNES, 2008, p. 16).

51 A expressão premissa comeniana aqui empregada refere-se a Jan Amos Komensky, educador

checo, nascido em 28 mar. 1592, na Morávia (hoje República Checa), região da Europa Central, pertencente ao Reino da Boêmia. O propositor da “Didática Magna”, também chamado de Comenius (COVELLO, 1999, p. 15).

De outra feita, a doutrina filosófica do pragmatismo é assim explicada por Bunge (2002):

[...] a práxis (ação) é a fonte, o conteúdo, a medida e a meta de todo o conhecimento e valor. [...] Julgado a partir de um ponto de vista pragmatista, o pragmatismo é obviamente ambivalente. Por eliminar todas as ideias que não sejam práticas, é uma forma de filistinismo52 e, assim, um inimigo da

cultura superior [...] embora seus pais fundadores, S. C. Peirce, W. James e J. Dewey, fossem tudo menos filisteus... (BUNGE, 2002, p. 291-292).

Já o professor e comeniólogo Sérgio Carlos Covello (1999), associado da Universidade de São Paulo (USP), em sua obra intitulada “Comenius: A construção da pedagogia”, considera ainda atuais as contribuições de Comenius em vários países do mundo e as situa fundadas no humanismo e no espiritualismo cristão. A Mestra e Doutoranda em Educação pela USP, Dora Incontri, acrescenta, à terceira edição da referida obra de Covello, textos de Comenius por ela traduzidos, de cujos extratos se pode ver que, além de oferecerem uma ideia geral sobre o pensamento político-pedagógico do educador checo, oportunizam ao leitor a apreensão da linguagem e das propostas de vanguarda desse defensor da educação para todos, em pleno século XVII. Afirmam Covello e Incontri (1999) que Comenius é considerado por muitos expoentes da literatura educacional como “o Galileu da educação”; “o fundador da moderna pedagogia”; por outros, “o profeta da moderna escola democrática”, ou, ainda, “o pai dos modernos métodos de ensino”. Entre esses expoentes figuram nomes como Frederik Eby, Paul Monroe, Lorenzo Luzuriaga, Jean Piaget, entre outros (COVELLO, 1999, p. 162).

De outra feita, e analisada do ponto de vista crítico, o professor, filósofo e cientista social Cipriano Carlos Luckesi (1990, p. 39) considera a “Didática Magna: tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos” fruto da concepção de educação como redentora da sociedade, cuja função social do ensino está centrada na “integração harmônica dos indivíduos no todo social já existente” (p. 38). Essa força e poder atribuídos à educação e ao ensino confere a ambos um grau de autonomia para além de sua concreta efetividade. Ao conceber a educação “exterior à sociedade” (p. 38), num fixado mundo intramuros da sociedade e dela desapartado, acaba por acreditá-la munida dos elementos necessários para o seu “ordenamento”

52 Filistinismo: c.f. Filisteu – FIG. expressão relacionada à ideia de “burguês de espírito estreito e

e “equilíbrio permanentes” (p. 38). Nesse sentido, resta à educação o nobre, papel de redutora dos males e desvios sociais, bem como o dever de garantir que todos os indivíduos sejam integrados no todo social de forma verticalmente coesa, harmônica e equilibrada. Comenius encontrava na finalidade da educação de sua época e contexto sócio-histórico, político e religioso o poder de resgate e da re-ligação do amor perdido pelos homens, pelo Criador e, por conseguinte, pela sociedade, alimentando-se do desejo de restabelecimento do perdido pelas vias exclusivas da educação e da fé. Assim, a educação, para ele, significava o meio mais eficaz para redimir a sociedade desequilibrada e desintegrada, assentada na fé em Deus e nos seus mandamentos e endereçada às gerações novas cujas mentes e corações ainda não sofreram os estragos dos “vãos preceitos e costumes mundanos” (DIDÁTICA MAGNA, 1657, apud LUCKESI, 1990, p. 40).

Essa concepção de educação e ensino, Jairo, atravessa, tão viva quanto você, esses três séculos subsequentes ao século XVII e, porque não dizer, povoa até hoje o imaginário pedagógico de muitos pedagogos e educadores da sociedade contemporânea, chamada de pós-moderna, de sociedade da informação e do conhecimento.

Também Hengemühle (2011) pauta seus questionamentos e análises críticas relacionadas às concepções clássicas de educação e ensino a partir do seu olhar. Vejamos o que nos diz o pesquisador sobre Sócrates, “o pensador grego”: [...] Ao olhar Sócrates e tantos outros, me pergunto: Por que avançamos tão pouco na educação? Por que somos tão resistentes em ver que nossas práticas não contemplam a natureza do ser humano? (HENGEMÜHLE, 2011, p. 48).

Conta-nos o autor que no século V a.C. Sócrates já vivenciava uma pedagogia da reflexão, levando seus discípulos a encontrarem respostas às problematizações por ele postas. Traz Berbel (1998) para dizer que a metodologia socrática convocava o próprio Sócrates a apresentar-se:

[...] Como homem que nada sabe interrogava sem cessar os atenienses, principalmente os jovens, para destruir a educação adquirida sem

reflexão, os preconceitos dissimulados debaixo do disfarce da sofística, e

para substituí-los por um saber extraído de dentro do ser humano (BERBEL, 1998, p. 7, apud HENGEMÜHLE, 2011, p. 49, grifo do autor).

Reporta-se, ainda ao caráter pedagógico das parábolas de Jesus Cristo, que se valia de uma infinidade de estratégias para que letrados ou iletrados de seu tempo pudessem apreender e compreender as suas mensagens.

[...] Conforme Bordenave... Jesus de Nazaré costumava ensinar apresentando situações problemáticas, como quando utilizou a parábola do Bom Samaritano para que seus ouvintes, compreendessem o conceito de próximo (BERBEL, 1998, p. 7, apud HENGEMÜHLE, 2011, p. 49).

Quanto a Comenius e sua Didática Magna, Hengemühle (2011) nos dá as indicações de que “[...] o professor deve mostrar a utilidade e a aplicação do

conhecimento adquirido, e fazer referência à natureza e origem dos fenômenos estudados, às suas causas. Por sinal, muito atual!” (HENGEMÜHLE, 2011, p. 49, grifo do autor), complementa o autor.

A educação comeniana tem o fim claro de fazer com que o educando aprenda a “bem viver”, e “[...] adota como um dos critérios determinantes de suas opções pedagógicas a utilidade para o aluno daquilo ‘que se lhe ensina’” (HENGEMÜHLE, 2011, p. 50, grifo do autor).

Enfim, de Comenius (1592-1670), Locke (1632-1704), Rousseau (1712-1778), Basedow (1723-1790), Herbert (1746-1827), Pestalozzi (1746-1827), Fröbel (1782- 1852), Dewey (1859-1952), Montessori (1870-1952), Decroly (1871-1932), Freinet (1896-1966), Wallon (1879-1962), Vygotsky (1896-1933), Piaget (1896-1980), Freire (1921-1997), saindo em defesa da premissa do respeito à individualidade do educando, alcançando, como se pode ver, Piaget e Freire, já mais contemporâneos, podemos perceber o avanço da ciência sobre como pode aprender o ser humano. Daí, as ricas contribuições de Piaget53 com a,

53 Jean Piaget (1896-1980) nasceu na Suíça. Seu primeiro livro, publicado em 1924, já demostrava

seu interesse pela gênese do conhecimento: a linguagem e o pensamento na criança. Ocupou-se disso pelo resto de sua vida. O nascimento da inteligência na criança, a noção de número na criança, a construção do real na criança, a formação do símbolo na criança e dezenas de outros títulos compõem sua obra (cerca de 70 livros e mais de 300 artigos). Faleceu em Genebra. Em seu currículo, mais de 20 doutorados HONORIS CAUSA, conferidos por universidades de todo o mundo (LAGO, 2004, p. 54).

[...] descrição dos estágios de desenvolvimento da criança e do adolescente que oferece aos educadores o conhecimento sobre como planejar e entender a “distância” entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento próximo: entre aquilo que a criança já faz de forma independente e aquilo que para ser solucionado, requer o concurso de outros, considerados sempre como agentes de desenvolvimento. Esse conceito elucida bem a visão Vygotskiana de desenvolvimento: apropriação e internalização de instrumentos proporcionados por agentes culturais de interação, que levam à elaboração de funções psicológicas que estavam próximas de se completar e que em se completando, propicia-se novas aprendizagens [...] volta-se para o futuro, para aquilo que ainda não ocorreu, mas que, proximamente, ocorrerá [...] a interlocução que se dá na atividade (OLIVEIRA, 2005, p.48-49, grifo do autor)54.

O conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) de Vygotsky (2005), remete ao papel do professor na mediação da aprendizagem do aluno: o professor mediador é sujeito que realiza a conexão necessária: sujeito que ensina/objeto de conhecimento/sujeito que aprende.

Ademais, não se pode duvidar da importância do pensamento pedagógico de David Ausubel55, que informa sobre a relevância dos conhecimentos prévios dos alunos, mostrando que “[...] conhecido o que o aluno já sabe, esse saber deve

ser tomado como ponto de partida do novo ensino” (HENGEMÜHLE, 2011, p. 51, grifo do autor).

Chegamos ao Brasil, Jairo, país de origem de Fazenda, que traz à tona o sujeito e a educação interdisciplinares, expondo a fratura, a fragmentação disciplinares hospedeiras da maioria das escolas brasileiras, segundo Hengemühle (2011). Afinada com as ideias freirianas, representa pontos de referência fundantes para a prática docente.

E assim, Jairo, alcancei o limiar da educação do século XXI, cuja volatilidade exige dos educadores que apressem os passos da construção de um novo saber e

54 Marta Kohl de Oliveira. História, Consciência e Educação. In: VYGOTSKY, L. S. Vygotsky uma

educação dialética. Suplemento Especial: A Educação na Idade Média. Viver Mente & Cérebro. Editor Manuel da Costa Pinto. [colaboradores Adriana Lia Friszman... et. al.,] Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Segmento-Duetto, Coleção Memória da Pedagogia. Edição especial n. 2, (S.d.).

55 David Ausubel destacou-se em educação pela ênfase com que trabalhou a expressão

“aprendizagem significativa” desde a década de 60, quando nos Estados Unidos o Behaviorismo se encontrava em sua maior evidência e o ensino e a aprendizagem examinados como estímulos- respostas e reforços. [...] Para esse educador, a aprendizagem significativa é “o processo por meio do qual uma nova informação se relaciona de maneira substantiva e não arbitrária, a um aspecto relevante da estrutura cognitiva do aprendiz”... (ANTUNES, 2008, p. 65).

fazer docentes, e cujo eixo norteador desenha o perfil do aluno da nova geração, que precisa, por meio de aprender a aprender, também aprender a fazer, aprender a conviver, e aprender a ser56. Para isso, o educador há que estar centrado no desenvolvimento de competências57, para o enfrentamento do mundo pós-moderno em que vive.

Contudo, Jairo, não obstante a quantidade incontável de pesquisadores oferecendo à humanidade histórica e culturalmente uma soma impagável de relevantes descobertas científicas, ainda somos muitos a continuar pensando que a disciplina tem em si, e de forma isolada, a verdade absoluta capaz de explicar a totalidade dos fenômenos da natureza.

Ademais, essa concepção de ensino sustenta-se na ótica da “[...] sociedade como um todo orgânico e harmonioso com desvios de grupos e indivíduos que ficam à margem desse todo”, como aponta Luckesi (1990, p. 38), e de cuja ação recuperativa e missão salvífica está incumbida a educação.

Assim é que eu me propunha ensinar-lhe tudo o que eu pensava tão bem saber e acreditava que de tudo, tudo ou quase tudo, você desconhecia.

Pela condição sociocultural que o identificava e pela carência econômico- financeira que lhe roubava até mesmo a saúde e a qualidade de vida, eu o via “à margem do todo social” referido por Luckesi (1990). Logo, cabia a mim empregar esforços para retirá-lo daquela situação de marginalidade, havendo de ser pela educação e pelo ensino ministrados, como elucida Freire (2001): [...] “já que a educação modela as almas, e recria os corações, ela é a alavanca das mudanças sociais” (FREIRE, 2001, p. 28).

De sorte, Jairo, que eu não contava com a iluminação teórica e político- pedagógico-crítica para trazer à luz a consciência imediata para reconhecer-me e aceitar-me também faminta de aprender e de sanar a falta de profundidade analítica

56 Parâmetros para a Educação do Século XXI. Comissão Internacional para a Educação no Século

XXI, criada pela UNESCO, sob a presidência de Jacques Delors. Sugere esses princípios para o processo de aprendizagem no alvorecer deste século. (2003). Esses parâmetros “originam-se de preocupações e necessidades globais que solicitam da educação contemporânea a formação de

pessoas capazes de revitalizar a humanização da vida” (HENGEMÜHLE, 2011, p. 42).

57 Competência: Philppe Perrenoud é o autor da obra Formando professores profissionais: quais

estratégias, quais competências? Trad. Fátima Murad e Eunice Gruman. 2. ed. rev. Porto Alegre: Artmed, 2001.

que cegava a minha prática docente. Por isso, sentia desafiante dificuldade diante de sua capacidade de entender, de forma lógica, o que eu mesma não entendia. Eu era a professora com toda aquela cegueira epistemológica, linguística, metodológica e político-pedagógica acompanhada do formalismo próprio da ideologia positivista58, apesar do perfeito domínio do método que me exigia um procedimento repetitivo e bem especificado – um receituário cartilhesco. Não obstante ter claro na mente a terrível contradição de, de repente, você me ensinou que Eu era a ODILA. Como entender a sujeição imposta pelo próprio método e concepção de alfabetização trazidos da formação do Curso Normal? E como não transferir a você essa mesma sujeição? Por que seria que você escrevia O / I / A quando eu lhe ordenava arbitrariamente que escrevesse EU? Como entender o sentido e a lógica que lhe definia a escrita? Como escalar tamanho edifício de abstração?

Segundo Capelletti (2000),59 os positivistas concebem a ciência como um quadro pronto e acabado de axiomas, postulados, descrições, definições, conceitos, interpretações, teorias e leis aplicáveis ao conhecimento de parcela da realidade. A meu ver, Jairo, aquela sua escrita convencionalmente parecia dizer da terceira pessoa do singular, tempo presente do modo indicativo do verbo olhar, escrito à moda roceira, o que era inconcebível de ser aprovado pela formalidade do ensino escolar.

No entanto, você me mostrava uma leitura de mundo e uma leitura da palavra distinta, em função também de nossas culturas distintas.

De Freire (2001) veio-me a clareza da “leitura” mais crítica da “leitura”, que você lia com tamanha precisão lógica ao ouvir-me ditar o pronome EU e correspondia com a escrita OIA, o meu nome Odila, como representativa daquele

58 Positivismo: “A família de doutrinas nas quais se exige que somente fatos “positivos”

(experiências) sejam levados em conta, e em que se afirma que as teorias apenas sumariam dados e nos poupam pensamentos. Embora os positivistas preguem o cientismo, eles defendem uma epistemologia centrada no sujeito e cortam as asas da pesquisa científica ao exigir que ela deveria aferrar-se aos dados. Pretendem evitar a metafísica, mas efetivamente endossam o

fenomenalismo, que é uma metafísica subjetivista. Principais expoentes: Ptolomeu, D’Alembert, Comte, Mill, Spencer, Mach [...] Os únicos positivistas praticantes encontram-se nos ramos atrasados das ciências social e natural, onde a principal ocupação é a caça e a coleta de dados” (BUNGE, 2002, p. 286, grifo do autor).

59 Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP.

texto e contexto que o encarnava. No entanto, sem a clareza atual eu tomava aquela sua escrita como “uma compreensão diferente da sua indigência” e não como resultante de um processo em que você não tinha qualquer ingerência (FREIRE, 2001, p. 21).

Sabe, Jairo, na Escola Normal eu aprendi a falar e quase nada aprendi sobre o escutar. Eu nem desconfiava que é “escutando que aprendemos a falar” (FREIRE, 1996, p. 127, grifo do autor) com os alunos. Para falar com o aluno e não simplesmente ao aluno, é preciso aprender a escutar com paciência e atenção crítica. Falar impositivamente, Jairo, é atitude do professor que não sabe escutar. É também por isso que me submeti à padronização das fórmulas de avaliação da aprendizagem em vigor naquela época e o reprovei de forma irreversível. Naqueles tempos, Jairo, eu estava acometida do que Paulo Freire (1996, p. 128) chama de “burocratização da mente”. Mas isso eu só vim a saber lá na década de 80, com Ivani Fazenda. Eu me “autodemitia” (p. 128) do pensar certo e de assumir esse pensar, e essa falta de tomada de consciência arrastou-se por um tempo que hoje não digo perdido, porque entendo do processo de amadurecimento dos frutos. Ao contrário, hoje sei, Jairo, que são muitos os estudiosos que tratam da escuta sensível, aquela que obviamente “[...] vai mais além da possibilidade auditiva de cada um”, aquela que “[...] significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro” (FREIRE, 1996, p. 135).

Contudo Freire (2001) aclara sobre o universo de conhecimento ainda a ser sabido pelo educador desavisado (como eu à época), apontando que:

[...] Na verdade, para que a afirmação “quem sabe, ensina a quem não sabe” se recupere de seu caráter autoritário, é preciso que quem sabe saiba sobretudo que ninguém sabe tudo e que ninguém tudo ignora. O educador, como quem sabe, precisa reconhecer, primeiro, nos educandos em processo de saber mais, os sujeitos, com ele, deste processo e não pacientes acomodados; segundo, reconhecer que o conhecimento não é um dado em si, algo imobilizado, concluído, terminado, a ser transferido por quem o adquiriu a quem ainda não o possui (FREIRE, 2001, p. 27-28, grifo do autor).

Vale ressaltar que a prática democrática e crítica inicia-se com a leitura do mundo e a leitura da palavra como que “palavramundo”, como leituras inseparáveis,

dinâmicas e binômicas, segundo a visão freiriana. Sobre isso sinaliza o educador pernambucano: “[...] o comando da leitura e da escrita se dá a partir de palavras e de termos significativos à experiência comum dos alfabetizandos, e não de palavras e de termos ligados à experiência do educador” (FREIRE, 2001, p. 29).

Vejo hoje, Jairo, que você não poderia ter lido o real da maneira a mesma