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Tese antítese síntese.

AS HIPÓTESES

4 OS CAMINHOS APRENDENTES DA ALFABETIZAÇÃO: Pedaços significativos da história de vida e formação da pesquisadora

4.1 O encontro com Cagliari no ano de

E a participação100 ativa propiciou-me nova vivência, de novo, inusitada e atrevida, para construção de conhecimento novo...

(Odila Amélia Veiga França)

99 Registros de Memórias de Aula no Curso de Mestrado. Programa Educação: Currículo. PUC/SP,

20 mar. 2001.

100 Registro aqui que toda narrativa que intenta retratar minha participação ativa e os conhecimentos

construídores no encontro com o Professor Cagliari (1970), sustenta-se nos guardados escritos desta pesquisadora, que, naquela oportunidade, atenta e curiosa, procurou dar conta de um registro que assegurasse a limpidez e a essência do pensamento do palestrante. Há que se dizer que na década de 70 a exemplo das novas teorias educacionais, os recursos tecnológicos com os quais hoje podemos contar, nem eram cogitados.

Assim é que ele (Professor Cagliari) ficou sabendo que nas escolas rurais de emergência as classes eram multisseriadas101, com recursos de toda ordem

perversamente escassos, a merenda escolar pobre e preparada com água tirada do poço pela professora, que era engenheiro, mestre de obras e pedreiro, ao mesmo tempo. E ficou sabendo também das crianças em grande parte acometidas pelas doenças típicas da falta de saneamento básico e carências alimentares, do isolamento da comunidade local, causado, entre outras razões, pela localização geográfica distante do acanhado centro urbano, da ideologia do livro didático imposto ao professor e ao aluno e, sobretudo da hegemonia do paradigma da avaliação classificatória e excludente sobre o desempenho escolar dos aprendizes, tão indefesos em meio a todas as mazelas socioculturais apontadas.

Assim é fiquei sabendo, num susto – diga-se de passagem –, que o Jairo aprendera a ler e escrever apesar de mim, e não invariavelmente só comigo, sentença essa me dada pelo competente linguista dentre um público seleto de alfabetizadores, conforme detalhamento mais adiante neste trabalho.

O confronto entre minha própria prática de alfabetização desenvolvida naquela escola de roça caiçara entrecruzada com a cultura japonesa traduziu-se num movimento cognitivo dialético, cujas voltas e reviravoltas do pensamento crítico- reflexivo que se formava mostravam ambiguidades de toda ordem que, paulatinamente, propiciavam-me o entendimento do que mais tarde vim a aprender com Fazenda (2001a, p.15): que “O encontro com o novo demanda o respeito ao velho”, e que não há neutralidade na prática educativa. Há sim, a exigência do “cuidado epistemológico e metodológico” voltado para o ensino em si e para o conteúdo ensinado, para a linguagem usada pelo professor nas ações de ensinar e de comunicar o conhecimento escolar ao aluno.

Procuro similitudes entre o pensamento pedagógico interdisciplinar de Fazenda (2001a) e as encontro no pensamento político-pedagógico de Freire (1996) que assim se expressa: “O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo” (FREIRE, 1996, p. 39).

101 Classes multisseriadas: compostas de alunos de diferentes faixas etárias, cursistas das séries da

primeira a quarta, agrupados num único espaço físico e orientados por um só professor – o professor primário, assim denominado àquela época.

De toda forma, o conjunto das verdades desveladas naquele encontro deu-se de maneira a causar impactos e descobertas impensadas previamente por mim, acerca dos métodos clássicos de alfabetização.

Naquele contexto de formação profissional de profundidade teórica antes nunca experimentada, vivenciei um estado de desestabilização conceitual e prática, tanto quanto o fora o “erro disciplinado” cometido no julgamento da escrita de Jairo, que provocado pela incompatibilidade entre o pensamento e a palavra dita da professora e o pensamento e a palavra ouvida e escrita por aquele menino arredio, porém, arretado102. Isso fazia com que eu remexesse toda a minha situação existencial e todo o conhecimento comum que me levava a pensar já ter superado a exigência de satisfatoriedade e, portanto, de sustentabilidade em relação ao conhecimento científico.

Ledo engano, aquele! Vejamos as razões que podem aclará-lo:

Primeiramente, penso apropriado dar início ao aclaramento necessário com o pensamento de Marcel Proust, que atesta que “A sabedoria não nos é dada. É preciso descobri-la por nós mesmos, depois de uma viagem que ninguém nos pode poupar ou fazer por nós” (PROUST103), somado à inquietação de Guimarães Rosa

quando confessa que “A cabeça da gente é um só, e as coisas que há e que estão por haver são demais de muitas, diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total” (GUIMARÃES ROSA, 1994, p. 438).

Ouvimos, durante aproximadamente duas horas seguidas, sobre os fundamentos teóricos e linguísticos do ensino da língua, que me levaram a perceber, num primeiro momento, a fragilidade dos métodos clássicos de alfabetização compostos por conjuntos de regras as quais o professor seguia sem objetar e sem mesmo conhecer o processo. Quer seja, analítico ou sintético, o método centrava-se na memorização sem a compreensão do objeto memorizado (sílabas, palavras, fonemas, textos...). Atingida a silabação graduada (ba, ca, da, fa...) acreditava-se

102 Arretado: (adjetivo) – Palavra-ônibus (nordestina) que indica numerosas ideias apreciativas,

equivalendo, por exemplo, a bonito, elegante, excelente [...] bacana, legal (FERREIRA, 2004, p. 198). Aqui empregada para dizer de Jairo, cujos atributos não incluíam nem o porte nem a roupa elegantes, excelentes ou bonitos, mas a essência humana, a inteligência viva, enfim, a boniteza do ser.

103 Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust (1871-1922) foi um escritor francês, mais

conhecido pela sua obra À la recherche du temps perdu, que foi publicada em sete partes entre 1913 e 1927. Disponível em: Frases - http://kdfrases.com. Acesso em: 05 set. 2014.

que a criança lia, memorizando a estruturação dos pseudos “famílias” silábicas. A leitura e a escrita embora objetos conceituais e com vistos como mecânica codificação e simples decodificação do código linguístico. Assim alfabetizar significa treinamento motor, visual, auditivo, O ensino é centrado no professor, e a aprendizagem significa a aquisição de uma técnica.

Grande parte das crianças que supostamente aprendem a ler e a escrever por esses métodos se não desistem de aprender a ler, fracassam totalmente, na competência leitora o fazem numa lentidão castradora, porque não compreendem o que representa a escrita e a que uso social104 é destinada.

Para mim, foram descobertas excessivamente impactantes.

Sentindo-me ferida e humilhada no brio do ofício de professor, em meio aquele público informado de alfabetizadores, busquei justificativas para o trabalho desenvolvido naquela escola de roça, ousando explodir em defesa própria e explicitar a indignação que me parecia tão justa quanto necessária de ser declarada. Assim que aberta a palavra ao público, eu a solicitei, expondo:

─ Professor Cagliari, tudo o que aprendi em Didática, no meu Curso Normal,

foi cuidadosamente aplicado na minha sala de aula. O domínio do método desenvolvido por mim é a prova do sucesso das crianças, pois, em setembro, a maioria recebeu o primeiro livro de leitura. O que de tudo e tanto posso ter errado se somente alguns poucos alunos não escreviam corretamente, embora lessem bem? Especialmente um deles fazia uma confusão enorme, pois quando eu lhe ditava EU

104 Descobertas excessivamente impactantes e ocorridas numa década anterior à descoberta da

pesquisadora argentina Emília Ferreiro sobre a psicogênese da língua escrita, vez que, conhecimento este só chegado aos alfabetizadores paulistas na década de 80. Sem dúvida, os resultados da pesquisa de Emília Ferreiro e os estudos posteriores desencadeados em parceria com inúmeros colaboradores, entre eles a brasileira Telma Weisz, fizeram desestabilizados as práticas de alfabetização; alterados os movimentos de formação continuada dos profissionais da educação da Secretaria de Educação de São Paulo – SEE; impeliram a que as políticas educacionais voltassem o olhar para o novo paradigma que emergia no ensino da leitura e da escrita, sobretudo nos primeiros anos da escolarização básica e, por fim, abriram-se espaço para uma nova modalidade de pesquisa pedagógica. Um novo caminho cujas chances pareciam reais para que o analfabetismo que assola o país fosse, ao menos, repensado à luz das novas teorias produzidas e socializados.

Vale ressaltar ainda que se as descobertas de Ferreiro aguardaram uma década para serem conhecidas pelos professores alfabetizadores, quando delas tomei conhecimento, já mais amadurecida desde Cagliari (1970) e Fazenda (1982), haviam se passado doze anos do “erro disciplinado” cometido com o Jairo, naquela escola de roça, gerador do fato pedagógico objeto de estudo desta tese.

ele escrevia OIA! Que me resta fazer, se ele é quem tinha dificuldade de aprendizagem?!?

Com a serenidade dos sábios e a tolerância do pesquisador competente, que coloca o conhecimento construído a serviço do crescimento do outro, o renomado cientista da língua orientou-me:

– Cara Professora! Primeiramente lhe sugiro que coloque entre parênteses a certeza de que aprendeu tudo na Escola Normal. Depois, que acolha a ideia de que as crianças não aprendem só com a senhora, algumas delas aprendem

apesar da senhora!... Seu nome não é Odila? Não lhe passou pela cabeça que ele

era o EU do seu aluno?...

Nada pôde ser mais forte que aquela convocação séria, contundente e sobretudo desafiadora! Nada foi mais chocante que a descoberta dos primeiros sinais que me levariam à gênese da minha incompreensão sobre a escrita do Jairo. Adepta, como se vê, da teoria fundada na aquisição de escrita como transcrição do sonoro para o gráfico, senti avassaladora perplexidade frente ao novo.

Hoje acosto aquele sentimento de ansiedade misturado à frustração experimentada, naquele contexto, ao entendimento de que:

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo: interrogar, escutar, responder, concordar, etc. Neste diálogo o homem participa todo e com toda a sua vida; com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, com o corpo todo, com suas ações. Ele se põe todo na palavra, e esta palavra entra no tecido dialógico da existência humana, no simpósio universal (BAKHTIN, 1997, apud PERROTA, 2004, p. VIII).

Folgo em saber, entretanto, que também o eminente Professor Paulo Freire, ainda muito jovem e em início de carreira no ensino da língua portuguesa, como eu, naquele espaço/tempo histórico e naquela agridoce experiência docente, havia de captar que “aprendemos ensinando-nos” (FREIRE, 2000b, p. 26), e que para tanto:

[...] O fundamental seria desafiar os alunos a perceber que aprender os conteúdos que lhes ensinava implicava que eles os apreendessem com os

objetos de conhecimentos. A questão que se colocava não era a de

descrever o conceito dos conteúdos mas desvelá-los para que os alunos assumissem diante deles a curiosidade radical de quem busca e de quem

quer conhecer. É bem verdade que, àquela época, em que este conhecimento do ato de ensinar, a que corresponde uma compreensão dinâmica e crítica do que é aprender começava a se dar, não me era possível ainda, falar dele como falo agora. Esta certeza gnosiológica, a de que aprender o objeto, o conteúdo, passa, pela apreensão do objeto pela

assunção de sua razão de ser (FREIRE, 2000b, p. 59, grifo do autor).

Também como Freire, sei até hoje, do meu comando ainda insatisfatório dos “mistérios da língua portuguesa” (FREIRE, 2000b, p. 101), porém, com a aguçada clareza, percebo-me tão “apaixonada pelos problemas de linguagem” (p. 101) quanto ele o foi a vida toda. A ideia de apreender para poder aprender sugere-me, no presente, o engajamento na vida de maneira a mais corajosa possível, sabendo empregar adequadamente os instrumentos da educação a serviço do desenvolvimento humano, sabendo mobilizar as habilidades e capacidades desenvolvidas na escola para enfrentar, de maneira competente, o mundo real explicitado na convivência social dentro e/ou fora da instituição formativa. Até porque, ensinar a ler e escrever exige engajamento. A tarefa de ensinar a ler e a escrever não pode ser minimizada. Não pode, também, ser silenciosa ante nossa presença no mundo. Se silenciada, invalida “nosso ser no mundo” e “ser ao mundo” e estaremos assim contribuindo, não para a transformação das pessoas mas para a adaptação delas na sociedade. Defende Freire (2000b) que “ensinar a alguém a ler e a escrever é algo demasiado sério que exige de quem ensina um forte respeito por quem está sendo ensinado” (FREIRE, 2000b, p. 117).

Hoje também, apegada aos marcos do memorial, considero relevante o resgate da propriedade de explicação do professor Cagliari sobre o caráter bifásico da língua portuguesa, em que a correspondência fonema/grafema nem sempre é biunívoca, ou seja, em que “[...] cada elemento do primeiro conjunto corresponde a apenas um elemento do segundo, e vice-versa” (FERREIRA, 2004, p. 303) de forma homogênea e uníssona.

Afirmou o linguista, naquela oportunidade, que o grafema – “a menor unidade contrastiva num sistema de escrita” (FERREIRA, 2004, p. 996) se faz distinto do fonema – “unidade mínima distintiva no sistema sonoro de uma língua” (FERREIRA, 2004, p. 918), e, a partir daí, os exemplos postos à compreensão dos alfabetizadores, naquele encontro, foram de inequívoca significação. Vejamos:

Na palavra CA VA LO temos a composição de seis letras representativas de cada um dos fonemas correspondentes, uma a uma, aos seis dos seus grafemas, o que vale dizer, seis letras compondo uma palavra de três sílabas.

Por oposto, a palavra TRA BA LHO é composta por oito letras, sendo igualmente trissílaba, porém sua correspondência fonema/grafema não se dá de forma biunívoca.

A meu ver, o professor Cagliari construiu um olhar interdisciplinar para nos fazer ver a complexidade da língua portuguesa dentro da sua própria riqueza e as implicações dessa complexidade no processo de alfabetização.

Incorre, portanto, em atitude no mínimo temerosa, que o professor, que ao ensiná-la desapartado do seu elemento constitutivo complexo e ao tentar simplificá- la para o ajuste da compreensão do aprendiz, não tão raramente, acaba por banalizar o ensino, tornando-o reducionista, além do que, errôneo; pois procedente de raciocínios viciados e carregados de desprezo aos “elementos necessários de solução” (FERREIRO, 2004, p. 148).

Acrescentou a essas ideias o fato de ser o domínio da língua escrita uma séria preocupação dos professores, dos pais e dos sujeitos que dela têm de se apropriar. Disso decorre a exacerbação dos cuidados com a ortografia, a caligrafia, a concordância precisa e a perfeita regência, entre outros aspectos nos quais incidem as concepções de certo e errado.

E desse fato decorre também o fato de o aluno sentir-se, quase sempre, incapaz de desenvolver a habilidade de escrita no grau de proficiência desejada na escola e fora dela, passando despercebido ao professor que a forma fragmentada com que o ensino da língua é realizado nas salas de aula, se não a causa primeira, constitui uma das fortes razões pelas quais se justifica a sensação de fracasso dos educadores no ensino e sobretudo dos educandos, na aprendizagem da língua. A hierarquização da linguagem essencialmente técnica, os exercícios e os textos descontextualizados (especialmente os pseudotextos cartilhescos – Vovô viu a uva, por exemplo), a prática da codificação e decodificação da língua elevada à exaustão no então chamado período preparatório, cujo foco é o treino motor, constituem a gênese dos fatores da aludida sensação de fracasso.

Nesse contexto, o que se espera do aprendiz da língua é que ele aprenda por

insights105 e/ou generalizações, algumas delas muito próprias da lógica infantil, por

exemplo, a criança ouve: chover/choveu; bater/bateu; comer/comeu; logo, caber/cabeu...

O ensino da gramática é outro exemplo da lógica formal dos exercícios de ligar, completar, associar, como aplicação inadvertida do já sabido e memorizado mecanicamente, em detrimento da compreensão dos princípios e regras que regem a língua falada e escrita, ou seja, da apropriação significativa da complexidade linguística.

As aulas sem qualquer interação do aluno com o objeto de conhecimento, com os pares, com o professor, com o “saber de pura experiência feito” (FREIRE, 1996, p. 32) e com o mundo real, num silêncio imobilizador do pensamento reflexivo e a partir da predeterminação do professor, pouco podem contribuir para o desenvolvimento da inteligência linguística do aluno e da construção do conhecimento léxico-gramatical.

A inexistência do dinamismo e da dialética que permitem o confronto de escritas e o debate de ideias convergentes e divergentes, a falta de reflexão crítica sobre as contradições tão próprias das relações sociais e sobre a problematização da realidade são fatores impeditivos do desenvolvimento da linguagem. Acrescente- se a incitação ao desprazer de escrever ou ao medo do enfrentamento das dificuldades comuns que a língua escrita impõe às crianças, aos jovens e aos adultos.

Por fim, o professor Cagliari apontou que, se o que a escola pretende desenvolver (e tem o dever de fazer isso) é a competência da comunicação do usuário da língua falada e escrita, há que, basicamente, instrumentalizar competentemente o aluno para o alcance desse objetivo. Para isso, deve promover a prática do uso da escrita em seus múltiplos sentidos, significados, dimensões e formas convencionais de gêneros discursivos (publicidades e propagandas, rótulos, revistas, jornais, textos informativos e formativos, literários, bulas, receitas, cartas,

105 Insights: é um termo muito usado na Psicologia, quer dizer uma ideia, uma "sacada", uma

descoberta. "Tive um insight" significa dizer, tive uma ideia ou cheguei a alguma conclusão

importante. Isso acontece muito durante a psicoterapia. Na sessão o paciente tem um "insight", ou

seja, descobre, elucida algo.

Fonte: http://answers.yahoo.com/ question/index?qid=20070529111324AA5YrIO. Acesso em: 20 jan. 2014.

poemas...), considerando que a prática do ensino da língua por meios dos repetitivos exercícios padronizados e preestabelecidos pelo professor não faz do aluno o intérprete e o produtor do seu próprio texto e, portanto, não o instrumentaliza, enquanto cidadão, a ser o transformador daquilo que lhe é posto. Além do mais, não se pode esquecer que o aluno é um ser pensante, um ser de mente ativa e de atitude indagativa; que o pensamento reflexivo e crítico fomenta e é fomentado pela atividade cognitiva sempre focada no objeto que se quer apropriado.

Isso posto, não restam dúvidas de que a função social da escola, no ensino da língua e dos demais conteúdos escolares, deve acontecer em situações concretas, vivas, planificadas, e não a partir e na permanência da prática de atividades e exercícios prescritos, sendo evidente que se deve substituí-los por situações reais de aprendizagem, as quais, por natureza, levam o aluno a pensar, construir, reconstruir, analisar o próprio pensar e o próprio fazer e escolher novas situações de aprendizagem, pelo experimento de novas hipóteses e tentativas ainda não pensadas de solução.

Nisso eu vejo, hoje, a presença forte da atitude interdisciplinar favorecedora da troca, da parceria, da dúvida, da incerteza que teriam me possibilitado solicitar ao Jairo que fizesse a comparação do seu escrito com a de outro colega de turma, confronto esse que, de forma convencional, poderia encaminhar a sua hipótese primeira para uma elaboração superior, levando-o à compreensão sobre o funcionamento da língua escrita e falada, ou seja, como se fala, como se lê e como se escreve, o falado, o lido e o escrito.

Sobre isso Cagliari lembra que o cérebro humano descarta rápida e inteligentemente a memorização mecânica daquilo tudo que não lhe faz sentido. Para que nos lembremos de algo, é preciso que o tenhamos apreendido e compreendido.

A língua não deve ser objeto de opressão, mas instrumento aberto em que o sujeito possa criar e recriar, montar e desmontar, errar e acertar, avançar e recuar, no esforço de aprendê-la. Enfim, possa ler e reler até alcançar a estrutura de funcionamento da língua eleita como padrão – por que se fala de um modo e não de

outro, por que se escreve assim e não assim, condição sine qua non106 para a

formação de escritores e leitores proficientes e, dessa forma, colocar-se a serviço do desenvolvimento da inteligência linguística acompanhada do prazer de aprendê-la, ideia esta complementada sob a ótica de Antunes (2001):

[...] as crianças interpretam o ensino recebido, criando uma forma própria de escrever as palavras, diferente da escrita convencional do adulto e da maneira esperada pelo professor. Por exemplo, a palavra “cachorro” pode ser grafada como “caorro” ou, ainda, “K-xo-ro”. A lógica empregada pela criança não é a mesma usada pelo professor ao trabalhar com os signos; na realidade, baseia-se na apropriação que o aluno faz da linguagem oral e em como os sons podem se transformar em símbolos gráficos [...] É essencial criar, em sala de aula, situações experimentais que não impliquem apenas na rotineira e cansativa tarefa da “cópia” (ANTUNES, 2001, p. 30, grifo do autor).

De igual modo, ao referir-se à “capacidade de simbolização” da criança por volta de seis ou sete anos de idade, o estudioso ensina que “[...] essa simbolização não é uniforme; depende, e muito, da coloração cultural do ambiente que acolhe essa criança como se os valores do adulto passassem a simbolizar a voz com que a criança quer desenvolver seus esquemas de associação” (ANTUNES, 2001, p. 38). À luz dessas reflexões retomo a fala de Cagliari para dizer que saber a língua implica necessidade absoluta de saber ensiná-la, de saber sobretudo apreciá-la na sua completude, saber acolhê-la nas suas variantes, diferenças, beleza e complexidade.

À época do Jairo eu não sabia sabê-la e, por conseguinte, não sabia ensiná- la. Apreciava-a desde os tempos de infância quando, sentada nos joelhos do meu pai ou aconchegada no colo da minha mãe, eles liam para mim, e eu ouvia seus