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Um novo encontro e desta vez com Emília Ferreiro Novo encontro e novas lições: dose dupla de en sinamentos ─ Emília Ferreiro e Ana Teberosky

Tese antítese síntese.

AS HIPÓTESES

4 OS CAMINHOS APRENDENTES DA ALFABETIZAÇÃO: Pedaços significativos da história de vida e formação da pesquisadora

4.2 Um novo encontro e desta vez com Emília Ferreiro Novo encontro e novas lições: dose dupla de en sinamentos ─ Emília Ferreiro e Ana Teberosky

Só a ignorância, que nem sequer é santa, com relação ao significado da linguagem e portanto da alfabetização pode pretender reduzir esta aos puros bás, bés, bis, bós, bus (FREIRE, 2000b, p. 117).

Aprendi sobre isso e a pensar nisso a partir de Cagliari, em 1970, com Ferreiro e Teberosky, em 1985, na Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), no mesmo espaço físico onde ouvi Fazenda (1982) que me instilou a paixão de conhecer, com a vida, com a rua, com a fazenda, todo dia, na academia.

Ferreiro e Teberosky (1985) apontaram-me por primeiro a distinção e a correlação entre uma experiência de alfabetização e uma experiência de letramento, fazendo-me entender que este último exige do sujeito, não apenas que lide com materiais de leitura e escrita, mas que também, com esses materiais, envolva-se na inteireza de si mesmo e dos próprios materiais com os quais lida.

Emília Ferreiro, em parceria com Ana Teberosky, coloca à disposição dos educadores as ferramentas capazes de quebrar o círculo vicioso da alfabetização entendida como transcrição do sonoro para o gráfico, capazes de desvendar o “erro disciplinado” estudado por Foucault (2008), o que me leva a retomá-lo para dizer daquela construção singular do Jairo e das intervenções pedagógicas inassimiláveis feitas por mim.

Nas pesquisas feitas pelas duas investigadoras dos processos de aquisição da linguagem escrita,

[...] foi possível comprovar a teoria geral do conhecimento e explicitar a lógica peculiar desenvolvida pelas crianças no processo de aquisição deste conhecimento específico. É fundamental que, além de conhecer o processo de construção do conhecimento e o seu desenvolvimento, o educador – sobretudo o alfabetizador – compreenda também o específico a que se refere à leitura e à escrita. E que perceba que não somente o aluno é o sujeito da ação pedagógica, mas também é o professor, enquanto coordenador do processo. Isto lhe confere autonomia e lhe exige cada vez mais, maiores conhecimentos psicopedagógicos e capacidade de adequação metodológica (ALVES, 1997, p. 35).

O processo de aquisição da leitura e da escrita envolve o pensamento freiriano de que a leitura do mundo antecede a leitura da palavra. Envolve sobretudo entender que grande parte das crianças que não têm familiaridade com o mundo da leitura e da escrita, pouco ou quase nada compreendem acerca do sistema de representação da língua e de seu uso social, e, também por isso, deixam os bancos escolares antes mesmo de completar a 4ª série do 1º grau (hoje, o 4º ano do ensino fundamental). Daí, as estatísticas apontarem índices elevados de evasão escolar responsabilizando os próprios alunos e/ou seus familiares pelos números revelados.

O posicionamento de Freire (2000b), no entanto, não deixa dúvidas de que é oposto a essa responsabilização. Ao ser entrevistado pela revista Escola Nova108 e

questionado sobre o que faria “diante da evasão escolar, que é muito grande” (FREIRE, 2000b, p. 35), o autor assim se posiciona:

Em primeiro lugar, eu gostaria de recusar o conceito de evasão. As crianças populares brasileiras não se evadem da escola, não a deixam porque querem. As crianças populares brasileiras são expulsas da escola ─ não, obviamente, porque esta ou aquela professora, por uma questão de pura antipatia pessoal, expulse estes ou aqueles alunos ou os reprove. É uma estrutura mesma da sociedade que cria uma série de impasses e de dificuldades, uns em solidariedade com os outros, de que resultam obstáculos enormes para as crianças populares não só chegarem à escola, mas também, quando chegam, nela ficarem e nela fazerem o percurso a quem têm direito.

Há razões, portanto, internas e externas à escola, que explicam a “expulsão” e a reprovação dos meninos populares (FREIRE, 2000b, p. 35, grifo do autor).

108 Entrevista cedida à revista Escola Nova em 26 fev. 1989, tendo Freire assumido a Secretaria

Municipal da Educação de São Paulo em 1º de janeiro de 1989. In: FREIRE, P. A educação na cidade. 4. ed., São Paulo: Cortez, 2000b, p. 35.

E não a toa deixam a escola, completa o educador: “A realidade com que eles têm que ver é a realidade idealizada de uma escola que vai virando cada vez mais um dado aí, desconectado do concreto” (FREIRE, 2000b, p. 30).

Arrematando suas argumentações Freire (2000b, p. 22) declara: “A experiência dos meninos populares se dão preponderantemente não no domínio das palavras escritas mas da carência das coisas, no dos fatos, no da ação direta”.

É óbvio, por exemplo, que crianças a quem falta a convivência com palavras escritas ou que com elas têm pequena relação, nas ruas e em casa, crianças cujos pais não lêem livros nem jornais, tem mais dificuldades em passar da linguagem oral à escrita. Isto não significa, porém, que a carência de tantas coisas com que vivem crie nelas uma “natureza” diferente, que determine sua incompetência absoluta (FREIRE, 2000b, p. 22-23, grifo do autor).

Já se sabe que da Escola Normal eu sai alimentada pela visão puramente disciplinar e convicta de que:

[...] o processo de alfabetização começava e acabava entre as quatro paredes da sala de aula e que a aplicação correta do método adequado garantia ao professor o controle do processo de alfabetização dos alunos (WEISY, 1985; DUARTE, 2006, p. 28).

No entanto, ensina-me Ferreiro (1985), a partir do Seminário sobre Alfabetização realizado na FDE, no ano de 1984, que:

[...] o processo de alfabetização nada tem de mecânico, do ponto de vista da criança que aprende. Essa criança, se coloca problemas, constrói sistemas interpretativos, pensa, raciocina e inventa, buscando compreender esse objeto social particularmente complexo que é a escrita como ela existe em sociedade (FERREIRO, 1985, p. 7).

Como se vê, a afirmação é clara e objetiva, e passou a constituir-se no arcabouço de minhas compreensões teórico-práticas no campo da alfabetização e, nas décadas de 80 e 90, nos fundamentos dos movimentos de formação continuada dos professores de primeira a quarta série do então primeiro grau (hoje, ensino fundamental), sobretudo dos professores que, no ano de 1984, efetivavam a implantação do Ciclo Básico - Programa da Secretaria de Estado da Educação de

São Paulo, centrado no período de escolarização no âmbito da primeira e segunda séries.

Atualmente, a formação profissional dos educadores que atuam no Ensino Fundamental e Médio da Educação Básica está posta sob a responsabilidade dos mestres e doutores formadores do ensino superior.

Na oportunidade do Seminário referido, pude aprender sobre os três importantes elementos do processo de aprendizagem – S – O – S: sobre quem ensina, sobre quem aprende e sobre “a natureza do objeto de conhecimento envolvendo esta aprendizagem” (FERREIRO, 1985, p. 9), os quais descartam radicalmente a horizontalidade e a linearidade das relações entre eles.

Esses elementos que formam uma tríade (FERREIRO, 1985, p. 9), e não mais concebidos como “entidade única” (p. 9) podem assim ser representados:

Figura 3 – Representação imagética da tríade dos elementos do processo de aprendizagem Fonte: Elaborado pela pesquisadora (2014)

Atribuo ao olhar interdisciplinar a capacidade de hoje poder captar as diferenças capilares entre conceber a escrita como “um código de transmissão gráfica das unidades sonoras” (FERREIRO, 1985, p. 10), ou, como um “sistema de representação da linguagem” (p. 10). Mais ainda, compreender as “consequências pedagógicas” (p. 10) decorrentes desta e daquela concepção.

Sujeito que aprende Sistema de representação

alfabética da linguagem Concepção de linguagem dos professores Concepção de

linguagem

dos aprendizes Objeto de conhecimento Sujeito que ensina

Os estudos e pesquisas de Ferreiro (1985) e de seus seguidores têm-nos mostrado que nenhuma representação é definidamente igual à realidade representada. Sendo assim, quando a representação garante adequação com a realidade representada, temos nisso indicadores de que, tanto uma quanto a outra representação realidade possuem “algumas propriedades e relações” que indicam a relação de pertinência contém/está contido, mutuamente encontradas nas suas propriedades e relações.

Ocorre, entretanto, que uma dada realidade tem propriedades e relações próprias assim como determinada forma de representá-la.

Desse modo, a visualização desse aspecto fundamental do processo de alfabetização permitiu-me descortinar o mundo de condições contraditórias em que estava mergulhada a minha concepção de escrita e a de Jairo.

Eu a pensava e a operava valendo-me da convicção de que se tratava de mera apropriação do código linguístico da transcrição gráfica de suas unidades sonoras.

Para o pequeno Jairo, entretanto, a escrita só poderia corresponder à representação da linguagem falada – uma questão de lógica interna da maioria das crianças iniciantes do processo de alfabetização, ou seja, a escrita mantendo fidelidade indiscutível com os moldes da fala – nada mais natural e inteligente!

A guardiã implacável da língua – objeto social por excelência –, é a escola, que submete o aluno em franco processo de aprendizagem ao modelo de ensino adotado pela instituição, o qual não se deve nem tocar, quanto menos atuar sobre ele. Pode sim, reproduzi-lo fielmente, sem a menor intenção de modificá-lo, denuncia Ferreiro (1993).

Sobre essas duplas e contrárias visões, Ferreiro (1985) pondera:

[...] A diferença essencial é a seguinte: no caso da codificação, tanto os

elementos como as relações já estão pré-determinados; o novo código

não faz senão encontrar uma representação diferente para os mesmos elementos e as mesmas relações. No caso da criação de uma

representação, nem os elementos nem as relações estão predeterminadas (FERREIRO, 1985, p. 12, grifo do autor).

A autora solidifica minhas compreensões sobre o fenômeno linguístico quando estende o pensamento para: “[...] a construção de uma primeira forma de representação costuma ser um longo processo histórico, até se obter uma forma final de uso coletivo” (FERREIRO, 1985, p. 12).

Ao perceber a pertinência dos ensinamentos de Ferreiro, passei a refletir sobre a intencionalidade das políticas de formação dos profissionais da educação e a dialogar com o meu eu indagativo – queriam elas verdadeiramente que a todos os professores desta ou daquela escola, chegassem, de fato e de direito, a esses saberes? Esses instrumentos teóricos que podem iluminar suas práticas pedagógicas?

Mergulhada nesses pensamentos, um sentimento de gratidão invadiu-me a alma, por estar ali, como havia estado com Cagliari, e, ainda que um tanto tardio, reportei-me ao meu Jairo, só para ter a certeza de vez que realmente ele escrevia e lia!

Por ironia do destino, naquele tempo faltava-me saber que a invenção da escrita tem uma milenar história de construção e que, portanto, antes de tomá-la como um ato mecânico e predeterminado, é ético e politicamente correto pensá-la como um sistema de representação da linguagem. Assim como o sistema de representação da linguagem, também o dos números impõe dificuldades conceituais às crianças, no início do processo de escolarização básica.

Num ou noutro sistema representativo, as crianças tentam trilhar os mesmos caminhos percorridos pelos seus inventores, usando da faculdade intelectiva para fazê-lo, ou seja, pensando acerca de – essa é a razão pela qual as crianças empregam esforços cognitivos na reinvenção de ambos os sistemas, na tentativa inteligente de apreendê-los processualmente para, então, aprendê-los significativamente.

Ferreiro (1985) melhor elucida essa ideia com a seguinte afirmação:

Para poderem se servir desses elementos como elementos de um sistema (as crianças) devem compreender seu processo de construção e suas regras de produção, o que coloca o problema epistemológico fundamental: qual é a natureza da relação entre o real e a representação? (FERREIRO, 1985, p. 13, grifo nosso).

Dessa forma a autora, apoiada nos pressupostos da psicogênese piagetiana109, foi então me fazendo ver a exigência de novas formas metodológicas

na lida com a construção da leitura e da escrita.

Esclarecendo-me que embora processos distintos, eles se explicitam, se tangem e se efetivam pela complementaridade. Que o aluno não é objeto de conhecimento, mas sujeito dele e, portanto, que é só na completude conceitual do objeto a ser aprendido que o aluno pode se apropriar do conhecimento dele.

O professor deve exercer a função mediadora nesse processo interativo, permitindo o conflito originado do confronto de ideias e das hipóteses formuladas pela criança no esforço de apropriação do objeto de conhecimento – nada mais interdisciplinar!

Isso me fez perceber novamente que, se naquele ato pedagógico eu tivesse solicitado ao Jairo dizer do seu escrito teria aberto precioso espaço para o encontro de nossas leituras – EU/OIA/ODILA e, portanto, não cairia na armadilha da ignorância de ter recomendado a sua mãe que cuidasse do provável déficit de audição e de visão do pequeno.

Melhor ainda, teria permitido ao Jairo dizer-se, rever-se, ser e vir a ser.

O véu que me foi retirado cobria a concepção e a prática tradicional de alfabetização que privilegia o método em detrimento do sujeito da aprendizagem. Este era o fato que me levava à primazia do desenvolvimento das habilidades de escrita em substituição desastrosa da aprendizagem da língua escrita.

A concepção tradicional, como já percebera antes, com Cagliari, considera importante as discriminações visuais e auditivas, as associações entre a grafia e a sonorização, ou seja, entre sons e letras – os aspectos motores e preceptores – o que redunda em conceber a aprendizagem como uma técnica, e não como um processo dinâmico e de reconhecida complexidade.

Por isso minha insistência nos exercícios de cópia, ditado, fixação, exacerbadas e aplicados também às tarefas a serem feitas em casa. Como?!

109Psicogênese piagetiana: O construtivismo piagetiano parte do princípio de que o desenvolvimento

da inteligência é determinado pelas ações mútuas entre o indivíduo e o meio em que ele vive [...] a explicação de como a inteligência humana se desenvolve (LAGO, 2004, p. 55).

A teoria de Piaget é clara na recomendação de cuidados nas passagens do aluno do estágio sensório-motor (raciocínio infantil que é capaz de aprender sobre a função simbólica da linguagem) e a reversibilidade (raciocínio próprio das crianças por volta dos sete/oito anos, que caracteriza a travessia do estágio pré-operatório para o operatório concreto), foi “estudada” na Escola Normal, porém não interiorizada na complexidade de seus conceitos, os quais, no processo de desenvolvimento da inteligência, favorecem a apreensão do sentido e do significado das letras e dos números.

Piaget afirma que “Para conhecer os objetos o sujeito deve agir sobre eles e, portanto, transformá-los, deve deslocá-los, ligá-los, combiná-los, dissociá-los e reuni- los novamente [...] Conhecer é, portanto, agir sobre os objetos e transformá-los” (LOCH, 1995, p. 17).

Em síntese, os estudos e pesquisas de Ferreiro e de seus seguidores, formados na base da teoria construtivista de Piaget, postulam a construção de conhecimento pelo sujeito que aprende – o pôr a mão na massa, cujo processo de interação com a linguagem escrita há que contar com as competências de saberes docentes como um sistematizador e/ou estimulador desse mesmo processo.

O importante é o professor não se desapartar da ideia de que: “[...] enquanto objeto a escrita se constrói a partir dos mesmos processos descritos por Piaget em muitos outros domínios” (FERREIRO e TEBEROSKY, 1986, p. 28, apud SEBER, 1997, p. 73).

Declara o pessoal do Instituto ECOFUTURO do Programa “Ler é Preciso”:

Escrever a vida é coisa que começa muito cedo, com atividades como recortar, desenhar, segurar um lápis, pintar... Tudo isso prepara a criança para aprender a escrever. Se uma criança tem oportunidade de fazer isso em casa, e também tem a sorte de contar com adultos que lêem para ela, já tem boa parte do caminho andado para se alfabetizar bem (INSTITUTO ECOFUTURO, s.d., p. 12, grifo do autor).

Em face dos achados de Emília Ferreiro, de Madalena F. Weffort e antes delas os estudiosos Piaget, Vygotsky, Luria e outros, defende Freire (2000b) que:

As questões principais na alfabetização são de natureza político-ideológica e científica a que se juntam aspectos técnicos necessários. O ponto de partida é a decisão, a vontade política de fazer, a arregimentação dos recursos, e a formação rigorosa dos educadores e das educadoras (FREIRE, 2000b, p. 118).

4.3 O fenômeno educativo caracterizado no fato pedagógico e fundamentado