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As pedras do caminho e a primeira travessia guiada pela intuição mais que pelo conhecimento elaborado (1968)

Tese antítese síntese.

AS HIPÓTESES

2 A VERDADE HISTÓRICA DA PESQUISADORA

2.3 As pedras do caminho e a primeira travessia guiada pela intuição mais que pelo conhecimento elaborado (1968)

Então... o ano letivo de 1968 tinha início, e eu, entre o estado de graça propiciado pela solenidade de formatura e a preocupação com o vazio aberto pelo muito que se havia de fazer, não vislumbrava chance alguma de trabalho educativo na região sorocabana e territórios circundantes. Meu pai, falecido havia pouco, deixara a mim e a minha mãe a tarefa de continuar a lida, porquanto o irmão mais velho se avizinhava dos tempos de “servir ao exército”, e os menores, dos tempos de ainda viverem os folguedos da infância.

Ao lado de minha mãe, não me faltava a consciência de dar conta da tarefa imposta; a consciência de que é a mudança de atitude a base de toda e qualquer mudança. Na ambiguidade da trilogia dos sentimentos sofrimento / saudade / esperança, que me ferviam o espírito, sentia-me pronta para pôr os pés na estrada, E foi isso que eu fiz!

Consultando aqui e acolá, descobri que estava, na região do Vale do Ribeira, a chance de iniciar no ofício de professor. Era final de janeiro daquele ano, e eu, de malas humildes, mas prontas, rumei para lá! E nada me era familiar! E nada me foi fácil! O ônibus fazia a linha Sorocaba/Registro, por dentro da serra que inspirava tantos mistérios e que parecia sequestrar da minha mente as certezas incutidas na Escola Normal. Levava de tudo, o ônibus: gente, coisas, comidas e até pequenos animais. Parava de quando em quando e nos fazia engolir do pó que ele mesmo levantava da estrada de terra, alguns dos seus trechos mais parecidos com sendas torcidas, crivada de curvas acentuadas, ausência dos acostamentos devidos e presença de buracos, aliás, tão conhecidos em muitas das estradas brasileiras, por onde não trafegam aqueles que delas devem cuidar. Contudo, eu a enfrentei com a coragem reconhecidamente herdada da bravura dos meus pais, mas desconhecia que era tanto!

À medida que o carcomido ônibus rasgava a estrada acostumada a empoeirar, mais e mais ficava para trás o meu universo de apego. Mais me distanciava dos meus.

Paradoxalmente, a sensação de descortino de um novo modo de viver e de lutar pela vida povoava o meus pensamentos e norteava-me os sentidos.

De forma difusa, eu já me sentia educadora convocada ao compromisso comigo mesma, com os meus, com o outro e com a educação.

Não obstante a irrevogável decisão de fazer, esprimida na janela do canto direito de uma poltrona avariada, eu variava em meio aos pensamentos contraditórios e me perguntava: por que devia eu estar ali? E prontamente apontava- me a consciência: “você está aqui por causa do desejo e da necessidade”. A crueza da verdade tinha a morada naquele apontamento, pois, de fato, eu sempre acreditei na capacidade humana e sempre depositei confiança no valor da educação. E, de fato, moviam-me o desejo e a necessidade. Naquelas circunstâncias de vida era

imperioso mudar. Não se tratava de pura opção, mas também de uma questão radical de sobrevivência. E diante da radicalidade que se impunha, resistir seria, antes que um sinal de omissão reprovável, um indicativo de pensamento e de tomada de decisão desinteligentes, antiéticos e apolíticos. Antiéticos porque contrários à minha ética. À ética que norteia a minha particular conduta moral no dia a dia.

Por oportuno, escreve sobre isso Cortella (2007, p. 109), que declara: “Quem tem princípios e valores para decidir, avaliar e julgar está submetido ao campo da ética”. Declara ainda o filósofo que, “[...] se você tem autonomia e liberdade, vive dilemas éticos. Não tem como não vivê-los. E você a eles vai sobreviver melhor quanto mais tiver claro quais são seus princípios e valores” (p. 111).

Dessa forma, entendo que é de acordo com os princípios e valores próprios que cada indivíduo pauta suas decisões, seus julgamentos e suas avaliações, a fim de, desse modo, conseguir ter em paz a consciência. E completa Cortella (2007), a esse respeito:

Integridade é o princípio ético para não apequenar a vida, que já é curta [...] você (se carrega a virtude da sinceridade) obtém um pouco de sossego mental quando aquilo que você quer é também o que você deve e é aquilo que você pode. Quanto mais claros os princípios, mais fácil fica lidar com os dilemas (CORTELLA, 2007, p. 113).

Retomando a questão do desejo e da necessidade, forças que me moviam naquela viagem ao Vale do Ribeira, eu a lembro hoje, situada entre o sonho de ser professora e o sentimento do “ódio fraterno”25, por não ter sobrado para mim um

lugar ao sol perto dos meus.

Rosa (2007, p. 13), que estudou a relação desejo/necessidade, com especial sensibilidade afirma: “[...] toda mudança nasce do casamento entre a necessidade e

25 “Ódio fraterno”: Expressão empregada por Fazenda, ao se referir ao sentimento que medeia a

necessidade de fazer algo e a resistência em fazê-lo. A resistência ao novo que desestabiliza a ordem posta, que mexe com o já sabido e com aquilo que há muito está desgastado. Registros de Memória de Aula no Curso de Doutorado. “Aula Aberta” com representantes de quatro particulares grupos de pesquisa da PUC/SP, numa reflexão interdisciplinar, a saber: Claudio Picollo - FAFLICA (Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes) – GEPI (Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares) - Projeto Pensar e Fazer Arte; Ruy Cezar do Espírito Santo – INTERESPE (Interdisciplinaridade e Espiritualidade na Educação); Arnold José de Hoyos Guevara – NEF (Núcleo de Estudo do Futuro); Pedro Paulo Teixeira Manus - Dir. Faculdade de Direito da PUC/SP em: 18 set. 2014.

o desejo. Se, como estamos vendo, a necessidade já bateu em nossa porta, será preciso despertar o desejo de começar a operá-la”.

De novo, foi exatamente isso que eu fiz! Escolhi agir de acordo com a realidade enfrentada na época. Resolvi atender à intuição de uma história tão criativa quanto desafiante e que apenas se anunciava.

Incorri, é claro, em vários deslizes educativos por inexperiência docente e por firmar a docência na confiança das receitas prontas e infalíveis; arquétipos que nos levam a acreditar que a criança vem para a escola sem conhecimento algum, passando a tê-los somente com os modelos pré-fixados de ensinar e aprender.

Porém, tranquiliza-me sobremaneira as considerações de Cavaco (1991), quanto aos deslizes cometidos no início da atividade profissional.

Diz a autora:

O início da actividade profissional é, para todos os indivíduos, um período contraditório. Se, por um lado, o ter encontrado um lugar, um espaço na vida activa, corresponde à confirmação da vida adulta, ao reconhecimento do valor da participação pessoal no universo do trabalho, à perspectiva da construção da autonomia, por outro lado, as estruturas ocupacionais raramente correspondem à identidade vocacional definida nos bancos da escola ou através das diferentes actividades socioculturais, ou modelada pelas expectativas familiares. Assim, é no jogo de procura de conciliação, entre aspirações e projectos e as estruturas profissionais, que o jovem professor tem de procurar o seu próprio equilíbrio dinâmico, reajustar mantendo, o sonho que dá sentido aos seus esforços (CAVACO26, 1991, p.

137-138, grifo do autor, in: NÓVOA et. al., 1991b).

Contudo, eu não deixava de intuir sobre um tempo novo. Sobre um “tempo de necessária humildade”, como alerta Rosa (2007, p. 103) e defende Fazenda (2001a). Um tempo de ambiguidade em que num só tempo, imaginava eu o caminho da construção de uma política pedagógica crítico-reflexiva, sendo eu a construtora da própria prática e de mim mesma como pessoa e profissional.

A par de inúmeros outros valorosos educadores e atuando em diferentes contextos e âmbitos educacionais, eu trilharia, a partir daquela escola de roça, os caminhos da construção da competência docente e o exercício do compromisso responsável com a educação.

26 Maria Helena Cavaco. Ofício do Professor: O tempo e as mudanças. In: NÓVOA, A. et. al., Profissão Professor. Porto Editora LDA: Portugal, 1991b.

Mal sabia eu que os caminhos a serem construídos seriam percorridos no movimento mesmo da construção e me levariam pelas vivências, afora a experiência da autoria e, sobretudo, da minha repaginação.

É importante aqui consignar que, de fato, não houve propriamente uma omissão no processo de minha formação docente e, por conseguinte, não houve tampouco delito no fenômeno educativo que originou o fato pedagógico dado com o Jairo. Em verdade, eu poderia não ter chegado até aqui, não fosse o ocorrido e, por certo, não tendo deixado a escuridão da caverna, não alcançaria tal experiência. Nesse sentido, foi indispensável errar. O erro foi salutar.

Sobre os caminhos da experiência, posso valer-me da expressão de Moreira José (2011, p. 113):

A autoria pode ser estimulada desde a formação inicial do professor. O docente, responsável por sua formação, necessita adquirir um olhar cuidadoso acerca do discurso individual do aluno, bem como de suas representações coletivas com seus pares e as expressões de seus grupos de trabalho, como pudemos comprovar.

Que os formadores do futuro permitam aos formandos deste século conhecer o mundo para que possam ser-no-mundo. Que com mais vigor possam olhar e ver de onde brota o impulso criador dos alunos. E que a relevância contributiva desta tese possa lhes tocar o espírito de forma a não negarem a necessidade ontológica de sermos mestres de nós mesmos e alunos até o apagar das luzes de nossa existência. E, finalmente, que consigam transformar as futuras gerações em gerações de autoria.