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Tese antítese síntese.

AS HIPÓTESES

2 A VERDADE HISTÓRICA DA PESQUISADORA

2.4 Quem é o Jairo?

 Por que eu o encarava de forma acrítica?  Como era Jairo?

 Quais eram os traços característicos da comunidade local em que Jairo vivia?  Por que desconsiderei o seu “saber de experiência feito”?

Não falo aqui de “verdades acabadas”, mas de “vestígios... lampejos de verdade” (FAZENDA, 2001a, p. 22) reinterpretados e realinhados para intuir sobre o caminho percorrido e sobre “o caminho a seguir” (p. 23).

E sobre o Jairo, tenho eu que me redimir. Jairo... Jairo...

Menino franzino

que vitimado pelo meu engano nos seus poucos sete anos... de pele parda menino pobre pobre menino de uma competência de escrita e leitura doce criatura escondida por trás, das múltiplas carências sofridas... O sentimento de baixa estima era o seu companheiro primeiro o seu tormento! que o assolava de forma cruel!

seus olhinhos de mel sempre abaixo

do queixo m-a-g-r-i-n-h-o... ouvia de muita gente

e até de mim!!! que pena!... não aprende, coitadinho! A despeito de toda desventura...

Vê-se que a supremacia da ideia do aluno padrão, idealizado nos moldes urbanos de classe média, levava-me a encará-lo de forma acrítica associada à consciência ingênua acerca da realidade.

Como se constata, o Jairo não era o aluno padrão! Tampouco o seu contexto de vida atendia ao modelo idealizado.

Mais ainda: eu, a professora, não tive, na formação para o Magistério, nada que me habilitasse para a lida com as especificidades do contexto rural, menos ainda em região cujo desenvolvimento industrial sequer ameaçava a vida simples e humilde do povo caiçara ou do agricultor de subsistência, como era o caso da comunidade em questão.

Poucos eram os assalariados, e estes recebiam o correspondente a um salário mínimo, situação político-econômica suficientemente provocativa da insuficiência do nível sociocultural daquela comunidade. Raramente ultrapassava a quarta série do primeiro grau a escolarização dos pais dos alunos que revelavam grandes dificuldades em acompanhar os filhos na escola.

Os alunos, seus pais e familiares eram de uma simplicidade que emocionava. Eram humildes. De uma humildade que nada tinha a ver com “depreciação de si nem falsa apreciação” (ALVES, in: FAZENDA, 2001a, p. 61)27. Uma humildade não

originária da ignorância de si mesmos; ao contrário, prenha do reconhecimento do que eles não eram. Uma humildade originada do amor à verdade das coisas. Do conhecimento das coisas como elas se apresentam de verdade, humildade – força privada de “demonstração de superioridade”, justamente por conhecerem os próprios limites (ALVES, in: FAZENDA, 2001a, p. 61). E eu não cheguei perguntando absolutamente nada sobre eles. Quem eram, quais sonhos tinham, como percebiam a escola... a “professorinha”... O que já sabiam fazendo parte do “saber de experiência feito” (FREIRE, 2000b, p. 30).

Eu era a professora “formada” numa escola que imprimia zelo e profundidade à ação formativa! Não havia dúvidas: uma escola que garantia às normalistas pleno domínio dos conhecimentos a serem “transmitidos” aos alunos.

27 Claudio Alves. Humildade. In: FAZENDA, I. C. A. Dicionário em construção: Interdisciplinaridade.

A função docente, de pretensa neutralidade, não fixava o olhar “por dentro” da realidade. Olhar para as potencialidades, aspirações, talentos, sentimentos e/ou limitações dos alunos. Os saberes que os habilitava para o embate na vida real não eram valorizados na escola. A orientação era a de que fosse colocada ênfase no saber sistematizado e nos conteúdos disciplinares.

Os familiares de um lado, a escola de outro... e a política bem longe dela! A materialização dessas ideias na sala de aula parecia brincadeira de infância “farei tudo o que o seu mestre mandar...”.

Os caiçaras sabiam muito bem da lida com a terra e com o rio. Sabiam de enchentes. De marés. De mangue. De épocas propícias para o plantio do milho e do arroz nos terrenos encharcados. De ervas que curam e que também podem matar o homem.

Eu não sabia que deles eu haveria de tirar lições para toda a vida. Saberes que me fortaleceriam na carreira profissional e, principalmente, saberes existenciais.

Sabiam eles de opressão, de isolamento, de fé, de resiliência e, para além de tudo isso, sabiam de superação. No entanto, os saberes deles, pensava eu, nada tinham a ver comigo e com os meus saberes e, pior ainda, em nada poderiam auxiliar-me na tarefa de educar e ensinar naquele fim de mundo.

Os caiçaras ribeirinhos sabiam contar causos engraçados e lendas cheias de mistérios. Alguns juravam já terem visto o saci, a mãe d’água, a mula sem cabeça, o lobisomem e outras figuras do folclore brasileiro.

Sabiam trançar o junco e a taboa, e essa arte manual lhes rendia algum ganho e agradava aos forasteiros que vez em quando se entregavam ao sossego do lugar.

De outro lado, os descendentes dos japoneses sabiam do trabalho sério e sistemático iniciado no raiar do dia até o fim dele. Sabiam da obediência e respeito aos pais, aos mais velhos e, sobretudo, do respeito ao professor. Entendiam de mudez e de olhar observador. Sabiam salgar a manjuba e comercializá-la por meio do “vapor”28 que rasgava as águas do Ribeira de Iguape. Sabiam do cultivo e dos

cuidados com os legumes, com as hortaliças, com as frutas, principalmente a

28“Vapor”: Navio propelido por máquina de vapor. [Sin., bras., N.E., pop. (nesta acepç.): vapor do

banana. Sabiam do culto às origens e do pouco que se misturavam com estranhos. Conheciam a tecnologia do campo desenvolvida na época. Pouco se abriam aos estreitamentos de laços de amizades fora dos seus. Tinham autoestima e atitudes que preservavam os valores fundamentais à vida humana, como respeito, responsabilidade, pontualidade, sinceridade, perseverança, tenacidade, entre muitos outros. Discretos, esperavam dos brasileiros atitudes de prudência e de sobriedade, e se mostravam tranquilos no meio deles.

As modalidades de lazer dos moradores do bairro não ultrapassavam os arrasta-pés de sábado à noite, as cantigas de roda e os forrós realizados nos “puxadinhos” de algumas das casas maiores e mais bem construídas, de chão batido ou piso de tijolo cru, e que se arrastavam noite adentro até alcançarem o amanhecer de domingo. E nem precisa dizer que eu estava lá, amanhecendo o novo dia com eles! Até porque o lema infalível para todos era o de que “quem não dança carrega criança”.

No raiar do novo dia era servido, numa ambiência de alegria geral e sob os cuidados das cozinheiras de fogão de lenha, a banana da terra frita com paçoca de carne seca ou frango assado com farofa, a pamonha, o curau, acompanhados com o café “passado na hora” no coador de flanela fina, depois de tê-lo lavado na “água de fervura”, como assim era chamado aquele “duvidoso” hábito higiênico. O café, servido em canecas de ágata nem sempre sem descascados, tomado aos goles quentes por todos, com gosto refletido nos “agardecidos cumpadre, comade”.

Talvez esteja em Dallari (1984) o pensamento político que pode melhor descrever o reino de alegria que presenteava aquele reino de carências. “A experiência tem demonstrado que entre as classes mais humildes, amadurecidas pelo sofrimento, existe mais solidariedade e espírito comunitário do que entre as classes mais ricas e socialmente privilegiadas” (DALLARI, 1984, p. 37-38).

Fora disso, era o jogo de “truco” que atiçava o gosto de um ou outro, algumas vezes.

Lugar de honra, porém, ocupavam as missas realizadas na comunidade quando, uma vez por mês, vinha até o bairro o pároco da igreja da cidadezinha de Sete Barras. Era uma festa para os católicos que reinavam em absoluto, vez que

sobravam poucas pessoas seguidoras de outros credos religiosos. Rezas e novenas também se faziam rotineiramente.

Duas fortes benzedeiras e uma parteira davam conta, em geral, dos cuidados com a saúde dos membros da comunidade, incluindo, por certo, a estimada “professorinha”, que se valia das receitas dos chás e preparados que, segundo elas, eram “tiro e queda” contra noites mal dormidas, indisposições estomacais, dores lombares, picadas de pernilongos, cólicas e quejandos.

Exceção feita aos expressivos produtores de chá, imigrantes japoneses, ou de banana, pequenos sitiantes agricultores donos da terra, restava um grande contingente de lavradores, os quais não contavam com a infraestrutura elementar para o escoamento e comercialização adequados dos seus produtos (mandioca, milho, arroz, feijão e, principalmente, legumes e hortaliças).

Por oportuno, só mesmo a visão crítica, o pensamento e a ação político- pedagógica de Freire (1996) para fundamentar, com a necessária “rigorosidade metódica” e a exigida ética humana, a análise daquele contexto sociocultural e, portanto, da condição de Jairo:

Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres (FREIRE, 1996, p. 39-40).

À parte da pobreza material de Jairo, ele sabia pensar! Pensava certo, independentemente de ser inferiorizado e subsumido. Sabia reconhecer, como nenhum outro daquela turma, a sua mudez, pois que lhe tinha todo sentido. Quando chamei a sua mãe à escola, para dizer das dificuldades de aprendizagem do filho, ela se mostrou entre perplexa e frustrada, já que conhecia tão bem os “saberes da experiência feito” (FREIRE, 1996) de Jairo e a desenvoltura com que resolvia, em casa, os seus problemas, o dos pais e dos seus irmãos.

Lembro-me, como se fosse hoje, de seu olhar decepcionado e sobremaneira envergonhado ao me dizer29:

─ “Nossa... fessorinha... lá cum nóis ele sabe tudo... é esperrrto que nem o quê... vive com a carrrtilha que a senhora deu na mão e não disprega o zóio das letra... Num dá pra intendê direito... fais conta co pai na cidade que percisava a senhora vê...”.

Eu disse:

─ Será, Dona... (não me recordo o nome dela!), que ele não precisa ir ao médico para um exame da vista, dos ouvidos... quem sabe não enxerga bem, não ouve bem...

Ela expôs:

─ Médico? Fessorinha, ih... a senhora sabe... é tão difici, aqui ninguém vai no médico... só lá no postinho de Sete Barras... mai...”

E eu retomei:

─ Eu vou tentar mais um pouco, para ver se ele aprende... Ela disse:

─ Mas, quar é o pobrema? Eu respondi:

─ O problema é que ele conhece as letras quando as vê, quando pega nas mãos os cartões do alfabeto que eu faço em cartolina. Reconhece e lê... mas quando eu mando escrever ele troca todas elas. Troca o lugar das letras... as letras e a quantidade de letras na palavra... entende? Ele, quando escreve, “come” letras. Por exemplo, (levei a pobre mãe até o quadro negro e fiz o que segue):

Eu mostro a letra E para o Jairo. Ele lê certinho: E. Eu mostro a letra U. Ele lê U, direitinho...

Mas quando eu falo: Então, agora, Jairo, escreva EU.

29 Transcrição literal do diálogo com a mãe de Jairo, para manter fidelidade com a oralidade própria e

Ele escreve assim: OIA

Veja a senhora: uma palavra tão curtinha e ele não consegue escrever!... Ela se dirige ao filho que aguardava no cantinho da lousa e diz: “OIA num é memo EU, fio... prestatenção na fessorinha...”

Jairo, acometido por um receio sem comparação com nada, balbuciou:

─ “Manhê... eu não escrevi a senhora, eu escrevi ela”, apontando o dedinho trêmulo para mim.

Hoje me pergunto e pergunto ao leitor deste trabalho: ─ Por acaso, há palavras que possam explicar a perplexidade causada por uma resposta dessas?!

E até eu aprender que

A criança na fase de alfabetização, more ela na favela ou no palácio, está na fase mágica, onde a lógica é uma ótica muitas vezes vesga, a tolher sua imaginação criadora [...] A lógica? É em nome dela que se cometem os maiores assassinatos na imaginação criadora das crianças! (DINORAH, 1990, p. 55-56).

E até eu aprender a ler a leitura silábica do Jairo e a leitura da palavra e do mundo que ele realizava com propriedade ímpar, o ano letivo chegou ao fim e eu, mesmo angustiada e intuindo sobre algo que me faltava, o reprovei na primeira série, até porque se não o fizesse a Inspeção Escolar o faria no meu lugar. Nada mais perverso para os dois sujeitos da aprendizagem e nada mais contrário aos avanços do desempenho escolar de Jairo. Um drama de formação e formador restados prejuízos de toda ordem ao menino e aos seus indefesos pais. Uma perda irreparável para a educação, pois um brasileirinho a mais teve ultrajada a sua capacidade de aprender!

Aponta Dallari (1984, p. 37) que “Evidentemente é muito difícil o indivíduo marginalizado e dominado descobrir sozinho que dispõe de meios para reagir”. Um oprimido sabendo-se como tal, porém sem qualquer instrumento de luta que o tornasse livre da opressão. Não do opressor, porque este Jairo o amava! Decididamente, uma lástima!

Apoiada em Fazenda (2003), eu percebo que naquelas circunstâncias não poderia cumprir com minha tarefa, porque nem desconfiava que devesse insistir na descoberta de como Jairo pensava, tal qual era o seu pensamento.

Não conseguiria captar a sua linguagem real, pois só tinha os olhos e os ouvidos voltados para a linguagem ideal, formal, e, por isso, não percebia aquela realidade. Nem em sonhos captava a relação entre linguagem e pensamento.

Foi me dado saber, muitos anos depois do Jairo, que na abordagem sócio- histórica de Vygotsky (S.d.) o desenvolvimento cognitivo humano se dá na relação entre linguagem e pensamento, considerado o ambiente social sobremaneira relevante no desenvolvimento cognitivo. Para Vygotsky (S.d.), o conhecimento é construído pelo indivíduo nas interações sociais. Tampouco me coloquei a indagação, como o fez Fazenda: “Em que medida uma teoria do falar, ponto de vista crítico, encontra uma teoria do educar, ponto de vista pedagógico? Em que medida a palavra é comunicação? Em que medida a educação é comunicação?” (FAZENDA, 2003, p. 28).

Desse modo, Fazenda me fez compreender o que Gusdorf, em 197030, a fez

assenhorar-se da

[...] ambiguidade da palavra, palavra como engajamento, seja no individual ou no social, como elemento constitutivo do encontro. [...] diálogo na palavra escrita, chegando até a construção de uma ética da palavra onde a linguagem, como modo de ser, é constitutiva do mundo do ser (FAZENDA, 2003, p. 28).

Da mesma forma, Ricoeur (1971) a respalda na análise das “[...] relações entre acontecimentos e sentido da palavra, concluindo com a importância de se integrar, compreender, explicar e interpretar, para conhecer o interior da palavra pronunciada” (FAZENDA, 2003, p. 28).

A escola era, para a comunidade, o lugar mais sagrado que podia haver naquele rincão longínquo. A professora, mais sagrada ainda!

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Georges Gusdorf. A fala. In: FAZENDA, I. C. A. (org.) Interdisciplinaridade: qual o sentido? São

Se àquela época eu tivesse desenvolvido consciência sobre tudo isso, talvez houvesse construído naquela sala de aula outra realidade, pois só a consciência pode fazê-la

São estas as razões pelas quais tenho zelado pela lembrança viva do Jairo e de sua escrita durante todos esses anos. Carreguei-a comigo por todo o chão pisado de lá para cá. Aquele povo sabia dos segredos da vida.

2.5 A escrita de Jairo e a desestabilização do modelo convencional do ensino