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educação doméstica no Brasil

CORAÇÃO DO MUNDO LIVRE

Inexiste regulamentação legal quanto à prática denominada homeschooling no Brasil. Não obstante, cresce o número de famílias que a ela recorrem como alternativa à crise da educação pública e privada. Em outros países, porém, o homeschooling encontra ampla aceitação no meio social e é adotado por uma miríade de famílias, sobretudo nos Estados Unidos, resguardadas pela segurança jurídica garantida pelos precedentes das Cortes ianques11.

É fato que o homeschooling obtém mais adeptos em países de história e tradição anglo- saxã. Em 2015, havia 150.000 homeschoolers na África do Sul, de 20 a 100 mil no Reino Unido

11Brian Ray esclarece que a educação domiciliar tornou-se de “uma prática de famílias que alguns observadores

opinaram ser da margem da sociedade para ser comumente considerada uma opção educacional viável pelas famílias americanas convencionais”. Na versão original: “Homeschooling changed from being a practice of families that some observers opined were the fringe of society to being commonly considerer a viable educational option by mainstream American families”. RAY, Brian. A Review of research on Homeschooling and what might educators learn? In: Pro-Posições. V. 28, N. 2 (83) | Maio/Ago. 2017 85-103, p. 86. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pp/v28n2/0103-7307-pp-28-2-0085.pdf>. Acesso em: 18/08/2018.

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e de 80 a 95 mil no Canadá. Todavia, havia também de 70 a 100 mil na Rússia e de 12 a 23 mil na França.12

Apesar de existir uma pluralidade de razões particulares para o recurso ao ensino domiciliar, pode-se resumi-las a duas: uma empírica, decorrente da eficácia do método, e uma ideológica, referente às diretrizes pedagógicas do ensino.13

Nos Estados Unidos da América, havia cerca de 1,8 milhão de estudantes em educação domiciliar em 2012, ou seja, 3,4% da população total em idade escolar. Observa-se um acréscimo substancial em relação ao ano de 1999, em que havia 850.000 (1,7% apenas). Entre as razões evocadas pelos pais para recorrer à prática, o desejo de proporcionar sólida formação religiosa (64%) e moral (77%) é preponderante.14

Vale pontuar que, já no século XVII, a Colônia de Plymouth, posteriormente fundida com a Colônia de Massachusetts, mantinha instituições escolares e impunha a frequência escolar obrigatória. Não é de surpreender que, após a Revolução, a Commonwealth of Massachusetts foi o primeiro ente federado nos Estados Unidos a estabelecer o ensino básico universal compulsório e impor sanções aos pais que não submetessem seus filhos à educação institucional, inclusive com a possível perda da guarda. Os demais estados seguiram paulatinamente o mesmo caminho, sendo o último o Mississipi, em 1918.15

O avanço da educação estatal nos estados culminaria, inevitavelmente, em disputas de toda ordem, muitas delas judicializadas. A doutrina do judicial review, ínsita ao constitucionalismo americano, permitiu que a Suprema Corte, em última instância, extirpasse do direito ianque leis autoritárias referentes à educação das crianças.16

12GLOBAL HOME EDUCATION CONFERENCE 2016. Homeschooling nos EUA tem mais de 2 milhões de

adeptos; saiba como é o ensino em casa em outros países. Disponível em: <http://www.ghec2016.org/pt- br/content/nos-eua-2-milh%C3%B5es-praticam-homeschooling-saiba-como-%C3%A9-em-outros-

pa%C3%ADses>. Acesso em: 21/08/2018.

13BREWER, Jameson T.; LUBIENSKI, Christopher. Homeschooling in the United States: Examining the

Rationales for Individualizing Education. In: Pro-Posições, V. 28, N. 2 (83), Maio/Ago. 2017. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pp/v28n2/0103-7307-pp-28-2-0021.pdf>. Acesso em: 18/08/2018.

14UNITED STATES DEPARTMENT OF EDUCATION. Statistics About Nonpublic Education in the United

States. Disponível em: <https://www2.ed.gov/about/offices/list/oii/nonpublic/statistics.html#homeschl>. Acesso em: 04/08/2018.

15CASAGRANDE, Cássio. Homeschooling no STF e a Jurisprudência dos EUA. Disponível em:

<https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/homeschooling-no-stf-e-a-jurisprudencia-dos-eua-28112017>. Acesso em: 05/08/2018.

16Para melhor compreensão histórica e doutrinária acerca da judicial review, é imprescindível recorrer à lição de

Hamilton: “Define-se Constituição limitada como texto que contém específicas exceções à autoridade do Poder Legislativo. Como, por exemplo, leis penais que determinem a desnecessidade do direito de defesa e leis ex-post- facto. Limitações desta espécie apenas podem ocorrer através da atuação das Cortes de Justiça, cuja competência deve ser a de declarar que todos os atos nulos todos os atos contrários à Constituição. [...] A interpretação das leis

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Em Meyer v. Nebraska, a Corte entendeu que a proibição do ensino em línguas que não a Inglesa em escolas privadas daquele estado era inconstitucional.17 Em Pierce v. Society of Sisters, a Corte concluiu unanimemente que uma lei estadual do Oregon que exigia a matrícula obrigatória em escolas públicas era contrária à Constituição. O Justice James C. McReynolds, que elaborou a Opinion of the Court nesse caso, destacou brilhantemente em seu voto que “a criança não é mera criatura do Estado” (The child is not mere creature of the State).18

Mais recentemente, em 1972, no icônico Winconsin v. Yoder, a Suprema Corte entendeu que famílias Amish estariam protegidas pela Primeira Emenda, mediante a Free Exercise Clause19, da imposição a seus filhos do ensino escolar compulsório até a 8ª série.20 Trata-se de uma decisão histórica, que consiste no principal sustentáculo jurisprudencial para a prática da educação domiciliar nos Estados Unidos.

O então Chief Justice Warren Burger elaborou a Opinion of the Court, destacando o perigo que o interesse estatal representaria in casu para a liberdade religiosa (em tradução livre):

O impacto da lei de frequência compulsória sobre a prática da religião Amish dos réus é não apenas severa, mas inescapável, porque a lei de Wisconsin os obriga afirmativamente, sob ameaça de sanção criminal, a realizar atos inegavelmente em desacordo com princípios fundamentais de suas crenças religiosas. [...] Tampouco é o impacto da lei de frequência obrigatória limitado a grave interferência em importantes princípios da religião Amish de um ponto de vista subjetivo. Carrega consigo precisamente o tipo de perigo objetivo ao livre exercício da religião que a Primeira Emenda foi projetada para prevenir. Como os registros mostram, a frequência escolar obrigatória à idade de 16 anos para crianças Amish porta consigo uma ameaça muito real de minar a comunidade e a prática religiosa Amish como existem hoje; [...].21

é própria das Cortes de Justiça. A Constituição deve ser resguardada pelos juízes como lei fundamental. Ela, dessa forma, pertence a eles para fixar o seu significado, bem como para fixar o significado de qualquer ato particular advindo do Poder Legislativo”. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. Belo Horizonte: Líder, 2003.

17Cf. LEGAL INFORMATION INSTITUTE. Meyer v. State of Nebraska. Disponível em:

<https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/262/390>. Acesso em: 05/08/2018.

18Idem. Pierce v. Society of Sisters. Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/268/510>.

Acesso em: 05/08/2018.

19“Congress shall make no law respecting the establishment of religion or abridging the free exercise thereof”.

Em tradução livre: “O Congresso não fará lei referente ao estabelecimento de religião ou restringindo seu livre exercício”. Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos. UNITED STATES SENATE. Constitution of the

United States. Disponível em:

<https://www.senate.gov/civics/constitution_item/constitution.htm?utm_content=buffer05951>. Acesso em: 05/08/2018.

20Cf. LEGAL INFORMATION INSTITUTE. Wisconsin v. Yoder. Disponível em:

<https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/406/205>. Acesso em: 05/08/2018.

21Na versão original: “The impact of the compulsory attendance law on respondents' practice of the Amish religion

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A conclusão da Corte é, portanto, no sentido de que “a Primeira e a Décima Quarta Emendas proíbem o Estado de obrigar os réus a fazer com que suas crianças frequentem o ensino médio formal à idade de 16” (tradução livre).22 A Primeira Emenda protege

constitucionalmente, entre outros direitos, a liberdade religiosa, enquanto a Décima Quarta, entre outros, o devido processo legal.23

A preeminência da liberdade religiosa (sobretudo na educação das crianças e adolescentes) em oposição aos interesses legislativos fez de Wisconsin v. Yoder uma peça preciosa na defesa judicial das liberdades individuais e do Estado limitado em seu próprio berço, a América.

Tais fundamentos decisórios são imprescindíveis para a justificação e legitimação constitucional em abstrato do ensino domiciliar. São inclusive plenamente compatíveis com a Constituição brasileira. Afinal, é exatamente por motivos morais e religiosos que parte significativa das famílias que recorrem ao homeschooling justifica sua atitude. Dessa forma, devem ser analisados com prudência, receptividade e compreensão por parte dos intérpretes constitucionais brasileiros ao tratarem da matéria.

sanction, to perform acts undeniably at odds with fundamental tenets of their religious beliefs. [...] Nor is the impact of the compulsory attendance law confined to grave interference with important Amish religious tenets from a subjective point of view. It carries with it precisely the kind of objective danger to the free exercise of religion that the First Amendment was designed to prevent. As the record shows, compulsory school attendance to age 16 for Amish children carries with it a very real threat of undermining the Amish community and religious practice as they exist today;”. Idem. Wisconsin v. Yoder. Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/406/205#writing-USSC_CR_0406_0205_ZO>. Acesso em: 05/08/2018.

22Na versão original: “For the reasons stated we hold, with the Supreme Court of Wisconsin, that the First and

Fourteenth Amendments prevent the State from compelling respondents to cause their children to attend formal high school to age 16”. Ibidem.

23Já foi citado anteriormente o trecho da Primeira Emenda que protege o livre exercício religioso. Quanto à Décima

Quarta, merece nota o seguinte excerto, em tradução livre: “Seção 1. Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição são cidadãs dos Estados Unidos e do Estado onde residirem. Nenhum Estado fará ou aplicará nenhuma lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; tampouco algum Estado deprivará nenhuma pessoa da vida, liberdade, ou propriedade, sem o devido processo legal; tampouco negará a alguma pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis”. Na versão original: Section 1. All persons born or naturalized in the United States and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws. UNITED STATES SENATE. Constitution of the United States. Disponível em: <

https://www.senate.gov/civics/constitution_item/constitution.htm?utm_content=buffer05951#amendments>. Acesso em: 05/08/2018.

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2. “DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO E DA FAMÍLIA”: A EDUCAÇÃO