• Nenhum resultado encontrado

2 HISTÓRICO E PANORAMA ATUAL DA CONSOLIDAÇÃO E DA CODIFICAÇÃO DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

APONTAMENTOS SOBRE OS MOVIMENTOS DE RECODIFICAÇÃO E DE CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

2 HISTÓRICO E PANORAMA ATUAL DA CONSOLIDAÇÃO E DA CODIFICAÇÃO DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

Quando da chegada dos portugueses ao Brasil, os indígenas apresentavam diferentes técnicas de resolução de conflitos e aplicações de penas, com preponderância das chamadas vingança privada, vingança coletiva e pena de talião, desprovidos de qualquer documento que se aproximasse de um Código. Devido ao primarismo de suas práticas punitivas, as tribos indígenas que habitavam o Brasil em nada influenciaram a legislação brasileira.14

Em 1445, como insurgência da elite da época, buscando limitar e regulamentar o poder do rei, foram concluídas em Portugal as Ordenações Afonsinas, tendo como base o direito canônico e o direito romano. Com a colonização, foi este o primeiro documento escrito que vigeu no Brasil. Nestas Ordenações, o crime era, além de tudo, um pecado, razão pela qual trazia a ideia de injusto.

Mesmo que arcaico aos olhos contemporâneos, as Ordenações Afonsinas já seguiam um sistema, apresentando unidade, coerência e completude.15 O juiz devia ter a lei como base, mas

13 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre a Common Law, Civil Law e o Precedente Judicial. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2006, p. 763.

14 PIERANGELLI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica. Bauru: Jalovi, 1980, p. 5-6. 15 Forte doutrina diverge da opinião transcrita, ao estabelecer que os preceitos das Ordenações “se aglutinavam em

uma estrutura primária e rudimentar de indisfarçável empirismo. Falta ao Livro V uma parte geral; e na parte especial, os delitos se enumeram casuisticamente, sem técnica apropriada, numa linguagem (muitas vezes pitoresca) em que falta o emprego de conceitos adequados do ponto de vista jurídico. As figuras delituosas se amontam sem nexo, na ausência de espírito de sistema para catalogá-las racionalmente, formando muitas vezes verdadeiros pastiches, tal confusa e difusa redação dos textos em que se condensam as condutas delituosas e respectivas sanções”. (MARQUES, José Frederico. Curso de Direito Penal, Propedêutica Penal e Norma Penal. v. I. São Paulo: Saraiva, 1954, p. 83).

HUMANIDADES & TECNOLOGIA EM REVISTA (FINOM) - ISSN: 1809-1628. Ano XII, vol. 13- Jan- Dez 2018

106

julgava conforme sua íntima convicção: “é vista por nós a referida lei e declaramos o que entendemos acerca dela, apesar do conhecimento de tais feitos pertencer principalmente aos juízes eclesiásticos, os quais devem julgar segundo o que acharem por direito”.16

A maior dificuldade encontrada neste período foi a de dar publicidade a estas leis, uma vez que as Ordenações Afonsinas eram manuscritas, extensas e de trabalhosa reprodução. Cabe ressaltar, entretanto, que a ideia de legislação extravagante surge somente após estas Ordenações.

Em 1521, entram em vigor as Ordenações Manuelinas, que se aproximam em muito com uma Consolidação, pois D. Manoel apanhou as Ordenações Afonsinas e adicionou as legislações extravagantes da época efetuando, ainda, o acréscimo de outras normas. Manteve- se a estrutura das Afonsinas, com a adição de alguns institutos, e a preocupação com a acessibilidade das pessoas ao texto legal e à justiça real.

A acessibilidade ao texto legal se deu notadamente com a chegada da imprensa trazida pelos judeus. O alto custo da impressão da época não freou os ânimos de Dom Manuel I a tornar as ordenações conhecidas em todo reino.

Após isto, as Ordenações Filipinas substituíram as anteriores. Das Ordenações, a Filipina foi que teve maior aplicação no Brasil.

Espelho, onde se refletia, com inteira fidelidade, a dureza das codificações contemporâneas, era um misto de despotismo e de beatice, uma legislação híbrida e feroz, inspirada em falsas ideias religiosas e políticas, que invadindo as fronteiras da jurisdição divina, confundia crime com pecado, e absorvia o indivíduo no Estado fazendo dele um instrumento. Na previsão de conter os maus pelo terror, a lei não media a pena pela gravidade da culpa; na graduação do castigo obedecia, só, ao critério da utilidade. Assim, a pena capital era aplicada com mão larga; abundavam as penas infamantes, como o açoite, a marca de fogo, as galés, e com a mesma severidade que se punia a heresia, a blasfêmia, a apostasia, a feitiçaria, eram castigados os que, sem licença de El- Rei e dos Prelados, benziam cães e bichos, e os que penetravam nos mosteiros para tirar freiras e pernoitar com elas. A pena de morte natural era agravada de modo cruel de sua inflição; certos criminosos, como os bígamos, os incestuosos, os adúlteros, os moedeiros falsos eram queimados vivos e feitos em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura pudesse haver memória.17

Cumpre observar que entre as Ordenações Manuelinas e Filipinas, vigeu o chamado Código de D. Sebastião, o que em verdade mais se aproxima de uma Consolidação, pois a

16 No original: “E vista per nós a dita ley, declarando acerca dela dizemos, que pero o conhecimento de taaes feitos

pertença principalmente aos Juizes Ecclefiafticos, os quaees os devem julgar fegundo acharem per direito” (Ordenaçoens Do Senhor Rey Dom Affonso V, livro V, título primeiro, n. 4).

HUMANIDADES & TECNOLOGIA EM REVISTA (FINOM) - ISSN: 1809-1628. Ano XII, vol. 13- Jan- Dez 2018

107

mando deste rei, Duarte Nunes de Leão reuniu as leis extravagantes que foram sendo criadas esparsamente às Manuelinas, dando origem àquele “Código”.

Enfim, veio o Código Criminal do Império (1830), rompendo os paradigmas de aplicações da pena, as quais, contudo, não mediam a gravidade da culpa, mas se preocupavam em conter o mau pelo terror, bem como consideravam a condição e os títulos que possuía o criminoso.

Toledo18 ressalta ser tal Código – o primeiro do Brasil – motivo de orgulho para os estudiosos brasileiros, tanto pelo que representa de desvinculação com o anterior sistema penal medieval, por ele revogado, quanto pelo que significa de expressão de ideias liberais e humanistas, nascidas com o Iluminismo, e pela singular circunstância histórica de situar-se entre os primeiros, no mundo, a adotar tais ideais, constituindo um monumento legislativo.

Com a proclamação da República e diante das várias mudanças drásticas ocorridas no período, como a abolição da escravidão, tornou-se de extrema necessidade readaptar a lei penal à nova fase que passava o país. Foi pelo Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, que surgiu o chamado Código Penal Republicano.

Sobre este diploma, pontua Bruno19:

O primeiro Código Penal da República foi menos feliz que o seu antecessor. A pressa com que foi concluído prejudicou-o em mais de um ponto, e nele a crítica pode assinalar, fundadamente, graves defeitos, embora muitas vezes com excesso de severidade. Não tardou a impor-se a ideia de sua reforma, e menos de três anos depois da sua entrada em vigor, já aparecia o primeiro projeto de Código para substituí-lo.

Com as numerosas críticas ao Código Penal Republicano, diversas leis extravagantes foram criadas, na tentativa de reformá-lo, criando um verdadeiro emaranhado de normas. Coube ao Desembargador Vicente Piragibe realizar a incorporação dessas leis esparsas ao Código Penal de 1890, nascendo assim a Consolidação das Leis Penais, conforme o Decreto n. 22.213, de 14 de dezembro de 1932. Os preceitos inovadores foram colocados em parágrafos, com formatação gráfica diferente, conservando-se a numeração do Código.20

18 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 59. 19 BRUNO, Aníbal. Direito Penal. V. I, T. I. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 180.

HUMANIDADES & TECNOLOGIA EM REVISTA (FINOM) - ISSN: 1809-1628. Ano XII, vol. 13- Jan- Dez 2018

108

No mesmo sentido, expõe Garcia21 que o vultuoso número de leis baixadas em

complemento ao Código Penal de 1890, criando excessiva quantidade de disposições, dificultavam a solução dos problemas jurídicos, eis que embaraçosa a sua consulta e árdua a obrigação de lidar com elas:

O Desembargador Vicente Piragibe consolidou essas leis, e o seu trabalho recebeu cunho oficial, pelo Decreto n. 22.213, de 14 de dezembro de 1932. A Consolidação das Leis Penais passou a ser o novo estatuto penal brasileiro: eram assim enfeixados em um só corpo o Código de 1890 e as disposições extravagantes. A numeração dos artigos do Código foi conservada, colocando- se em parágrafos os preceitos inovadores. Para bem se distinguir, na Consolidação, a proveniência dos textos, os dispositivos do Código foram impressos em determinado tipo gráfico e os das leis posteriores em caracteres diferentes, com realce. Teve grande utilidade esse empreendimento de metodização e síntese. Mas prosseguiu a faina legislativa, e muitos decretos- leis, em matéria criminal, continuaram sendo publicados. As últimas edições da Consolidação Piragibe inseriam, em adendo, esses textos subsidiários. Marques22 explica que as Consolidações das Leis Penais vieram para remediar as

dificuldades provindas da legislação extravagante que se sucederam ao Código de 1890 e das várias reformas, ampliações e mudanças em seu texto. Aduz, ainda, que muitas leis foram publicadas depois das Consolidações, as quais foram trazidas em apêndice, nas edições posteriores da compilação de Piragibe.

Nas Consolidações das Leis Penais, não houve adaptação ou inovação por parte do Desembargador Vicente Piragibe, mas apenas a condensação das mais de 90 leis extravagantes junto ao Código de 1890, dando-lhe um aspecto de praticidade e utilidade. Sobre a sua sistematização, unidade doutrinária, coerência técnica e organicidade, abordou o parecer da subcomissão legislativa, composta por Virgílio de Sá Pereira, Evaristo de Moraes e Mario de Bulhões Pedreira:

Como consolidação ele tem, o que aliás já reconhecemos, grande merecimento e será de utilidade prática imediata; como Código, porém, desmerecerá, justamente por não pretender sê-lo, nem poder sê-lo, porquanto é uma justaposição laboriosa e hábil de leis cuja doutrina nem sempre é coerente e que não se ligam entre si por princípios gerais e superiores que revistam o todo da necessária utilidade orgânica23.

Destaca-se que apesar das Consolidações das Leis Penais de Piragibe ser o diploma vigente a partir de 1932, o Decreto n. 22.213 estabeleceu em seu artigo 1º, parágrafo único que

21 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. V. I, T. I. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 1973, p. 126. 22 MARQUES, Op. Cit., p. 90.

HUMANIDADES & TECNOLOGIA EM REVISTA (FINOM) - ISSN: 1809-1628. Ano XII, vol. 13- Jan- Dez 2018

109

“a consolidação, assim aprovada e adotada, não revogará dispositivo algum da legislação penal em vigor [...]”. Assim, a revogação de algumas leis do Código de 1890 deram-se pelas leis extravagantes e não pelo trabalho de Piragibe.

Com o advento da Constituição de 1937, denominada de “Constituição Polaca” em virtude de suas muitas semelhanças ao modelo semifascista polonês, outorgada por Getúlio Vargas, houve uma paralisação legislativa, eis que esta Constituição estabelecia caber ao Governo a iniciativa de projetos de lei, sendo vedado aos membros de qualquer das Câmaras tal iniciativa.

O atual Código Penal foi posto em vigência sob a égide desta Constituição de 1937 (com a ressalva da Reforma de sua parte geral), tal como o foi o Código de Processo Penal. O Código Penal vigente está disciplinado no Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940, e vigora desde 01 de janeiro de 1942.

Primeiramente, vale observar o seu formato, de Decreto-Lei, o qual não mais subsiste diante do texto constitucional de 1988, por se tratar de ato do Poder Executivo com força de lei e que consubstancia verdadeiro exercício de típica função do Poder Legislativo, caracterizando ingerência indevida de um Poder sobre o outro. Embora o formato não subsista na Constituição de 1988, os Decretos-Leis não revogados, como é o caso do Código Penal, passaram a ser tratados como Leis, podendo ser modificados por Leis, devidamente aprovadas pelo Poder Legislativo.

Destaca-se, ainda, que o Código Penal de 1940 teve origem pelo projeto de Alcântara Machado, sendo revisado por uma comissão de renome, composta pelos juristas Nélson Hungria, Vieira Braga, Marcélio de Queiroz e Roberto Lyra. É considerado por muitos como uma obra harmônica, que não faz compromisso com nenhuma das correntes de Direito Penal – clássica, positiva ou liberal, representando verdadeiro progresso jurídico para o Brasil24.

Evidentemente, de outro lado, que um diploma que hoje vigora por um período de quase 80 anos tornou-se pouco a pouco insuficiente e ultrapassado em alguns aspectos. Em razão disso, já passou por incontáveis reformas, bem como pouco a pouco foi perdendo espaço num mar de normatizações extravagantes.

24 D’OLIVEIRA, Heron Renato Fernandes. A história do direito penal brasileiro. Periódico Científico Projeção,

HUMANIDADES & TECNOLOGIA EM REVISTA (FINOM) - ISSN: 1809-1628. Ano XII, vol. 13- Jan- Dez 2018

110

Quanto às reformas, a mais relevante delas se deu em 1984, pela Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984, que alterou integralmente a parte geral do Código Penal. Assim, enquanto a parte especial do Código Penal conta com vigência hoje pelo prazo de quase 80 anos, a parte geral encontra redação mais moderna, mas já vigora há mais de 30 anos. A tendência da reforma, que simultaneamente alterou a abordagem das execuções penais pela Lei n. 7.210, também de 11 de julho de 1984, foi a de propiciar uma aplicação mais restrita do Direito Penal, criando uma visão de política criminal voltada à prevenção do crime e à recuperação e à ressocialização de apenados.

Por fim, considera-se que neste ínterim de vigência do atual Código Penal, elaborou-se o Decreto-Lei n. 1.004, de 21 de outubro de 1969, projeto de autoria de Nélson Hungria. O Código Penal em questão, contudo, nunca entrou em vigor, porque foi objeto de duras críticas. Assim, sucessivamente, durante os “anos de chumbo” da ditadura militar, sua vigência foi prorrogada, até finalmente ser revogado no período de redemocratização pela Lei nº 6.578, de 11 de outubro de 1978 sem nem ao menos vigorar.

Nota-se que no Brasil houve uma variação entre Códigos e Consolidações, sendo que a última consolidação de leis penais se deu pelo trabalho de Vicente Piragibe, em 1932, enquanto que a última codificação está hoje vigente, no formato do atual Código Penal, datado de 1940 e substancialmente reformado em 1984.

Além disso, percebe-se que a multiplicação de leis extravagantes e as necessárias alterações de leis de um Código torna imperioso que de tempos em tempos seja adaptado o sistema de regência das normas penais, ou ao menos que tal sistema seja consolidado em um único diploma. Cabe questionar, então, se no atual cenário jurídico penal mostra-se necessário ou relevante efetuar a recodificação ou a consolidação do sistema penal brasileiro, notadamente tendo em vista a emergência de incontáveis legislações extravagantes e o próprio fato deste já ser datado de algumas décadas.

3 RECODIFICAÇÃO DO DIREITO PENAL BRASILEIRO VS. RECONSOLIDAÇÃO