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O costume que cria a norma penal

No documento DOUTORADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2007 (páginas 89-93)

8. Norma consuetudinária: “todo o poder emana do povo”

8.3. O costume que cria a norma penal

Se, confortados pela Ciência do Direito, defendemos incondicionalmente a força normativa dos costumes como elemento descriminalizante, cabe uma última indagação sobre o tema: existe a possibilidade da criação de crimes ou negação de não-crimes pela via do direito consuetudinário?

Colocada com o devido cuidado, a resposta deve ser positiva. No Brasil pode o direito costumeiro ensejar a criação de crimes e a agravação de conseqüências jurídicas do delito.

Recorrendo à ilustração de um caso concreto, lembra MIGUEL REALE JÚNIOR (325), a repercussão que a pressão do movimento feminista e dos meios de

322 “Se há um iter procedimental, isso importa dizer que há suportes fácticos – os atos-de-legislar – que

devem revestir a forma procedimental: o processo (seja ele meramente procedimental, seja, ainda, o processual – judicial) é uma série ordenada de atos jurídicos tipificados.” (cf. VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação

no Direito. São Paulo: RT, 2000, p. 311). 323

FERRAJOLI, Los Fundamentos de los Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2005, p. 37 324 PUGLIATTI, Salvatore.

Grammatica e Diritto. Milano: Giuffrè, 1978, p. 8

comunicação tiveram, há duas décadas, sobre a definição dos limites da legítima defesa no julgamento do réu Doca Street, acusado da morte da namorada Ângela Dinis. Primeiro absolvido, foi depois o homicida condenado, porque a pressão social indicou a nocividade do recurso à violência para solução das desavenças afetivas, um inegável resquício da sociedade patriarcal (onde a morte da mulher infiel justificava-se para preservação da honra326 do marido traído). As novas exigências axiológicas, nesse caso espelhadas, passaram a impedir o reconhecimento da excludente de “legítima defesa da honra marital”, harmonizadas que vieram com a importância da mulher e sua autonomia na sociedade contemporânea. Nesse caso, o costume estreitou os limites da permissão penal e, por conseguinte, alargou o âmbito da criminalização.

Isso prova o que KINDHÄUSER (327), em postura inovadora, dissera: toda norma é falível e deve-se, sempre, buscar falseá-la, tentando o encontro de hipóteses em que ela não atenda aos interesses dos seus possíveis afetados. Quanto mais infrutífera resultar essa tentativa, mais há de se presumir que a norma, assim posta à prova, é dotada de consenso geral. A institucionalização desse processo de compreensão discursiva da norma cabe, segundo ele, à oposição parlamentar, mas incumbe, também, à Ciência do Direito e aos meios de comunicação (cuja importância acima defendemos).

A liberdade de expressão, garantindo o ingresso do cidadão na comunidade discursiva do Direito, deve ser tratada como direito fundamental e, com tal importância, teoricamente manuseada. Como pontua ALEXY:

“Direitos fundamentais são democráticos por isso, porque eles, com a garantia dos direitos de liberdade e igualdade, asseguram o desenvolvimento e existência de pessoas que, em geral, são capazes de manter o processo democrático na vida e porque eles, com a garantia da liberdade de opinião, imprensa, radiodifusão, reunião e associação, assim

326 Digno de registro que tal entendimento somente vem afirmar um postulado jusnaturalista em SAMUEL

PUFENDORF encontrável, pois entendia ele que um bem de valor igual à vida poderia ser a integridade corporal ou a incolumidade sexual, mas jamais a honra. Leia-se, a propósito: WELZEL, Hans. La Dottrina

Giusnaturalistica di Samuel Pufendorf...Torino: Giappichelli, 1993, p. 124-5

327 KINDHÄUSER, Urs. In LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel et all (orgs) . Cuestiones Actuales de la Teoría del Delito. Madrid: Mc Graw Hill, 1999, p. 207-8

como com o direito eleitoral e com as outras liberdades políticas asseguram as condições funcionais do processo democrático”. (328)

Respondemos afirmativamente também à segunda questão, pois o direito costumeiro é fonte da norma incriminadora, ainda que num campo bastante delimitado. Os selvagens, embora destituídos de seus territórios e violentados em seus costumes, preservam, ainda, sua cultura milenar, inclusive a que se poderia designar como cultura jurídica (se não se incorre no mesmo erro dos colonizadores que, mediante atribuição dos qualificativos “pagão” e “selvagem”, não reconheciam uma verdadeira cultura em favor dos autóctones).

Toda sociedade, ainda que de rudimentar organização possui valores a preservar. Por isso cabe ao jurista, ao delinear o conceito de eficácia, colocar-se no plano da axiologia positiva, pois ao compreender o sentido e o alcance do referido conceito, está vinculado aos valores jurídicos constituídos pelas valorações reais vigentes numa sociedade em certo estágio evolutivo. (329) Como traz à memória BENARDINO GONZAGA, “algo equivalente também faz o selvagem, admitindo que determinadas maneiras de proceder representam ofensas a um tabu, ou aos mores do grupo, e que, portanto, justificam um castigo”. (330) Para ALF ROSS, “sob a forma de mito, religião, poesia, filosofia e arte vive um espírito que expressa uma filosofia de vida, que é uma íntima combinação de valorações e uma cosmogonia teórica, incluindo uma teoria social mais ou menos primitiva”. (331)

Segundo estudos antropológicos, entre os povos selvagens impera verdadeira reverência pela tradição e pelo costume, com uma obediência servil, involuntária e espontânea, devida a uma inércia mental associada ao temor da opinião pública ou do castigo sobrenatural. Essa submissão automática também é motivada por um penetrante sentimento ou instinto de grupo (332). Muitos “tabus”, portanto, não têm índole apenas mística, mas encontram sua fonte geradora na

328 ALEXY, Robert.

Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático...Revista de Direito

Administrativo. Rio de Janeiro, 217: 55-66, jul./set.1999, p. 65

329 DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 19 330 GONZAGA, João Bernardino. O Direito Penal Indígena. São Paulo: Max Limonad, s/d, p. 81 331

ROSS, Alf. Direito e Justiça. Bauru, SP: Edipro: Edipro, 2000, p. 125

332 MALINOWSKI, Bronislaw.

Crime e Costume na Sociedade Selvagem. Brasília: UnB (Editora), 2003,

sabedoria intuitiva acumulada durante gerações, em que a experiência foi sentindo o caráter prejudicial ou vantajoso de certas atitudes, aos poucos transformadas em regras, negativas ou impositivas, de conduta, assim, paulatinamente, entrando e passando a integrar os mores do grupo, compondo a sua filosofia social.(333) Naturalmente que outro coeficiente dessa força de obrigatoriedade achada no costume primitivo vem dado pela autoridade dos chefes (reforçada pelas crenças e superstições nos chefes defuntos). (334)

O Estatuto do Índio permite aos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, a aplicação de sanções penais contra seus membros. Os limites à punição coincidem com aqueles impostos ao legislador penal ordinário: vedam-se, igualmente, as penas de morte e de caráter cruel ou infamante. Logicamente, a autorização à inflição de pena traz implícita a faculdade de criação de “normas” cuja violação possa orientar e justificar a punição, nada impedindo que essas regras costumeiras, transmitidas verbalmente, possam merecer, pela tribo, um registro escrito.

Elevando um grau acima o nível de nossas elaborações, para confrontar, diante do ordenamento positivo nacional, a conduta do membro tribal responsável pela aplicação da pena, há de se reconhecer, em favor deste, um elemento negativo

do tipo, situado exatamente no dispositivo estatutário reportado (335

). Não cometerá, v.g., o crime de injúria, vias de fato ou cárcere privado, o indígena que, em harmonia com o direito costumeiro de sua tribo, determinar ou executar a punição de natureza penal contra seu igual. Está ele amparado pelo exercício regular de um direito (de instrumentalizar uma norma penal costumeira). Importante ressaltar que a legimitidade desse direito decorre, ainda, expressa e diretamente, do texto da Constituição da República, a qual, em seu artigo 231, reconhece aos índios, além do patrimônio, também sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.

333 GONZAGA, João Bernardino. O Direito Penal Indígena. São Paulo: Max Limonad, s/d, p. 81

334 VECCHIO, Giorgio del. Lições de Filosofia do Direito. Tradução de António José Brandão. Coimbra:

Armênio Amado, 1979, p. 406

335 Lei 6.001, de 19-12-1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. [...] Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.

Essa previsão legal espelha uma opção política multicultural pluralista, ao reconhecer diferenças culturais em nosso espaço territorial e conferir às minorias indígenas certa liberdade de autogoverno, à margem da cultura majoritária (dos colonizadores herdada).

Um Estado de Direito multicultural, segundo CALVO GARCÍA, deve assentar-se sobre bases que conciliem o interculturalismo e o pluralismo limitado, isto é, deve conjugar não-limitações significativas às minorias, equilibrando-as com algumas limitações derivadas da proteção de um conteúdo mínimo de valores entre todos partilhado.(336) Daí a vedação legal, em tema penal, de sanções cruéis entre os autóctones.

No documento DOUTORADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2007 (páginas 89-93)