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Tratados: rumo à “communitas orbis”

No documento DOUTORADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2007 (páginas 43-47)

Se concebidos e legitimados originariamente como instrumentos de pacificação interna e de unificação nacional, não duvida FERRAJOLI de que os Estados, hoje, revelem-se não apenas como principais ameaças à paz externa, mas também como fontes de perigo para a paz interna, além de fatores permanentes de

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Brancosos e Interconstitucionalidade, Itinerários dos Discursos

sobre a Historicidade Constitucional. Coimbra: Almedina, 2006, p. 117

141 PEDROSO, Antonio Carlos de Campos. Normas Jurídicas Individualizadas, Teoria e Aplicação. São

Paulo: Saraiva, 1993, p. 60

142 Leia-se, a propósito, WOLTER, Jürgen: “Las Causas Constitucionales de Exclusión del Tipo, del Injusto e de la Punibilidad como Cuestión Central de la Teoría del Delito en la Actualidad” in LUZÓN PEÑA,

desagregação e conflito: “o Estado já é demasiado grande para as coisas pequenas e demasiado pequeno para as coisas grandes”. (143)

O tratado, como acordo concluído entre dois ou mais sujeitos de direito internacional, destina-se a produzir efeitos jurídicos e é regulado pelo direito internacional. Supõe um concurso de vontades entre as partes concordantes para criação de compromissos jurídicos com caráter de obrigatoriedade, implicando, portanto, submissão do Estado a essa normatividade. Considera-se a “Convenção de Viena”, de 23 de maio de 1969, como verdadeira codificação do direito consuetudinário existente, sendo designado como “tratado dos tratados”. (144) Em seu artigo 26º essa Convenção estabelece a cláusula “pacta sunt servanda”, ao proclamar que “todo o tratado em vigor vincula as partes e deve ser por elas executado de boa fé” (145) . Por “boa-fé” entende o mesmo diploma, em seu artigo 18º, o “abster-se dos atos que privem um tratado do seu objecto ou do seu fim”.

A atual ordem jurídico-constitucional quanto às fontes de direito tem como elemento caracterizador, segundo CANOTILHO, a abertura à normação internacional: “o ordenamento estadual abre-se a fontes de direito supranacionais, alterando-se radicalmente o monopólio estadual de criação do direito”. (146)

No tocante à disciplina internacional dos direitos humanos, o sistema de incorporação dos tratados ao direito interno, no modelo brasileiro, é o da incorporação automática que, como reflexo da teoria monista (147) , considera a

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FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno, Nascimento e Crise do Estado Nacional. Tradução Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 50-51

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DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003, p. 120-121

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Advirta-se com o internacionalista DINH que “a execução dos tratados incumbe a todos os órgãos do Estado, porque a obrigação de executar impõe-se ao Estado tomado no seu conjunto como sujeito de direito internacional. Já em 1839 o Conselho de Estado francês declarava: ‘a execução do tratado está reservada não a um único órgão ou a uma única autoridade mas a todas as autoridades, legislativa, política e judiciária na ordem das suas competências”. (cf. DINH, Nguyen Quoc; DAILLIER, Patrick; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2a edição. Tradução de Vítor Marques Coelho. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003, p. 233)

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra, Portugal: Almedina, 2003, p. 704

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É de se assinalar que “dentro da escola monista existem duas correntes, uma denominada monismo radical e a outra, monismo moderado. Os monistas radicais defendem a irrestrita sobreposição da norma internacional sobre a interna, e os monistas moderados defendem a sobreposição da norma internacional, desde que posterior à lei interna, ou a sobreposição desta última, desde que posterior à primeira. É a regra ‘later in

ratificação do tratado a condição suficiente para que seus preceitos sejam recepcionados automaticamente pelo ordenamento jurídico nacional e se tornem obrigatórios e vinculantes. O artigo 5º, § 2º, da CRFB já era expresso quanto à não- exclusão (i.é., pela inclusão) dos tratados internacionais em que o Brasil figurasse como parte. Malgrado nem sempre lida com o devido cuidado, é esta uma cláusula hipertextual de suma importância porque, assentada na lei fundamental, possibilita uma intertextualização do ordenamento local com o supranacional.

Entendemos que as normas internacionais garantidoras de direitos individuais têm auto-executividade e aplicabilidade direta (148), devendo elas ser manejadas pelos aplicadores para fundamentar a decisão num caso concreto. Essa categoria de normas internacionais vale como norma de decisão imediatamente, pois, vinda de patamar normativo superior, entra a compor o discurso ôntico (emprego como fundamento da decisão) e deôntico (formalização como conduta proibida, permitida ou obrigatória) do aplicador nacional.

Não mais se justifica a antiga controvérsia doutrinária – quanto à topografia com que os tratados ingressam em nosso edifício normativo – após o acréscimo do § 3º ao artigo 5º da CRFB, pela Emenda 45/2004, pelo qual se outorgou o status de emenda constitucional àqueles tratados intenacionais sobre direitos humanos aprovados pelo Parlamento nacional.

Reconhecendo a maneira não unívoca do enquadramento do tratado internacional na ordem jurídica, salientou KELSEN ser possível partir da idéia da superioridade do direito internacional relativamente às diferentes ordens nacionais – i. e. , o primado da ordem jurídica internacional – figurar o tratado como parte integrante de uma ordem jurídica superior a dos Estados contratantes, daí decorrendo que qualquer lei, inclusive a lei constitucional, que contradiga um

time’ (‘lex posterior derogat priori’), aplicada pela Suprema Corte dos Estados Unidos nos conflitos existentes entre norma interna e internacional.” (cf. PINHEIRO, Carla. Direito Internacional e Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2001, p. 106).

148 Para CANOTILHO, uma norma internacional é de aplicabilidade direta se vincula os aplicadores do

Direito a um dever de aplicação dessa norma, sem criar garantia a um direito subjetivo aos particulares; já uma norma internacional auto-executiva permite aos particulares, com base nela, reivindicar uma determinada pretensão subjetiva. (Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra (Editora), 2004, p. 153)

tratado, será irregular, afrontando imediatamente o direito internacional e ferindo, mediatamente, o princípio ‘pacta sunt servanda’. Concluindo: “uma lei contrária a um tratado é, por conseguinte – pelo menos indiretamente – inconstitucional”, eis que a Constituição, ao autorizar certos órgãos a firmar tratados internacionais, faz destes “um modo de formação da vontade estatal”. (149)

A relevância hodierna da ordem jurídica supranacional avulta, em especial, na proteção aos direitos fundamentais do indivíduo, sendo o instrumento mais atual e relevante, do ponto de vista penal, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, recentemente incorporado ao ordenamento brasileiro. Os indivíduos, antes submissos em absoluto às leis de seu país, tornaram-se hoje sujeitos de direito internacional (150) e, nessa condição, a essa normativa podem recorrer para defesa de seus direitos subjetivos. Pela importância e afinidade com o tema central deste trabalho, esses assuntos serão objeto de tratamento separado.

Convém consignar a oportuna advertência de FIGUEIREDO DIAS (151) quanto aos reflexos que uma ordem jurídica transnacional possa produzir sobre a ontologia do injusto criminal. Segundo o mestre lusitano, já se pode falar de um “‘ius puniendi’ negativo das instâncias comunitárias, é dizer, da legitimidade para impor normas que se projectam no estreitamento ou recuo do direito penal estadual”, haja vista a prevalência do direito comunitário sobre o nacional e o entendimento válido do princípio da unidade da ordem jurídica. Sintetizando com as palavras do próprio doutrinador: “o legislador nacional não poderá qualificar como penalmente ilícitas condutas exigidas ou autorizadas pelo direito comunitário.” Esta idéia, porque norte deste trabalho, será retomada adiante.

149 KELSEN, Hans.

Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 137-8 e 164-5

150 “É esse indivíduo ou ‘pessoa’, sem condições, sem estado, sem status, o sujeito do direito absoluto,

origem dos direitos humanos ou direitos fundamentais”. (cf. LOPES, José Reinaldo Lima. As Palavras e a Lei:

Direito, Ordem e Justiça na História do Pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Edesp, 2004, p. 263). Para BOBBIO, “haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo”. (cf. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 1).

151 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, a Doutrina

Por fim, FERRAJOLI conclamando os juristas à construção de um sistema de garantias efetivas sobre a base do direito internacional, lembra que isto é algo “que não nasce numa prancheta, não se constrói em poucos anos, nem tampouco em algumas décadas”. (152)

No documento DOUTORADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2007 (páginas 43-47)