• Nenhum resultado encontrado

Pragmática do injusto: contexto situacional da norma

No documento DOUTORADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2007 (páginas 123-127)

“Se vuoi comprendere una parola diciamo sempre: ‘Devi conoscerne l’uso.” WITTGENSTEIN (425)

“Mientras el análisis semântico se concentra en la imagen lingüística del mundo, para el análisis pragmático el diálogo aparece en primer plano.” JÜRGEN HABERMAS (426)

A negação ao estrito formalismo positivista, aqui ensaiada, deve vir acompanhada de propostas, minimamente, coerentes com as possibilidades jurídicas de um modelo estatutário, qual o brasileiro. Por isso, sem negar o princípio da legalidade, vislumbramos o fenômeno normativo como construção discursiva ampla, onde enunciadores e enunciatários postam-se interativamente, de tal maneira que a construção de sentido da norma de injusto não seja uma enunciação unilateral em direção a um receptor mudo.

O apego a uma concepção assim realista do Direito, isto é, sua visão como realidade fática, implica, coerentemente, em privilegiar o aspecto pragmático da linguagem, onde o direito jurisprudencial e o costumeiro alçam-se a um plano relevante – algo que nossa dogmática positivista insiste em refutar.

425

WITTGENSTEIN, Ludwig. Lezioni sui Fondamenti della Matematica. Torino: Bollati Boringhieri,

2002, 265

Nesse sentido, os juspositivistas podem ser comparados com os gramáticos empenhados em fixar idealmente as regras da linguagem; em contrapartida, os realistas afirmam posições teóricas que podem ser equiparadas às dos semiólogos, ao defenderem que a realidade da linguagem se encontra, na verdade, nos atos de fala (427), isto é, na pragmática da linguagem (428).

Como adverte PAULO DE BARROS “a aplicação do direito é promovida por alguém que pertence ao contexto social por ele regulado e emprega os signos jurídicos de conformidade com pautas axiológicas comuns à sociedade” (429). A pré- compreensão de que o jurista necessita, portanto, depende também dos contextos sociais, das situações de interesse e das estruturas das relações de vida a que se referem as normas jurídicas.(430)

Do expoente do realismo jurídico escandinavo, ALF ROSS, colhemos que “a interpretação pragmática pode considerar não só os efeitos sociais previsíveis, como também a acuidade técnica da intrepretação e sua concordância com o sistema jurídico e as idéias culturais que servem de base a esse sistema”. Há, portanto, uma multiplicidade de valorações integradas na análise pragmática, sendo o propósito da lei apenas uma dessas valorações possíveis. (431)

Como faz notar WILLIS, essa “pulsão pragmática” não afeta unicamente a orientação atual da filosofia na análise lingüística, estendendo-se, ainda, às novas disciplinas formais para estudo da comunicação (semiótica, informática etc), atingindo o campo tradicional da lógica e, por fim, manifestando-se claramente no

427 GARCIA, Manoel Calvo. Teoría del Derecho. Madrid: Tecnos, 2000, p. 35-6. No mesmo sentido

WILLIS: “Utilizando o divulgado jargão semiótico, dir-se-ia que Kelsen cuidou predominantemente de questões relacionadas à sintaxe, deixando de lado aqueles atinentes à pragmática do discurso normativo. Não lhe passou despercebido, como importa salientar, a relação entre normas e valores, os quais, para ele, adquirem um sentido objetivo ao serem consagrados positivamente pelas primeiras”. (cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria

Processual da Constituição. São Paulo: Celso Bastos, 2000, p. 204)

428 Colhe-se, em PERELMAN, que “o crescente papel atribuído ao juiz na elaboração de um direito

concreto e eficaz torna cada vez mais ultrapassada a oposição entre o direito positivo e o direito natural, apresentando-se o direito efetivo, cada vez mais, como o resultado de uma síntese em que se mesclam, de modo variável, elementos emanantes da vontade do legislador, da construção dos juristas, e considerações pragmáticas, de natureza social e política, moral e econômica”. (PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 392)

429

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 72

430 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983, p. 246

431 ROSS, Alf.

“renascimento” de disciplinas práticas como Retórica e Tópica, outrora tão importantes.(432)

Colhe-se de PAULO DE BARROS CARVALHO que:

“quer na linguagem em geral, quer na jurídica em particular, as palavras ostentam uma significação de base e uma significação contextual. O conteúdo semântico dos vocábulos, tomando-os somente a significação de base, é insuficiente para a compreensão da mensagem, que requer empenho mais elaborado, muitas vezes trabalhoso, de vagar pela integridade textual à procura de uma acepção mais adequada ao pensamento que nele se exprime”. (433)

Com IÑIGUEZ, defendemos que “o/a analista pode observar a interação e fazer interpretações justamente sobre aquilo que a linguagem está fazendo. Essas perspectivas significam abandonar duas imagens comuns, ou seja, a visão da linguagem como uma série estática de descrições e do/a analista como mero/a coletor/a de dados neutros” (434) Dever-se-ia verificar com a correção típica, no momento da aplicação, algo similar como o da regulação lingüística, definida por BAGNO como “o fenômeno pelo qual os comportamentos lingüísticos de cada membro de um grupo ou de um infragrupo dado são moldados no respeito a uma certa maneira de fazer sob a influência de certas forças sociais que emanam do grupo ou de seus infragrupos” (435). Pensamos que tais ajustes, operados com remissão necessária a padrões axiológico-jurídicos universais, ocasionam a harmonização intestina do sistema de Direito global e o alcance de decisões justas (numa acepção, se se preferir, jusnaturalista).

Na aplicação de uma norma penal, portanto, descabe uma análise meramente textual (os signos entre si). Impende compreender as mensagens diretivas de condutas, ínsitas das normas penais, em seu caráter situacional emergente (436), isto é, como produto discursivo em que se destaca o papel dos

432 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria Processual da Constituição. São Paulo: Celso Bastos, 2000,

p. 117-9

433 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 76 434 IÑIGUEZ, Lupicinio.

Manual de Análise do Discurso em Ciências Sociais. Petrópolis, RJ: Vozes,

2004, p. 126

435 BAGNO, Marcos. Norma Lingüística. São Paulo: Loyola, 2001, p. 178

436 Como ensina RIGAUX, “com a expressão Erfahrungssätze, a doutrina e a jurisprudência reuniram um

conjunto de conhecimentos vários, mas indispensáveis à compreensão, à interpretação e à aplicação do direito. Entre eles a linguagem, ornada com um epíteto amplamente mistificador (‘linguagem usual’, allgemeiner

destinatários – não mais como passivos endereçados, mas como co-enunciantes – considerados nas relações que mantém entre si e com os signos da enunciação (ou, mais precisamente, com os conteúdos de sentido que estes adquirem na dinâmica social).

Embora ausente, entre os lingüistas, uma convergência conceitual sobre

contexto (437

), impossível empreender a análise semiótica sem o recurso a ele, haja vista que as palavras e sentenças não têm sentido em si mesmas, fora de seus contextos de uso. Adota-se, aqui, a noção da própria linguagem como contexto, isto é, “o modo como a fala mesma simultaneamente invoca contexto e fornece contexto para outra fala”, abrangendo “não só o co-texto [entorno verbal], como a situação de interação imediata, a situação mediata (entorno sóciopolítico-cultural) e também o contexto sociognitivo dos interlocutores que, na verdade, subsume os demais”. (438)

No ato de aplicação da lei penal, fala-se, pois, em contexto sociocognitivo onde os actantes detêm uma base mínima de conhecimentos (enciclopédicos e jurídicos) compartilhados, somente alcançando-se interpretações equivocadas se errôneas as pressuposições sobre o domínio de certos conhecimentos por parte dos aplicadores da norma. Incorreta injustificação do ato humano somente decorrerá da imprecisa intelecção do co-texto legal no seu contexto normativo.

A descontextualização, propiciada pela análise isolada do tipo legal no momento de aplicação da lei criminal, tem sido, em grande medida, o fator primeiro de insucesso da teoria do tipo penal como meio para efetivação da Justiça no Direito Penal. Nosso ensino jurídico prepara, se muito, técnicos para estudo de textos legais, jamais cientistas sociais capacitados à compreensão do crime como produto Sprachbrauch), uma vez que as práticas lingüísticas são flutuantes no tempo e de acordo com os meios sociais ou profissionais: o ‘sentido usual’ é aquele que os juristas, por vezes guiados pela doutrina, conferem num determinado momento temporal a determinada sociedade a palavras cujo mistério nunca é totalmente afastado.”(cf. RIGAUX, François. A Lei dos Juízes. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 231).

437

Segundo ECO, “faz tempo que se busca superar uma distinção nítida entre semântica e pragmática, de um lado, e semiótica dos processos de significação e semiótica dos processos de comunição e produção dos textos. Uma semântica em forma de enciclopédia deveria igualmente considerar (sob forma de instruções) seleções contextuais ou circunstanciais e, conseqüentemente, o modo pelo qual um termo deve ou pode ser usado em certos contextos ou circunstâncias de enunciação” (cf. ECO, Umberto. Os Limites da Interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 235)

do complexo pulsar humano. O máximo que os penalistas, sob a égide da teoria belinguiana, têm se permitido – não sem críticas e hesitações – é a colmatação contextual do tipo legal pelos denominados elementos normativos, os quais constituem o entorno extrapenal (jurídico ou não) que exerce influência sobre as unidades lingüísticas componentes do tipo legal, na produção final de sentido deste. A teoria dos elementos negativos do tipo ensaia essa (re)contextualização do tipo penal, tornando o contexto jurídico como co-extensivo à própria ocorrência lingüística do tipo legal.

No documento DOUTORADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2007 (páginas 123-127)