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Multissemiose do injusto: hipertextualidade do tipo penal

No documento DOUTORADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2007 (páginas 109-112)

O neologismo hipertexto (384) é, inegavelmente, filho do avanço da linguagem em meios virtuais de comunicação, mas já era recurso reconhecível em textos físicos construídos em plurilinearidade (dotados de referências, citações, notas de rodapé, remissões a outras páginas etc). A diferença com relação ao hipertexto eletrônico está apenas no suporte e na forma e rapidez de acessamento, tendo, em comum, a característica de que, em ambos, o sentido não é construído somente com base no texto central, mas pela combinação de recursos que fazem a interligação deste com outros textos (os quais complementam, explicam ou, de qualquer forma, enriquecem o texto central).

Não se pode negar que, por força do disposto no artigo 12 do Código Penal Brasileiro, seja também multilinearizada ou multiseqüencial a leitura dos tipos legais elencados na Parte Especial desse estatuto, funcionando o precitado

383 FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Lingüística: I. Objetos Teóricos. São Paulo: Contexto, 2005, p.

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384 O termo designa uma escritura não-seqüencial e não-linear, que se ramifica e permite ao leitor virtual o

acessamento praticamente ilimitado de outros textos, a partir de escolhas locais e sucessivas em tempo real. É também forma de estruturação textual que faz do leitor, simultaneamente, um co-autor do texto, oferecendo-lhe a possibilidade de opção entre caminhos diversificados, de modo a permitir diferentes níveis de desenvolvimento e aprofundamento de um tema. No hipertexto, contudo, tais possibilidades se abrem a partir de elementos específicos nele presentes, que se encontram interconectados, embora não necessariamente correlacionados – os

dispositivo como hipertexto que relaciona os institutos da co-autoria, da tentativa, do arrependimento eficaz ou posterior, da desistência voluntária, do concurso formal ou material, da aplicação temporal e especial da lei penal, dentre tantos outros, às inúmeras descrições típicas contidas ao longo dos Títulos da Parte Especial.

Uma cláusula hipertextual de suma importância, a justificar o desenvolvimento teórico da Teoria dos Elementos Negativos, é aquela contida no artigo 5º, §2º da Constituição da República, pela qual os direitos e garantias nela previstos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios adotados, ou dos tratados em que o Brasil seja signatário. Esse dispositivo ao mesmo tempo em que garante máxima proteção aos direitos individuais também torna extremamente complexa ao aplicador a leitura intertextual dos diplomas continentes desses direitos, como adiante se demonstrará. Trata-se de uma ampla janela de normatividade deixada aberta pelo constituinte, pela qual nosso ordenamento interliga-se com outros textos positivos para, ao final, compor o sistema jurídico- penal. Essa válvula hipertextual, ao ser conjugada com uma outra, inserta no artigo 23, III, “in fine”, do Código Penal — não há crime quando o agente pratica o fato no

exercício regular de direito — expande consideravelmente o catálogo de permissões

do cidadão e, pela Teoria dos Elementos Negativos, faz repelir o juízo de tipicidade penal sempre que a proibição “prima facie” do tipo legal confrontar com um autorizante de conduta intertextualizado. Desse tema nos ocuparemos no último capítulo, ao tratar da intertipicidade penal.

Um outro exemplo de hipertextualidade no Direito Penal são as denominadas normas penais em branco. MEZGER distinguia três diferentes hipóteses de normas penais em branco: i) o complemento se encontra na mesma lei e isto é mera técnica legislativa; ii) o complemento acha-se noutra lei provinda de mesma instância legislativa; iii) o complemento está contido em lei emanada de instância legislativa diferente. Para o autor citado, somente as últimas constituem normas penais em branco em sentido estrito, todavia, em qualquer caso, fala-se em complemento sempre como parte integrante do tipo. (385)

385 MEZGER, Edmundo. Tratado de Derecho Penal. Tomo I. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1946,

Para CEREZO MIR há que se negar o caráter de lei penal em branco à hipótese em que o complemento se localize no mesmo corpo legal, sendo, além, necessário que o complemento esteja sediado em instância legal inferior, pois somente assim resgata-se o conceito histórico e fundamento da lei penal em branco, não como mera técnica legislativa, como pretendia MEZGER, mas como “autorização” de uma instância legisferante superior a uma inferior. (386)

Vamos além, divergindo de ambos os doutrinadores. Se o complemento da norma encontra-se em norma de hierarquia inferior: tem-se um hipertexto e, portanto, uma norma penal em branco. No caso de o complemento da norma penal achar-se em campo legal distinto, qualquer que seja seu nível, tratar-se-á de intertextualidade e/ou co-textualidade, portanto não há que se falar em norma penal em branco, senão na própria norma penal em sua integralidade textual.

Veja-se. O hipertexto possui cláusula remissiva expressa ao outro texto (caso da norma penal em branco). Na intertextualidade joga-se, mais, com a contextualidade (significações implícitas do sentido do texto não conectadas mediata ou remotamente com o texto da lei). No co-texto não há que se falar em hipertexto ou contexto pois refere-se simplesmente a uma maior distensão textual do enunciado.

Na verdade é impossível a leitura linear e insulada de qualquer tipo legal. Por isso não poder, jamais, o exegeta olvidar da relação semântica contextual e hipertextual que subjaz ao segmento textual representado pela norma penal. Não se pode perder de vista que “o sentido só se completa a partir da consideração do elemento concreto no âmbito do texto conjunto” porque “a norma não tem sentido senão no sistema, do qual é unidade elementar. Sistema e norma são termos entrelaçados: quando se pensa em um, pensa-se necessariamente no outro”. (387) Daí o acerto de KLAUS GÜNTHER em afirmar que “ainda que seja verdade que só se pode falar do cumprimento correto de uma norma quando existirem os fatos que

386

MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal, Parte General. Barcelona: Reppertor, 2002, p. 73

387 ROBLES, Gregório,

O Direito como Texto, Quatro Estudos de Teoria Comunicacional do Direito,

esta pressupuser semanticamente, serão relevantes, entretanto, aqueles fatos que fazem parte da extensão semântica dessa norma única.” (388)

4. Semântica estrutural do injusto: uma abordagem semiótica do tipo

No documento DOUTORADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2007 (páginas 109-112)