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5 A CRÍTICA SOCIAL EM SÃO BERNARDO

No documento SUMÁRIO ISBN 978-65-5608-074-1 (páginas 146-150)

Isolda Maria Aragão Maciel

5 A CRÍTICA SOCIAL EM SÃO BERNARDO

Stuart Hall, na obra A identidade cultural na pós-modernidade (2006), analisa os tipos de sujeito e suas acepções no contexto histórico moderno e contemporâneo.

O autor comenta que o sujeito sociológico está relacionado à sua constituição coletiva, com natureza subjetiva intermediada por suas relações sociais e seus valores culturais.

Paulo Honório pode ser pensado a partir da concepção de sujeito sociológico, sobretudo se pensarmos a consciência que ele explicita no final da narrativa. Após contar os detalhes acerca da escrita de sua autobiografia, de declarar seus crimes e desvios cometidos enquanto pobre aspirante de riqueza, enquanto patrão explorador feroz de seus subalternos, enquanto marido opressor, ele afirma:

Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia.

Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou (RAMOS, 1985, p. 187).

Em seguida, o narrador (RAMOS, 1985, p. 187) prossegue com sua reflexão solitária: “Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas”. No trecho, Paulo Honório lamenta sua solidão e pensa na visão que sua esposa teria dele, uma espécie de “monstro social”, tendo em vista as divergências que ambos tinham das relações patrão/empregado. Neste sentido, o narrador-personagem menciona (RAMOS, 1985, p. 187): “Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio”.

O uso dessas recordações sob uma perspectiva objetiva, reificada – utilizamos o termo por suas próprias memórias terem de transformar-se em produto, no caso, um livro –, diz respeito a todo o processo que se dá desde sua infância, ao ter de trabalhar vendendo doces ou como guia de cego, até seu projeto de pleitear a fazenda na qual fora extremamente explorado como empregado, como o narrador afirma (RAMOS, 1985, p. 15): “Logo planejei adquirir a propriedade São Bernardo, onde trabalhei, no eito, com salário de cinco tostões”.

A propósito, a frase que inicia o primeiro capítulo do livro é (RAMOS, 1985, p. 07): “antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho”.

Também ele pontua: “João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás para diante. Calculem”. O discurso dele sempre nos remete a uma finalidade material da vida e das relações que ele vivencia. Ele faz menção, nesses trechos, a duas expressões alusivas à ideia de valor: divisão do trabalho e calculem, por exemplo.

A rememoração do passado do narrador-personagem se dá de forma consciente: ele reflete acerca das experiências de infância e juventude marcadas pela miséria e sua “ascensão” à vida de fazendeiro, tentando justificar sua conduta, a qual poderíamos exprimir no ditado maquiavélico que nos remete à ideia de que

“os fins justificam os meios”. Na tentativa de legitimar os mecanismos usados para consolidar seus objetivos, ele não hesita em utilizar-se dos meios mais ardilosos para obter o que almeja. Para justificar, no entanto, seu comportamento austero e solitário, ele observa (RAMOS, 1986, p. 101): “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste”.

Em contexto no qual “o homem é o lobo do homem”, conforme Thomas Hobbes pontua no século XVI, seria possível um sujeito pensar ou agir diferente de Paulo Honório? Segundo o personagem, a resposta seria não, pois ele não nasceu assim, mas se tornou devido a uma vida de miséria e, para ser patrão, teria que seguir a regra de um sistema já imposto: se não é o oprimido, é-se o opressor, conforme apreendemos da citação (RAMOS, 1986, p. 187): “Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins”.

Candido (1992, p. 28), no ensaio Ficção e confissão, nos esclarece o seguinte:

Não se trata, evidentemente, do resultado mecânico de certas relações econômicas. [...] Em Paulo Honório, o sentimento de propriedade, mais do que simples instinto de posse, é uma disposição total do espírito, uma atitude geral diante das coisas. Por isso engloba todo o seu modo de ser.

Esse modo de ser materialista, que valoriza as posses e o mundo das coisas, extrai, na análise de Candido, uma verdade interior dos atos e das relações em ritmo psicológico:

Dois movimentos o integram: um, a violência do protagonista contra homens e coisas; outro, a violência contra ele próprio. Da primeira, resulta São Bernardo-fazenda, que se incorpora ao seu próprio ser, como atributo penosamente elaborado; da segunda, resulta São Bernardo-livro-de-recordações, que assinala a desintegração de sua pujança. De ambos, nasce a derrota, o traçado da incapacidade afetiva (CANDIDO, 1992, p. 29-30).

Ora, se sentimentos como o amor transfiguram-se, em Paulo Honório, como sentimento de posse, através do ciúme e da tirania que oprimem a esposa, seria essa, também, uma condição material para o personagem. Quando sua história se transforma em livro, mesmo que por uma questão de necessidade psicológica, essa é, também, metaforicamente, um produto do personagem.

Roberto Schwarz (1998), ao analisar os romances clássicos de Machado de Assis (Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro), observa o jogo literário usado pelo escritor quando tematiza questões morais, políticas e sociais da sociedade brasileira sob o ponto de vista de quem pratica tais delitos. Os narradores dessas obras são narradores-personagens, isto é, eles constroem discursos que legitimam os fatos apresentados a partir de seus ângulos de visão. O leitor não poderá questionar uma narrativa que parte da experiência de seu próprio narrador.

Do mesmo modo, na análise em questão, se pensarmos que o foco da narrativa está sob o olhar de Paulo Honório, concordaremos que Graciliano Ramos usou da mesma estratégia de Machado de Assis para apresentar ao leitor o obscuro e agressivo contexto econômico daquele período, da vida no sertão, das relações sociais e da miséria que permeia a vida da classe oprimida, sob o olhar de um explorador sem escrúpulos, que é mais uma ideologia capitalista do que propriamente uma visão de mundo particular do personagem. Isso é o que fica expresso no seguinte trecho (RAMOS, 1985, p. 186 – 187): “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos. [...] Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As informações que o personagem principal de São Bernardo nos passa exprimem os paradoxos do período, que colocam em cheque questões políticas e sociais da época. Ao final de tudo, Paulo Honório nos apresenta a reflexão, numa espécie de constatação da insuficiência da natureza prática dessa corrida pelo progresso da fazenda, da exploração da mão de obra do trabalhador do campo e da produção de riqueza:

O que estou é velho. [...] Cinquenta anos perdidos. Cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê!

(RAMOS, 1985, p. 181).

Com essa reflexão, Paulo Honório chega à conclusão de que foi sua própria ação que gerou a destruição de si e do outro. É através dessa memória que, sendo ela individual, é também histórica. Graciliano Ramos conseguiu representá-la através da ficção de São Bernardo, transmitindo uma mensagem para o período que é completamente válida ainda para os dias de hoje, numa capacidade de crítica social realizada por meio da literatura que demonstra a riqueza do texto do escritor nordestino.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo:

Cortez, 2011.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2010.

_________. Literatura e sociedade. 6. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2010.

_________. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

CATROGA, Fernando. Os passos do homem como restolho do tempo: memória e fim do fim da história. Almedina: Biblioteca Nacional de Portugal, 2009.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed., Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LAFETÁ, João Luiz. O mundo à revelia. In: RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 45. ed. Rio de Janeiro:

Record, 1985.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 45. ed. Rio de Janeiro: Record, 1985.

__________. O romance do Nordeste. Jornal Diário de Pernambuco: Recife, 10 de março de 1935.

SANTOS, Nivalter Aires dos. Movimento regionalista na geração literária de 30: uma análise gramsciana. Minas Gerais: ANPOCS, 2016.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 3. ed. São Paulo:

Duas Cidades, 1998.

No documento SUMÁRIO ISBN 978-65-5608-074-1 (páginas 146-150)