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4 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM DEBATE NA SALA DE AULA

No documento SUMÁRIO ISBN 978-65-5608-074-1 (páginas 70-78)

Hortência dos Santos Souza

4 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM DEBATE NA SALA DE AULA

Ao falamos em língua portuguesa, para muitos, trata-se de uma língua complicada ou difícil de se aprender. Trata-se de mais um dos muitos mitos, como os que foram apontados por Bagno (1999). Como se sabe, todo e qualquer falante domina a gramática de sua língua sem que seja preciso estar diante de uma

“gramática física” em mãos. É o que se conhece por gramática natural, nos termos propostos por Matos (2007). Há, conforme a teoria chomskyana, um conhecimento inato, internalizado da linguagem. Não é, portanto, necessário estar em uma sala de aula para se conhecer a língua e seu funcionamento e saber usá-la.

Levando em conta esse aspecto inato (e, portanto, biológico) de conhecimento da língua, cabe também refletir sobre os diversos usos da linguagem nas mais variadas situações de comunicação concreta. O falante tem a capacidade de interagir com outros, em diferentes contextos e fazendo uso de um repertório sociolinguístico variado conforme seus hábitos linguísticos. O conhecimento inato e o conhecimento adquirido da escola, por exemplo, permitem que o falante empregue uma linguagem de diferentes modos, ora fazendo uso de uma fala mais informal e, em outras, uma mais monitorada. Quanto maior o nível de escolaridade, maior a probabilidade de conhecimento “gramatical” (isto é, normativo) de uma língua.

É consenso na sociolinguística de que em nenhum momento devemos menosprezar as pessoas por não conseguirem fazer emprego da gramática normativa, aliás uma parte da população brasileira ainda não passou por um processo de alfabetização.

Nesse mesmo raciocínio, Bagno (2004, p. 161) afirma:

O que existe, de um lado, em termos de representação ou imaginário linguístico, é uma norma padrão ideal, inatingível, e do outro lado, em termos de realidade linguística e social, a massa de variedades reais, concretas, como se encontram na sociedade.

Todas as formas de fala são igualmente válidas e não há razões justas para a desvalorização de falantes que usam a variante não padrão da língua. O papel da escola é indispensável no debate sobre as questões que se referem à heterogeneidade da língua, em tratar das diferenças linguísticas, das variedades, dos dialetos, da variação e da mudança, além de discutir criticamente o preconceito linguístico e os modos de combatê-lo. Sobre isso, Mattos e Silva (2006, p. 282) afirmam:

Os professores de português, por necessidades exigidas por nossa sociedade discriminatória, têm de explicitar a seus estudantes que certos usos variáveis são censurados em certas situações socioculturais. [...] (o professor) se tiver uma boa formação linguística, especificamente sociolinguística, deverá demonstrar por exercícios o valor social das variantes de um elemento variável no português do Brasil.

Nesse contexto, podemos ressaltar que o professor (de língua portuguesa) tem um papel fundamental no meio escolar. Compete a ele auxiliar no rompimento do pensamento preconceituoso que se instala, especialmente na sala de aula. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, a variação da língua falada é acentuada e precisa ser tratada com a identificação cultural de um povo, e não de forma desrespeitosa e preconceituosa.

A criação e elaboração de projetos e trabalhos com vários gêneros textuais trazem momentos de interação entre o docente e o discente. Essas atividades podem discorrer sobre os diversos eixos da língua. Por meio de um texto, o docente pode explorar a escrita, o aperfeiçoamento da oralidade, a melhoria na leitura. Vale ressaltar que é através da interação e da dinâmica em sala de aula entre professor e aluno que, de fato, a aprendizagem acontece.

O professor mediador, além de ensinar a norma padrão e as regras, também deve priorizar o ensino das variações linguísticas que existem no meio da fala. Desse modo, a escola tem um papel significativo no processo de conscientização e ensino concordante dessas variantes para que, dessa forma, não dê espaço para o preconceito. Adiante, temos a tirinha de Chico Bento, que apresenta um aluno que fala de acordo com o seu convívio social:

Figura 01 – Chico Bento (parte 01)

Fonte: Maurício de Souza (2002).

Com isso, podemos analisar a importância de se trabalhar as variações linguísticas em sala de aula para que, assim, o professor tenha a consciência de que o aluno está se comunicando, apesar de fugir da norma padrão da língua. O falar dele se dá de acordo com o convívio social, isto é, segue os ritos da linguagem oral e apresenta a variação diastrática, nos termos propostos por Aragão (2010).

O gênero tirinha é um meio de comunicação utilizado principalmente pelo público infanto-juvenil, portanto devem ser trabalhadas em sala de aula. No entanto, é necessário que o professor conheça as características dos gêneros trabalhados em suas aulas. A seguir, temos um exemplo de tirinha em que se pode trabalhar, também, as variações diatópicas:

Figura 02 – Chico Bento (parte 02)

Fonte: Maurício de Souza (1999).

Dessa forma, a aprendizagem é construída efetivamente com a teoria e a prática, no que diz respeito ao ensino de língua materna e variação, porque quando o aluno se depara com textos que são utilizados no seu cotidiano pode perceber a importância delas para o seu aprendizado. No caso da tirinha anterior, é possível suscitar um debate sobre os traços da oralidade e do regionalismo que marcam a fala da personagem, abordando, assim, a variação linguística que precisa ser estudada em sala aula.

Dentro desse contexto, consideramos que o professor tem a responsabilidade de ensinar as variações para que, desse modo, os alunos entendam a sua relevância para o convívio social e possam combater o preconceito dentro e fora da sala de aula.

Nesse sentido, Bagno (1999, p. 52-53) afirma que, de fato, existe uma certa tendência no ensino de língua materna de forçar o aluno a seguir uma pronúncia específica para as palavras, bem como um modo único de escrita, que advém de um conjunto de regras prescritas pela gramática normativa. A premissa é: quem não segue, está errado, o correto é “assim” e não de “outro modo”.

Desde as séries iniciais, o professor formador de cidadãos críticos não pode se prender apenas ao estudo de gramática. As concepções linguísticas abrangem uma série de conteúdos em que o discente precisa ter o conhecimento enquanto estudante de língua. Sobre isto, Antunes (2003, p. 40-41) afirma:

O conhecimento teórico disponível a muitos professores, em geral, se limita a noções e regras gramaticais apenas, como se tudo o que é uma língua em funcionamento coubesse dentro do que é gramática. Teorias linguísticas do uso da prosódia, da morfossintaxe, da semântica, da pragmática, teorias do texto, concepções de leitura, de escrita, concepções,

enfim, acerca do uso interativo e funcional das línguas, é o que embasa um trabalho verdadeiramente eficaz do professor de português.

O docente, porém, não é o único responsável pela aprendizagem, mas, sim, todo membro que faz parte da gestão escolar tem o papel de criar interrelações com o aluno. Nem sempre os seus deveres estão sendo cumpridos para esta finalidade.

O próprio sistema educacional brasileiro abre espaço para o preconceito linguístico em sala de aula, uma vez que não há, ainda, ampla discussão sobre esse tema caro aos estudos sociolinguísticos, especialmente, nas situações em que, devido a precariedade do ensino, existem professores de outras áreas que são forçados a lecionar português.

Desse descaso, surgem momentos não apenas de constrangimento para o professor que se vê em uma situação adversa, quanto também ao aluno que não recebe a formação adequada. O preconceito linguístico é também um fator de segregação, de humilhação. O meio escolar deve ser um local de humanização dos conhecimentos, porém, acaba sendo um local de exclusão social, como aborda a tirinha seguinte de Mauricio Sousa (1998):

Figura 03 – Chico Bento (parte 03)

Fonte: Maurício de Souza (1998).

Essa postura de alguns docentes chega a ser de fato preocupante. É preciso que tenhamos professores que saibam e tenham conhecimentos acerca da necessidade de ser estudada a sociolinguística dentro da sala de aula. Muitas vezes, é esquecida a própria língua do aluno, e ainda temos professores que excluem a multiforme variação da língua. Outro fator que incentiva a escola a ser um espaço de preconceito linguístico é não reconhecer a língua materna do aluno.

Notamos que a escola se prende a ensinar uma única variedade linguística: a norma padrão. Assim, qualquer colocação de linguagem que seja feita fora do padrão é considerada inconveniente. Não podemos nos apoiar, no entanto, em apenas uma forma de compreensão da língua, como o querem pessoas de visão mais conservadora e retrógrada sobre a língua. A gramática normativa deve ser estudada, de fato, na escola, mas ela não é a única forma de gramática existente.

Nesta perspectiva, Mendonça (2012, p. 275) comenta que: “Ensinar gramática, nessa concepção, é ensinar língua, que por sinal é norma culta, o que significa desprezar outras variedades não só por ignorá-las, mas por considerá-las inferiores”.

Esse contexto nos fazer entender que o ensino permanece rodeado de preconceitos em nossa sociedade. Este não é, todavia, um problema recente no âmbito da educação formal, mas é um problema herdado de nosso passado. Com isso, cabe-nos refletir sobre as práticas pedagógicas que ainda são ofertadas de modo tradicional, procurando conhecer e adequar todas as variações, respeitando os valores sociais, culturais e as especificidades de nossa língua materna.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos que, apesar dos avanços na educação, as variedades linguísticas ainda são pouco debatidas em sala de aula. O ensino, por vezes, se prende demais ao ensino tradicional, no qual a gramática normativa é suficiente para os discentes compreenderem a língua em toda a sua complexidade. Por meio dessa gramática teorética, muitos acreditam que conhecerão a língua em sua plenitude. Como se sabe, porém, a língua vai além de um mero conjunto de regras prescritas. A falta de diálogo sobre as variedades abre caminho para o preconceito linguístico. É necessário combater esse preconceito desde cedo.

Sendo assim, é realmente necessária uma reflexão sobre o modelo de ensino hoje vigente na maioria das escolas, que toma o princípio normativo como único método. É preciso ir mais além. Não queremos, porém, dizer que a gramática normativa não teria seu lugar. Dizemos, sim, que os docentes precisam ir além da gramática, servindo-se dos ensinamentos da linguística, especialmente nas ocasiões em que a teoria gramatical não dá conta. O ensino gramatical deve ser preservado, acima de tudo. O bom senso também. Devemos respeitar as diferenças linguísticas.

Nesse sentido, este capítulo buscou discutir o uso da língua em situações concretas de interação social, a fim de se construir uma linguagem com o aluno/falante/leitor que o coloque em condições de fazer o uso da sua própria língua com propriedade suficiente para obter os resultados linguístico-sociais desejados em qualquer interação social.

A partir da breve revisão de literatura realizada, bem como da avaliação crítica feita sobre o tema, percebemos que a discussão acerca das variedades linguísticas é, de fato, importante desde as séries iniciais. É a partir desse momento que os alunos começam a ter contato com a língua e, dessa forma, eles poderão entender que a língua portuguesa não é somente uma gramática “complicada” ou um conjunto de regras isoladas da efetivação da comunicação, mas um sistema complexo, heterogêneo e múltiplo. Desse modo, vale ressaltar que a língua é viva e acompanha o indivíduo ao longo dos tempos. A língua muda e se reinventa juntamente com os falantes. Sendo assim, não existe certo ou errado no uso da língua, mas, na verdade, o que há é uma forma adequada ou inadequada de usar a linguagem em um determinado contexto.

Por fim, constatamos a relevância de abordar e trabalhar com os discentes sobre as variedades linguísticas como objeto e objetivo do ensino da língua para que, assim, os alunos se familiarizem com as diversidades da língua.

REFERÊNCIAS

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ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. Variantes diatópicas e diastráticas na língua portuguesa do Brasil. Graphos, João Pessoa, vol. 12, n. 2, p. 35-51, dez./2010.

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_______. A Língua de Eulália: novela sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2003.

_______. Norma linguística, hibridismo & tradução. Traduzires, n.1, p. 19-32, mai. 2012. Disponível em:

https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/10546/1/ARTIGO_NormaLinguisticaHibridismo.pdf.

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Parábola Editorial, 2002.

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BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais. Ética. Brasília: MEC/SEF, 1997.

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.

FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desembaraçando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.

MENDONÇA, Marina Célia. Língua e ensino: políticas de fechamento. MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina. Introdução a linguística: domínios e fronteiras. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2012.

MATOS, Denilson Pereira. História da Linguística. Rio de Janeiro: Universidade Castelo Branco (UCB), 2007.

NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática na escola. São Paulo: Contexto, 2002.

SAUSSURRE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 27.ed. São Paulo: Cultrix,2006.

SOUZA, Adílio Junior de. O preconceito linguístico em debate: quais gramáticas descritivas usar? In:

Anais do I Simpósio de Glotopolítica e Integração Regional. João Pessoa: Editora da UFPB, 2017.

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http://blogdoxandro.blogspot.com/. 1998. Acesso em: 10 nov. 2019.

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Acesso em: 10 nov. 2019.

Parte 2 – Literatura

SOBRE O AMOR IRREALIZADO EM “O QUINZE”, DE

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