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4 UMA LEITURA DA OBRA O QUINZE

No documento SUMÁRIO ISBN 978-65-5608-074-1 (páginas 84-93)

Amanda Fernandes de França

4 UMA LEITURA DA OBRA O QUINZE

Para início, recorremos em primeira instância, às cenas iniciais d’O Quinze, a partir da descrição de Davi Arrigucci Júnior (2010), em seu texto O sertão em surdina. Assim, de forma sucinta, a descrição desenvolve-se da seguinte forma:

Uma jovem professora, em férias na fazenda da avó que a criou, ajeita ao lado da cama o lampião de querosene e alguns livros lidos e relidos. Daí a pouco Conceição recomeçará a leitura, atravessando a noite, até que os resmungos da avó a interrompam pelo adiantado da hora. Momentos antes, fazendo as tranças, demonstrara apreensão, ao interpelar Dona Inácia sobre a falta das chuvas. Março principia, e a avó, com os olhos ainda confiantes no alto, está rezando para são José; vista da janela, a lua limpa dá sinal da estiagem que promete persistir além do esperado. O inverno, estação das águas, tarda a chegar ao sertão de Quixadá, já desolado pela seca (ARRIGUCCI JÚNIOR, 2010, p. 87).

A princípio, devemos dizer que nenhuma síntese ou resumo são capazes de substituírem a essência descritiva das cenas iniciais do romance de Rachel de Queiroz, mas pode nos ser muito útil como suporte interpretativo, pois, assim como a obra, esse resumo nos apresenta, com singularidade, Conceição, uma jovem professora dada a leituras, muito independente e cheia de ideais que não correspondem a uma moça de sua época. Conceição estava certa de que não seria incômodo ficar solteira, por exemplo, o que para outra moça do seu entorno seria impensável.

O narrador (QUEIROZ, 2018, p. 20) aponta, sobre a personagem, que “suas poucas tentativas de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o tempo de normalista; dizia alegremente que nascera solteirona”. Com isto, percebemos que ela é uma mulher que procura ser diferente das de sua época. Ela sente atração por seu primo Vicente, mas, conforme Arrigucci Júnior (2010, p. 92) afirma, Conceição está “acostumada ‘a pensar por si, a viver isolada’, entregue às leituras e às ideias [...], condenando-se ao insulamento, ao optar pela independência e pelo destino diferente do das moças do lugar”.

Já Elódia Xavier (1998, p. 35) define Conceição, no contexto no qual ela está inserida, como uma mulher que “não se enquadra nas práticas sociais vigentes, porque não aceita o casamento como destino inevitável”. A autora completa dizendo que, apesar de seu meio vislumbrar a mulher solteira como “um “aleijão”, Conceição

“prefere se conservar só, apesar da atração física que sente por Vicente”.

O narrador (QUEIROZ, 2018, p. 88) diz-nos que Conceição “pensou que, mesmo o encanto poderoso que a sadia fortaleza dele exercia nela, não preencheria a tremenda largura que os separava”. Desse modo, há certo momento da narrativa, após a visita de Vicente à casa da tia Inácia, à procura de carrapaticida para o gado, em que Conceição nos revela, através do narrador onisciente intruso, as lembranças que ela resguarda da casa do Major, no dia da inauguração do gramofone, em que houve um momento de festa cujos presentes se puseram a dançar. O narrador assim descreve a cena:

Mal começou a dança, entrou Vicente, encourado, vermelho, com o guarda-peito encarnado desenhando-lhe o busto forte e as longas perneiras ajustadas ao relevo poderoso das pernas. A Conceição pareceu que uma rajada de saúde e de força invadia subitamente a sala, purificando-a do falsete agudo do gramofone, das reviravoltas estilizadas dos dançarinos (QUEIROZ, 2018, p. 27).

A partir desse flashback, podemos pensar que Conceição nos apresenta, através de um passado próximo, o rapaz a quem ela direciona seus afetos. Seria ele uma espécie de “cara-metade”, complemento afetivo, seu outro “eu”, para fazermos uma analogia com os andróginos do mito?

Com a chegada de Vicente, ela tem a sensação de que o espaço ficou preenchido com a força e imponência do rapaz. Na presença dele, ela parece estar, supostamente, feliz, preenchida, realizada. Ao centrar-se novamente em sua realidade, Conceição parece querer fugir da visão romântica que enxerga a mulher como um ser que, culturalmente, só pode encontrar a felicidade e o amparo social na relação afetivo-amorosa que deve ser garantida por meio do matrimônio.

Dos poucos encontros retratados entre Conceição e Vicente, em O Quinze, podemos afirmar que Vicente parece encontrar sua suposta “cara-metade” na figura de sua prima Conceição. Ela seria, novamente recorrendo à analogia dos andróginos, seu outro “eu”. Quanto a ela, não é difícil perceber, nas atitudes de Vicente, que ele fica cada vez mais próximo dela, correspondendo a seu afeto.

Na cena em que Mãe Nácia vai com Conceição para a capital, Vicente vai ao encontro delas, para despedir-se:

– Adeus, Vicente. Diga às meninas que escrevo, assim que chegue. Dê um abraço forte em tia Idalina.

– Cadê o abraço?

Ela riu-se e abraçou-o:

– Tome! Leve direito!...

– Acho que acabo é ficando com ele... A gente vai sentir tanta saudade de você!

Conceição aproveitou o momento para reiterar o convite tantas vezes feito:

– Por que não vão lá para casa, passar uns dias?

– Quem pode! Só se deixasse aqui tudo morrendo... Não sei se posso nem ir ver vocês, de carreira...

– Dê um jeito... você querendo dá. E leve ao menos uma das meninas.

A sineta bateu, a máquina apitou forte.

Dona Inácia alarmou-se:

– Salte, meu filho! O trem já vai embora!

Vicente já estava na plataforma.

De fora, beijou a mão da tia e apertou ainda uma vez a de Conceição; o trem marchava devagarinho.

À janela, a moça acenava com a mão, depois com o lenço, que vibrava como uma asa fugitiva, voando para longe.

Vicente correspondia, sacudindo, num grande gesto de adeus, seu largo chapéu de massa.

Já o horário corria, e Conceição ficou vendo ainda o primo, alto e isolado, na plataforma (QUEIROZ, 2018, p. 42).

Apesar do forte sentimento que Conceição direciona a Vicente, ela tem muita dúvida se deve ceder à atração que tem por ele. Ela despreza as possibilidades de viver o amor como se, de alguma forma, seu destino na narrativa já estivesse estabelecido: ela se vê presa a uma vida solitária, de trabalho e leituras. Ademais, na visão de Adolfo Casais Monteiro (1982, p. 15), Conceição reconhece, independentemente de haver ou não comunicação com o primo, o tamanho da

“muralha que se vai erguendo entre ambos à medida que ela vai entendendo o que sente”. Conceição opta pela vida solitária, quando poderia viver com Vicente o amor típico das moças aptas ao casamento. Ela quer seguir sua vida muito mais como uma mulher emancipada do que como uma mulher casada.

A conflituosa história de amor dessas personagens, se é que podemos chamá-la assim, trata-se, conforme frisa Schmidt (2018, p. 170), de um “amor irrealizado – que a gente não chega mesmo a saber se é amor”.

Além do mais, essa história poderia, supostamente, ter alcançado a visão de felicidade no amor, já que os dois demonstram afeto para além do grau de parentesco e da amizade que um tem pelo outro. Desse encontro, conforme Aristófanes menciona em seu discurso, se daria uma soma de dois seres que resultaria em um só ser. Sendo dois em um só corpo, o amor poderia proporcionar-lhes ampla felicidade.

Por esse viés, se o amor entre eles se realizasse, poderíamos entender que ali haveria uma situação inversa à tendência da seca de massacrar tudo, mas o que percebemos é que até o amor, com o avanço da seca, também definha. Tudo é contaminado, de algum modo, pela seca com seu ar destruidor.

Além disso, se analisarmos o nome de Conceição3, podemos encontrar nele duas possibilidades de leitura: 1) uma religiosa e 2) uma conceitual. Assim, o vocábulo Conceição tem relação com um ser do sexo feminino que, através do ato sexual, tem a capacidade, em sua essência materna, de dar a vida a outro ser. Se relacionarmos esse nome à religiosidade católica, temos a menção à Maria, mãe de Jesus, chamada, em seus diversos nomes, de Nossa Senhora da Conceição. Ela se chama assim porque ela gera um filho, no entanto sua concepção é divina (ela traz a possibilidade de contribuir com a salvação do mundo, segundo o cristianismo,

3 DICIONÁRIO DOS NOMES PRÓPRIOS. Conceição. Disponível em:

https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/conceicao/. Acesso em: 15 jun. 2020.

através da concepção de Jesus, uma vez que ele teria vindo ao mundo, segundo a crença, para salvar os homens).

Percebemos, também, que o seio familiar a que Conceição está vinculada é marcado pelo respeito à fé cristã, cultuado por seus descendentes e, principalmente, pela avó que a criara. Sua avó, Inácia, traz com frequência um terço nas mãos e recorre à reza em alguns momentos da narrativa.

Do ponto de vista conceitual, o sentido dado à palavra Conceição faz referência, também, à concepção de ideias. Conceição nos é revelada pelo narrador do romance como uma professora, poetisa, escritora (ela escreve um livro sobre Pedagogia) e sente-se atraída pela leitura de livros de autores franceses. Por isso, ela não vê o casamento como o único destino para a mulher. Ela tem muitas concepções (ideias) diferentes das mulheres de sua época.

O vocábulo Vicente4 faz menção a um ser que está, em diferentes momentos, a vencer e, até mesmo, está esperançoso, busca conquistar algo. Além disso, sua carga semântica nos permitir afirmar que seu sentido tem uma forte relação com as seguintes palavras: vivacidade, vida e virilidade. Assim, podemos ressaltar que Vicente é um homem vencedor, apesar das dificuldades que a seca lhe traz. Ele consegue cuidar, durante os longos meses de estiagem, do gado e da família, e procura investir em seu amor por Conceição cujas tentativas, em muitos momentos, foram esperançosas. Tais esperanças, porém, foram barradas aos poucos pela racionalidade de Conceição.

Conceição demonstra ser sensata em vários momentos do romance, todavia ela se deixa levar e acaba se abalando em uma de suas visitas ao campo de concentração. Nesse local, ela recebe informações maldosas a respeito do primo, dadas por Chiquinha Boa, ex-moradora de sua tia Idalina. Chiquinha Boa percebe a comoção de Conceição ao saber que Vicente está morando sozinho na fazenda, por vontade própria, para cuidar do gado e dos demais afazeres da fazenda. Enquanto isso, o restante da família reside em Quixadá. Ao perceber que Conceição fica comovida com o sofrimento do primo, Chiquinha Boa revela o seguinte:

– Qual nada! Seu Vicente é pessoa muito divertida... É naquela labuta, mas sempre tirando prosa com um, com outro... É um moço muito sem bondade... Dizedor de prosa como ele só!...

Conceição deixava-a falar, e a Chiquinha continuou, num riso malicioso:

– E até aquela filha do Zé Bernardo, só porque sempre ele passa lá e diz alguma palavrinha a ela, anda toda ancha, se fazendo de boa...

Conceição estranhou a história e não pôde se conter:

– E ele tem alguma coisa por ela?

A mulata encolheu os ombros:

– O povo ignora muito... Se tiver, pior para ela... Que moço branco não é pra bico de cabra que nem nós...

A conversa principiou a incomodar Conceição; o mau cheiro do campo parecia mais intenso; e levantou-se, dando uma prata à mulher.

(QUEIROZ, 2018, p. 66).

4 DICIONÁRIO DOS NOMES PRÓPRIOS. Vicente.

https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/vicente/. Acesso em: 15 jun. 2020.

Esse fragmento mostra um dos motivos que influencia Conceição a, apesar de gostar de Vicente, desistir de vez do afeto que direciona a ele. Ela não consegue pensar na ideia de casar com um homem que se envolve com outras mulheres sem que isso represente uma punição social, como ocorreria se uma mulher fizesse o mesmo. Observemos o que nos revela o narrador após a visita de Vicente à capital:

Conceição, calada, olhava o primo. Estava mais bonito.

[...]

Era o mesmo homem forte do sertão, de beleza sadia e agreste, tostado de sol, respirando energia e saúde...

Subitamente, porém, a moça recordou a história da Chiquinha Boa.

Ele, nesse momento, se voltava para a prima, mostrando num sorriso os dentes brancos [...].

[...]

Com despeito, ela pensou que talvez aquele riso, aquela fala carinhosa, ele também os empregava conversando com a cunhã do Zé Bernardo... E respondeu frouxamente:

– [...] Ah! Sabe quem encontrei no Campo? A Chiquinha Boa...

Dona Inácia atalhou:

– E eu estranhei, uma moradora sua, nessa desgraça!

Mas Vicente explicou, aborrecido:

– Aquilo é uma doida, uma vagabunda. Danou-se para vir pro Ceará porque ouviu dizer que estavam tratando retirante à vela de libra. Queria vir até a pé: eu ainda arranjei passagens com pena.

– Ela me falou em todos. Deu notícia de tudo, da ida de seu povo para o Quixadá... Até da gente do Zé Bernardo...

Vicente não compreendeu a intenção oculta:

– O Zé Bernardo, sim! Cabra de vergonha, bom de verdade! É minhas mãos e meus pés. De dia e de noite, como se tudo fosse dele.

Conceição, olhando-o de frente, insistiu:

– As filhas também são muito boas, não são? A Zefinha mormente...

Ele, com o mesmo gesto inocente, confirmou:

– Muito boa rapariga. É quem cuida de minha roupa.

– É!... – E Conceição, furiosa com a incompreensão verdadeira ou fingida, e com o sossego dele, concentrou nesse “é” toda sua ironia despeitada.

[...]

E ele foi descobrindo uma Conceição desconhecida e afastada, tão diferente dele próprio, que, parecia, nunca coisa nenhuma os aproximara.

(QUEIROZ, 2018, p. 84-86).

Esse fragmento nos permite identificar duas hipóteses de leitura: 1) Conceição, em sua busca de racionalizar o sentimento que tem por Vicente, termina por usar a história da filha de Zé Bernardo como desculpa para não prosseguir na relação com o rapaz; 2) Vicente, por sua vez, começa a ver a distância que existe entre os dois, porquanto ele estranha o fato de Conceição sair sozinha para o Campo de Concentração e sua frieza de tratamento.

Conceição desiste de vez de Vicente, apesar de reconhecer o quanto a

“saudável” fisionomia dele a atrai. Ela até o considera, desta vez, muito mais bonito do que das outras vezes. Por questão de segundos, entretanto, vem à sua mente as palavras de Chiquinha Boa, fazendo-a tratar Vicente com indiferença e frieza, sem sequer perguntar a ele se a história era verdadeira ou falsa. Isso porque, em sua concepção, a história ganha contornos de verdade.

Vicente, com suas atitudes incompreensíveis, julga que ela está diferente daquela que ele conheceu nas redondezas do Quixadá. Ela age, segundo ele, como se na vida nada lhes tivesse aproximado.

O narrador, mais uma vez, mostra o pensamento de Conceição em relação a Vicente, como apreendemos do trecho:

O seu pensamento, que até há pouco se dirigia ao primo como a um fim natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante.

Ele lhe parecia agora como um desses recantos da mata, próximo a um riacho, num sombrio misterioso e confortante. Passando num meio-dia quente, ao trote penoso do cavalo, a gente para ali, olha a sombra e o verde como se fosse para um cantinho de céu...

Mas volvendo depois, numa manhã chuvosa, encontra-se o doce recanto enlameado, escavacado de minhocas, os lindos troncos escorregadios e lodosos, os galhos de redor pingando tristemente.

Da primeira vez, pensa-se em passar a vida inteira naquela frescura e naquela paz; mas à última, sai-se com o coração pesado, curado de bucolismo por muito tempo, vendo-se na realidade como é agressiva e inconstante a natureza...

Ele era bom de ouvir e de olhar, como uma bela paisagem, de quem só se exigissem beleza e cor (QUEIROZ, 2018, p. 87-88).

Percebemos que nesse trecho há uma símile. Utilizando-se deste recurso, o narrador onisciente aponta a comparação que Conceição faz entre Vicente e o recanto da mata. Este recanto é imagem que, em tempos de seca, parece ser bela.

Mas, do modo como surge no trecho, de um lado, o recanto parece ser um lugar feliz;

de outro, o recanto parece ser um lugar triste. Ademais, Conceição vê Vicente ora como uma pessoa atraente e com a qual ela gostaria de manter uma relação amorosa, ora como uma pessoa com quem seria impossível viver por ele não atender às expectativas que ela nutre em relação a ele.

Muitos fatores impedem Conceição e Vicente de seguirem juntos através do casamento. Conceição, com sua tendência ao excesso de pensamento, chega à seguinte conclusão, pois ela:

Pensou no esquisito casal que seria o deles, quando à noite, nos serões da fazenda, ela sublinhasse num livro querido um pensamento feliz e quisesse repartir com alguém a impressão recebida. Talvez Vicente levantasse a vista e lhe murmurasse um “é” distraído por detrás do jornal...

Mas naturalmente a que distância e com quanta indiferença... (QUEIROZ, 2018, p. 88).

Diante disto, recorrendo mais uma vez ao mito dos andróginos, no que se refere à parte em que Zeus os corta ao meio, Marques (2010, p. 47) afirma que:

A consciência do corte está ligada ao sentimento, mas é mais do que uma experiência transitória: o indivíduo cortado tem a oportunidade de aprender que o outro não vai restaurar sua unidade originária; ele pode, assim, pela vida compartilhada e a satisfação que a convivência proporciona, amar e trabalhar de modo construtivo, menos desesperado talvez.

Conforme o mencionado, podemos ressaltar que a relação de Vicente e Conceição, por essa perspectiva, esteve, sim, vinculada a um sentimento amoroso.

Um sentimento até puro, porém o que encerra essa história que poderia ser de amor é a decisão de Conceição de não ceder ao amor por conveniência e optar pela solidão.

O amor não foi capaz, em O Quinze, conforme Aristófanes menciona em seu discurso, de restaurar a velha natureza, mas, sim, de nos revelar um amor irrealizado, que não passou de mera expectativa. No que se refere a Vicente, ele não desiste de vivenciar um relacionamento afetivo-amoroso, no entanto ele também desiste de insistir no amor pela prima.

Na tentativa de ter certeza de que seu sentimento por Vicente não a ampliaria em sua busca de emancipação, Conceição cria os mais diversos motivos para confirmar, para si mesma, que está certa em sua decisão:

Foi então que se lembrou que, provavelmente, Vicente nunca lera o Machado... Nem nada do que ela lia. Ele dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado... Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendência, de vida (QUEIROZ, 2018, p. 87).

Destinada a viver só, sem companheiro, Conceição, como forma de suprir a maternidade, andava, como afirma o narrador (QUEIROZ, 2018, p. 109), “com o destino de criar uma criança. E se é de ficar com qualquer um, arranjado por aí, mais vale ficar com este, que é afilhado”. As personagens Cordulina e Chico Bento, por necessidades oriundas da seca, acabam dando o filho Manoel, cujo apelido é Duquinha, à comadre Conceição que, apesar das dificuldades no início, consegue cuidar, sob o olhar de mãe Nácia, de seu “filho”. Conceição é uma mulher que consegue ser mãe, como a simbologia religiosa presente em seu nome sugere, sem precisar passar pelo casamento e pelo ato sexual. Ela consegue ter a sensação de ser mãe e cria um lar sem, necessariamente, ter que ter ao lado a presença da figura masculina.

Após cessar a seca, a chuva chega em Quixadá, para a alegria de todos. As pessoas, porém, ficam curiosas para saber sobre Conceição estar sozinha, já que ela demonstra interesse por Vicente. Como resposta a um jovem dentista, que a pergunta sobre o amor, Conceição diz que:

Ora o amor!... Essa história de amor, absoluto e incoerente, é muito difícil de achar... eu, pelo menos, nunca o vi... o que vejo, por aí, é um instinto de aproximação muito obscuro e tímido, a que a gente obedece conforme as conveniências... Aliás, não falo por mim... que eu, nem esse instinto...

Tenho a certeza de que nasci para viver só (QUEIROZ, 2018, p. 155).

Conceição opta por viver sozinha. Seu modo de pensar a leva para uma certeza sobre si mesma: ela não precisaria de um homem para se sentir completa e feliz. Ela consegue suprir o desejo de ser mãe, por exemplo, adotando Duquinha. Ela direciona à criança um amor puro e maternal e pode dizer que é mãe sem, contudo, ter que conceber um filho, o que exigiria dela, pelo meio social em que ela vive, estar casada.

Conceição não se sente fracassada porque o amor não aconteceu em sua vida.

Sua visão de felicidade não se resume a uma busca incessante por uma “cara-metade”, tão aos moldes do que foi assimilado do mito dos andróginos até os dias de hoje. Ela é uma personagem feminina que vivencia um amor irrealizado, sim, porque seus ideais de mulher à frente de sua época são mais importantes para ela do que

Sua visão de felicidade não se resume a uma busca incessante por uma “cara-metade”, tão aos moldes do que foi assimilado do mito dos andróginos até os dias de hoje. Ela é uma personagem feminina que vivencia um amor irrealizado, sim, porque seus ideais de mulher à frente de sua época são mais importantes para ela do que

No documento SUMÁRIO ISBN 978-65-5608-074-1 (páginas 84-93)