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2 HERÓI PERFEITO: O PERCURSO DE ULISSES

No documento SUMÁRIO ISBN 978-65-5608-074-1 (páginas 132-138)

Sheyla Maria Lima Oliveira

2 HERÓI PERFEITO: O PERCURSO DE ULISSES

Após vinte anos de ausência, Ulisses retorna para Ítaca e encontra seu palácio invadido e seus bens sendo dilapidados pelos pretendentes de Penélope. Ele é o único herói dentre os que estiveram lutando na guerra de Troia que passa todo esse tempo para conseguir voltar para sua casa, isso porque passou metade dos anos permanecendo no cerco até que a cidade de Troia fosse destruída. Nos demais anos, se aventurou por terras e mares, por um lado, sendo perseguido por Poseidon, e, por outro, sendo ajudado por Atena. No retorno de Ulisses, a deusa Atena o transforma em mendigo impedindo que ele fosse reconhecido de imediato, dessa forma, o herói consegue matar os invasores.

A areté é um valor intrínseco do herói guerreiro, denota excelência em dois campos de atuação: na guerra, quando o guerreiro prova sua destreza, força e coragem bélica, e também quando o herói demonstra sua habilidade de persuasão através do discurso – aqui, se destaca nosso Ulisses. Desse modo, um herói guerreiro objetiva a excelência nos dois âmbitos. Quanto maior a excelência, maior a honra.

Essa busca por excelência é impulsionada pela necessidade que o herói épico tem de se imortalizar, de permanecer vivo na memória das futuras gerações. Para isso, são necessários grandes feitos, de modo a tornar o herói um modelo a ser seguido. Sua trajetória guerreira coroada com a “bela morte” outorgará a imortalidade do herói através da glória imperecível, visto que ele será sempre lembrado pelo canto do Aedo. Com efeito, o fato de Ulisses não precisar morrer para se consagrar o torna um herói perfeito: isso fica nítido no Canto XI, quando o herói vai ao Hades sem precisar de nenhuma invocação, pois, uma vez que ele já havia conquistado a glória imperecível, busca apenas o retorno para casa. Quando Ulisses chega à terra dos Feáceos, é oferecido um banquete para ele. Nesse episódio, o Aedo Demódoco canta seus feitos na guerra de Troia, assim, percebemos que a imortalização do herói da Odisseia já está consagrada. Vale acentuar que na Ilíada Ulisses buscava a imortalidade da sua glória, mas, ao observarmos a narração da Odisseia, é possível notar que o herói passa por uma espécie de “humanização”, uma vez que ele prefere envelhecer ao lado da esposa e recusa a imortalidade oferecida pela ninfa Calipso.

4 Característica traduzida como virtude elevada ou excelência heroica, princípio usado em toda a educação dos jovens gregos. No mundo homérico a virtude cabe apenas ao homem guerreiro.

Desta sorte, os 12.109 versos5 da Odisseia descrevem Ulisses por meio de palavras bem formadas para a métrica do poema. Ele é o herói que conquista terras desconhecidas habitadas por selvagens, territórios marítimos dominados por monstros como Caríbdis, além de descer até as profundezas do mundo baixo, o herói atinge o ponto máximo de sua conquista, é o primeiro humano a entrar no reino dos mortos sem ser um deles.

Durante toda a narrativa, os epítetosreferem-se à inteligência e à capacidade de Ulisses em suportar adversidades, construindo, assim, o caráter do herói, dotado de areté. Desse modo, no que se refere à construção do perfil de herói perfeito, esta fica caracterizada desde os epítetos anunciados já no Canto I da Odisseia: o “homem astuto”, “o sagaz”, “o paciente”, “o prudente”. E na sequência, nos demais cantos do poema: “o engenhoso”, “o divino”, o “ardiloso”, “o que é fecundo em recursos”, “o saqueador de cidades”, “o de muitos desvios da mente”, o “filho de Laertes”, todos fazendo referência à sua inteligência e à sua capacidade de suportar adversidades.

Nesse sentido, os epítetos são significativos para que os leitores atentos já imprimam em sua mente a imagem de um mito grego, um modelo a ser seguido.

Além disso, os epítetos são uma ferramenta típica dos poemas homéricos e, por isso, se destacam na representação do herói. Aqui, entendemos os epítetos como uma expressão que junto ao nome consegue ampliar, quantificar, qualificar e realçar uma ideia inerente ao herói. Dessa forma, na relação semântica que se estabelece entre o adjetivo e o nome há um caráter enunciativo que pode exprimir um sentido próprio que caracteriza o perfil do herói.

Assim, o epíteto “homem astuto” utilizado para predicar Ulisses realça uma característica que marca este herói na narrativa, diferindo-se de Aquiles, “o melhor dos aqueus”, por exemplo, que não aparece, em geral, designado por essa qualidade.

O epíteto de Ulisses designa sua virtude intelectual, já o de Aquiles se refere a sua qualidade guerreira no campo de batalha. Na Odisseia, há epítetos que caracterizam tanto Ulisses quanto Penélope: é o caso do “muito prudente” que suscita prontamente a imagem de ambos. Vale ressaltar, de modo mais genérico, que além dos aspectos do caráter do herói, os epítetos podem descrever aspectos de sua força física, de suas ações ou apenas imagens.

No mundo homérico, objeto de nosso estudo, o herói é aquele que possui uma virtude guerreira, que está no campo de batalha para defender a sua excelência, de forma que esse herói épico se define mais por suas ações do que pelas suas palavras, estamos nos referindo aqui aos heróis que já estão prontos em sua glória particular.

Ao narrar seus feitos, o poeta torna esse herói em mito, para ser lembrado e celebrado, servindo de exemplo para as gerações futuras. É o que acontece com nosso Ulisses que, segundo Hesíodo, figura ao lado de Aquiles como um dos últimos dessa raça de heróis.

No Dicionário de Teoria da Narrativa (1988), de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, encontramos a postulação teórica do conceito de herói em termos histórico-literários:

5 Essa quantidade de versos é apresentada por Bernard Knox na parte introdutória da versão traduzida por Frederico Lourenço.

[...] sob o impacto do legado cultural da Antiguidade Clássica, o herói corporiza a capacidade de afirmação do Homem, na luta contra a adversidade dos deuses e dos elementos, no Romantismo encontramos o herói num cenário axiológico e histórico-social sensivelmente diverso (REIS; LOPES, 1989, p. 211).

Com base em uma crítica mais recente, acerca do conceito de herói, Northrop Frye, em Anatomia da Crítica (2014), ao apresentar sua teoria dos modos, explica que as ficções podem ser classificadas pelo poder de ação do herói, que pode ser maior que o nosso, menor ou aproximadamente o mesmo. Desse modo:

Se superior em grau a outros homens, mas não a seu ambiente natural, o herói é um líder. Ele possui autoridade, paixões e faculdades de expressão muito maiores que as nossas, mas o que faz está sujeito tanto à crítica social, como à ordem da natureza. Esse é o herói do modo mimético elevado, da maior parte da epopeia e da tragédia, e é fundamentalmente a espécie de herói que Aristóteles tinha em mente (FRYE, 2014, p. 146).

Ainda sob as conceituações do herói, o poeta Hesíodo, no famoso “Mito das cinco raças”, caracteriza o herói como um semideus, um ser especial que é mortal e divindade ao mesmo tempo. Com efeito, o divino favorece o herói desde que este siga o que é estabelecido pelos deuses. Desse modo, é necessário que o herói mostre que é merecedor e digno de glórias, ou seja, que ele é capaz de superar todas as dificuldades sem ofender os preceitos divinos.

Após a morte do herói que morre no campo de batalha, seus feitos são cantados pelo Aedo, porque assim sua memória jamais será esquecida. Ao tornar-se poesia, torna-se imortal. Outra forma de tornar-se imortal é quando o herói é arrebatado pelos deuses. Com efeito, Ulisses é o herói perfeito porque ele não precisa morrer no campo de batalha, recusando, além disso, a imortalidade e a virilidade oferecidas pela ninfa Calipso. O herói da Odisseia recusa a oferta porque consegue reconhecer que é a adversidade que faz com que o herói se torne herói, e não a perfeição. O professor Milton Marques Júnior, em ensaio presente na obra Construções literárias e discursivas da modernidade (2008), nos fala da perfeição de Ulisses:

Guerreiro temido, homem astucioso com um pensamento de mil voltas, guardião da memória, capaz de passar as piores provações, mesmo a de ser agredido e insultado dentro de seu próprio palácio; habilidoso artesão, Odisseus é o herói perfeito, sobretudo porque, tendo a possibilidade de ser divino prefere ser humano, prefere a volta ao lar, o convívio com a mulher que envelhecerá junto a ele; prefere poder acompanhar a transformação do filho em homem; prefere recuperar o pai. As provações de Odisseus lhe dão a têmpera para melhorar como humano (MARQUES JÚNIOR, p. 133).

Podemos destacar, nas ações de Ulisses na Ilíada, uma que é digna de quem possui astúcia, que é fazer um cavalo cheio de guerreiros entrar em Troia, ação que fez os gregos ganharem a guerra. Já no ambiente narrativo da Odisseia, a mesma astúcia se destaca no mundo das conquistas de Ulisses pelos mares e terras distantes, em ambas as narrativas, a grandeza e o heroísmo do personagem são elementos estruturais do enredo.

É fato que a ficção heroica surgiu de uma estética criada na narrativa épica que, enfatizamos, é dedicada à glorificação de heróis que são guiados por deuses, assim configurados como uma geração de heróis que, por excelência, servem a grandes causas e têm um código de honra. Dessa forma, o perfil dos heróis épicos ou clássicos foi construído como verdadeiro paradigma. Georg Lukács, no capítulo

“Culturas fechadas”, do ensaio A teoria do romance (2009), ao comparar o mundo fechado da epopeia com o mundo fragmentado do romance, fala da perfeição da alma desse herói épico:

O dever-ser é para ele apenas uma questão pedagógica, uma expressão de que ainda está a caminho de casa, mas não exprime ainda a relação única e insuperável com a substância. E também no próprio homem não há nada que obrigue ao salto: maculado pelo afastamento da matéria em relação à substância, deverá ele purificar-se na proximidade à substância da ascensão imaterial; um longo caminho jaz diante dele, mas dentro dele, nenhum abismo (LUKÁCS, 2009, p. 29-30).

Desta sorte, ao analisar os estudos clássicos literários percebemos que foi em torno de mitos e arquétipos que se baseou a tradição cultural da Grécia antiga, seus mitos tem uma presença tão forte na cultura ocidental que seus efeitos e expressões permanecem até hoje, não só na escrita, como também na oralidade. Logo, na introdução da Poética (2017, p. 19), observamos que: “Aristóteles, por sua vez, enaltece o mito, tornando o caráter da personagem um efeito construído, sobretudo na composição do enredo”. Dessa forma, os heróis tornaram-se encarnações simbólicas que perduraram como padrão de comportamento por muitos séculos. O teórico Luiz Costa Lima na obra Mímeses e modernidade: formas das sombras (1980), discutindo em torno do conceito e da concepção grega da expressão “mimesis”, procura ver a articulação com a realidade das representações sociais:

Deuses, mitos e heróis são molduras destinadas à canalização dos comportamentos sociais, seja sob a forma de culto a eles prestados, seja sob a forma de representação explícita e previamente estocadas para que os indivíduos estabeleçam laços de identidade com o seu grupo e seus interesses (LIMA, 1980, p. 70).

Com efeito, para contextualização, escolhemos o mito que está presente no Canto XII da Odisseia, conhecido como o canto das Sereias. Geralmente, percebemos na obra um caráter de certa forma intencional dos mitos, como o interesse da dominação, aqui, muito presente:

Às sereias chegarás em primeiro lugar, que todos os homens enfeitiçam, que delas se aproximam.

Quem delas se acercar, insciente, e a voz ouvir das Sereias, ao lado desse homem nunca a mulher e os filhos

estarão para regozijarem com o seu regresso;

mas as Sereias o enfeitiçam com seu límpido canto,

ossadas de homens decompostos e suas peles marcescentes.

Prossegue caminho, pondo nos ouvidos dos companheiros cera doce, para que nenhum deles as ouça.

Mas se tu próprio quiseres ouvir o canto,

deixa que, na nau veloz, te amarrem as mãos e os pés

enquanto estás de pé contra o mastro; e que as cordas sejam atadas ao mastro, para que te possas deleitar com a voz das duas sereias. E se a eles ordenares que te libertem,

então que te amarrem com mais cordas ainda. (Canto XII, v. 39-55)

Após ouvir a feiticeira Circe o herói não tenta tomar um caminho diferente, visto que era desejo de Ulisses ouvir o canto das Sereias, porém, usou sua astúcia e ordenou que seus homens o amarrassem ao mastro do navio, e que colocassem as ceras nos ouvidos. Assim, o herói acaba vencendo esse mito marinho que nenhum homem podia resistir, sua passagem pelas Sereias marca uma conquista que evidencia o caráter astucioso do nosso herói.

Vale ressaltar que cada obstáculo, situação ou criatura marinha que Ulisses precisou superar durante todo o tempo que vagueou pelo mar, teve como resultado o aprendizado, permitindo que ele obtivesse o conhecimento desejado para qualquer herói. Neste sentido, a coragem, a humildade, a sabedoria, entre outras características que descrevem o perfil de Ulisses na Odisseia, formam um conjunto de virtudes necessárias para um arquétipo de herói, pois ele não se configura como uma massa de manobra nas mãos dos deuses. Sobre os arquétipos, Frye (2014), na obra já citada, ao se referir à teoria dos símbolos nos explica que:

Os arquétipos são agrupamentos associativos e diferem dos signos por serem variáveis complexas. Dentro do complexo frequentemente está um grande número de pessoas em uma dada cultura estão, por acaso, familiarizadas com elas. [...] Alguns arquétipos estão tão profundamente enraizados na associação convencional que dificilmente são capazes de evitar sugerir essa associação (FRYE, 2014, p. 225).

Desse modo, os mitos nos apresentam personagens de extrema bravura, sabedoria, e senso de justiça elevado, a exemplo dos personagens homéricos, heróis como Aquiles, Heitor e Ulisses converteram-se em arquétipos, ou seja, aqueles a quem todos os outros homens gregos deveriam buscar imitar, respeitando os deuses e as tradições da sociedade. Com efeito, os perfis dos heróis homéricos tornaram-se mitos e são usados ainda hoje como exemplo de homem completo, verdadeiro, justo, portador de todas as características que compõem o herói perfeito, aquele que é guiado pelos deuses e não apresenta nenhum tipo de problematicidade entre ele e o mundo. Na Teoria do Romance (2009, p. 92), Lukács compara o herói épico com o do romance onde, para ele, o herói se torna “problemático”, é nada mais que humano, esforçando-se para elevar-se sobre as contingências da vida. Alma e mundo estão separados e o herói, abandonado por deus, só alcança mesmo o fracasso, pois “A psicologia do herói romanesco é o campo de ação do demoníaco”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Interessa enfatizar que a Odisseia, além de apresentar um dos mitos gregos mais importantes da antiguidade, também se configura como uma obra de ensinamento, no sentido de que o herói precisa passar por todos os sofrimentos e obstáculos até aprender a ter humildade, e assim alcançar o equilíbrio necessário entre coragem e sabedoria. Sobre esse ensinamento, vejamos o que afirma o historiador Ítalo Calvino em seu Por que ler os clássicos (2007), no capítulo que

aborda a Odisseia: “Se tradicionalmente o herói épico era um paradigma de virtudes aristocráticas e militares, Ulisses é tudo isso e ainda mais, é o homem que suporta as experiências mais duras, as fadigas, a dor e a solidão” (CALVINO, 2007, p. 23).

Portanto, fundamentados nas teorias e críticas referenciadas aqui, salientamos o perfil do herói na epopeia homérica, constituído pelos epítetos que sempre dizem coisas essenciais a respeito do herói. Com efeito, eles anunciam as maiores armas de Ulisses que são a razão estritamente ligada à prudência e a percepção que o faz astuto e sagaz. Esses atributos permitem, por exemplo, a vitória do herói na “terra dos Ciclopes arrogantes e sem lei” (Canto IX, v. 106). Por tantas qualidades, reafirmamos Ulisses como o arquétipo do herói perfeito, que consegue superar a si mesmo, superar aos outros, os obstáculos e as dores.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.

Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

ARISTÓTELES. Poética. Tradução, introdução e notas de Paulo Pinheiro. Edição Bilíngue. 2º ed. São Paulo: Editora 34, 2017.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. São Paulo: Realizações Editora, 2014.

HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço; introdução e notas de Bernard Knox.

São Paulo: Peguin Classics Companhia das Letras, 2011.

LIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009.

MARQUES JÚNIOR, Milton. Honra, glória, destino e piedade: Introdução à épica clássica. In:

SCHNEIDER, Liane. REBELLO, Lucia Sá. (org.) Construções Literárias e Discursivas da Modernidade. Porto Alegre: Editora Nova Prova, 2008.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988.

SOBRE O ROMANCE “SÃO BERNARDO”: UMA

No documento SUMÁRIO ISBN 978-65-5608-074-1 (páginas 132-138)