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2 NOTAS SOBRE A CATEGORIA ANALÍTICA DO AMOR

No documento SUMÁRIO ISBN 978-65-5608-074-1 (páginas 79-82)

Amanda Fernandes de França

2 NOTAS SOBRE A CATEGORIA ANALÍTICA DO AMOR

ser secundarizado em relação ao homem;

3) uma leitura da obra: nesta última seção, recorremos a fragmentos d’O Quinze que comprovam o porquê do comportamento transgressor da personagem Conceição que a leva a vivenciar, com seu primo Vicente, no contexto conflitante em que estão inseridos, uma história de amor irrealizada.

Neste sentido, nossa fundamentação teórica tem como base, além de Platão (2018)2, estudos de: Socorro Acioli (2003), Antonio Candido (1999), João Luiz Lafetá (2000), Simon May (2012), dentre outros.

2 NOTAS SOBRE A CATEGORIA ANALÍTICA DO AMOR

Em O banquete, de Platão (2018), localizamos uma das visões mais significativas sobre o amor para o Ocidente. Esta visão ainda está muito arraigada em nossa cultura. Se pensarmos que, historicamente, só é possível ser feliz o sujeito que encontra seu complemento amoroso, o que o motiva a viver uma busca intensa e, por vezes, sentir-se fracassado se o amor não acontece em sua vida, podemos dizer que essa visão de felicidade está baseada no encontro e vivência do amor que pode ter uma forte relação com o que é proposto na obra O banquete, especificamente no discurso de Aristófanes. Neste discurso, localizamos o mito dos andróginos e, consequentemente, podemos perceber a construção de uma das mais notáveis compreensões ocidentais sobre o amor.

Figura 01 – Representação do Andrógino

Fonte: http://institutohumanae.com/a-busca-pelos-parceiros-invisiveis-por-amanda-lazaroni.

Acesso em: 13 set. 2020.

Sucintamente, o mito dos andróginos trata da natureza humana e suas características quanto ao gênero. Refere-se, neste caso, à divergência de duas naturezas: 1) primitiva e 2) contemporânea/atual. Em se tratando da forma e da designação dos seres primitivos, cada um tinha em comum três sexos e não apenas dois como atualmente. Cada ser que integrava a humanidade era dotado, segundo o relato de Aristófanes, de quatro mãos, um pescoço (que sustentava a cabeça composta de dois rostos), quatro orelhas, um par de genitais e, assim, como os

2 Conforme mencionado, utilizamos, para nosso debate, especificamente o discurso de Aristófanes, com sua explanação sobre o mito dos andróginos.

indivíduos atuais, eles também andavam eretos. Caso decidissem correr, por algum motivo, corriam dando cambalhotas.

Os três gêneros que compunham o ser primitivo tinham descendências diferentes. É por essa razão que: 1) o primeiro (masculino) estava vinculado ao sol, 2) o segundo (feminino) estava vinculado à terra e 3) o terceiro (andrógino:

masculino/feminino) à lua. Este último sofria influência do sol e da terra. Devido ao fator hereditário, conforme Aristófanes apresenta, os andróginos eram ameaçadores na força e altamente arrogantes. Ele diz, ainda, que sabendo da força de que dispunham, eles decidiram desafiar os poderes dos deuses. Zeus, indignado, decide puni-los eliminando-os. Zeus, contudo, repensa a ideia, pois se sucedesse como ele queria, os deuses ficariam sem seres para adorá-los. Convicto de encontrar uma solução que deveria resultar em uma maneira de preservar, enfraquecer e deter a insolência dos homens, Zeus decide cortá-los ao meio.

Com a divisão da humanidade em duas partes, cada ser passou a ter a fisionomia dos seres como percebemos atualmente. Em pouco tempo, alguns indivíduos passaram a morrer de fome, uma vez que não conseguiam fazer nada sozinhos. Quando uma das metades falecia, a metade sobrevivente ia ao encontro de outra. A reprodução ocorria como acontece com a reprodução das cigarras. Depois, Zeus teve a ação de colocar os genitais dos indivíduos para a frente, para que eles possam se reproduzir através do método sexual conforme nós conhecemos.

Após apresentar o mito dos andróginos, Aristófanes menciona o seguinte sobre o amor:

Eros, que atrai um ao outro, está implantado nos homens desde então para restaurar a antiga natureza, faz de dois um só e alivia as dores da natureza humana. Cada um de nós é, portanto, a metade complementar de outro (um símbolo). [...] cada qual anda à procura de seu próprio complemento (O banquete, 191e).

A partir do fragmento acima, é fundamental mencionar que, antes de Platão, no período da civilização grega, conforme Simon May (2012, p. 58) comenta, “o amor era definido como uma força grandiosa sujeita ao homem e até cósmica; conceito que repercutiu, por longo período, enraizada em sua manifestação cultural e histórica”.

A incompletude que permeia os homens no fragmento de Aristófanes está centrada em uma catástrofe mítica que objetiva explicar a excessiva atração amorosa que um ser pode sentir pelo outro. Um ser busca seu complemento, sua outra metade, desejando ser, no outro, feliz e pleno. Não obstante, ainda, resulta na restauração da velha natureza fazendo de dois um só.

Eros (amor), dessa forma, no discurso de Aristófanes, é pautado em uma alegoria centrada na busca incessante do ser humano por uma parte do “eu” que lhe possa completar. A felicidade plena, neste caso, só seria concretizada se o ser encontrasse, no outro, sua metade perdida. Havendo o encontro de ambas as metades, o indivíduo teria encontrado, finalmente, a vida conjugal feliz. Assim, após o encontro do “eu” com seu “outro eu”, o indivíduo estaria em paz e completo, tendo que voltar a buscar seu complemento em outra pessoa apenas se o amor já encontrado viesse a falecer. A dor da perda tende a levar, pelo ângulo de visão que Platão constrói através de Aristófanes, o ser sobrevivente a buscar, após a dor da

perda ser superada, seu novo complemento, fazendo-o dar início à busca incessante por outra “cara-metade”, mesmo que o novo ser encontrado não venha a lhe completar do mesmo modo que o anterior.

Ainda apoiado na concepção de Aristófanes, Marcelo Marques (2010, p. 47) discorre sobre o amor dizendo que:

[...] o amor não é mero sentimento, mas algo permanente, como um modo de ser da espécie humana, na medida em que está presente no fato de sermos estruturalmente incompletos. A busca de completude determina-nos, fazendo-nos estar sempre voltados para o outro. A essa estrutura carente combinam-se graus maiores ou menores de consciência, que, por sua vez, determinam nosso modo de ser e agir.

Por este ângulo de visão, o amor ultrapassa os limites da mera busca desesperada por um complemento. O amor que, neste caso, não tem fim definido, se caracteriza como algo que, de alguma forma, já tivesse uma predeterminação dada pela própria natureza humana por sermos seres incompletos.

Para substituir o vazio que atinge o ser humano é necessário, ainda na linha de compreensão de Marques (2010), preenchê-lo, completá-lo. Desse modo, na tentativa de sentir-se completo, o indivíduo termina por ser dependente de outro ser. Essa dependência tem a capacidade de alterar as atitudes comportamentais de quem ama. Isto pode resultar, segundo Marques (2010, p. 48), na perda da “noção das coisas, ou seja, ficam agarrados, em uma busca enlouquecida de saciedade”.

Neste sentido, os amantes “param de cuidar de suas vidas, não se alimentam e acabam por morrer de amor”.

A busca e o encontro do outro, nesta perspectiva, levam as duas metades a uma dependência completa uma em relação à outra, o que resulta em sofrimento para ambas. Nesse caso, temos que:

O MITO DE ARISTÓFANES suscita poderosas questões sobre a busca de

“complemento” do amor. Embora sua história pareça ter um final feliz – homens e mulheres conseguem encontrar suas outras metades, pelo menos se tiverem sorte [...]. O fato é que o amor não foi capaz de devolver seus seres humanos divididos ao meio a seu estado original de integridade. Ele conseguiu, no máximo, tentar “chegar o mais perto disso que nossas atuais circunstâncias permitem” (MAY, 2012, p. 65).

A partir dessa reflexão, partimos para uma leitura que procura relacionar essa busca desenfreada do amor, conforme colhemos do mito apresentado na obra de Platão, para pensarmos a personagem protagonista do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz. Neste caso, buscamos compreender como se dá, nessa obra, a temática do amor, mais precisamente do amor singularizado pela irrealização.

Em O Quinze, além do drama da seca, um dos temas centrais da narrativa, temos a história de amor vivida entre dois primos: Conceição e Vicente. Eles figuram, no contexto em que estão inseridos, como personagens que, por serem jovens e solteiros, apesar de algumas diferenças comportamentais, teriam encontrando um no outro, finalmente, a possibilidade do amor. Conceição teria encontrado em Vicente sua suposta “cara-metade”. Mas, como afirma May (2012, p. 75), “nem toda narrativa tende a terminar com um final feliz”.

O suposto amor que Conceição poderia nutrir por Vicente, portanto, não chega a receber as bênçãos do matrimônio, porque conceição é regida mais por uma visão racional do que passional. Ela não está de acordo com a visão machista que, socialmente, vê a mulher como um ser dado a sentimentalismos exagerados. Como consequência, Conceição tende a sofrer com o olhar crítico com que a sociedade julga a mulher que se “rebela” contra a ordem estabelecida.

Como a ideia de amor está baseada, muitas vezes, no fato de que um ser só pode ser feliz encontrando-se no outro, a uma mulher que não busca seu complemento no casamento, e tem ideais que contradizem isto, lhe resta ser considerada como um ser incompleto. Para a mulher encontrar amparo social e felicidade, por esse ângulo de visão preconceituoso, seria necessário que ela encontrasse um marido que a completasse e a possibilitasse realização pessoal através do casamento.

Temos em O Quinze, entretanto, a partir do comportamento “transgressor”

de Conceição, uma narrativa que propõe outro modo de ver a mulher. A relação entre Conceição e Vicente não figura como exemplo de história em que o amor cumpre o papel de tornar dois indivíduos um só, completando-os, pois Conceição não está disposta a adequar-se aos ditames socialmente impostos.

No documento SUMÁRIO ISBN 978-65-5608-074-1 (páginas 79-82)