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CRISE DA RAZÃO JURÍDICA MODERNA E A CRISE E (DES)LEGITIMAÇÃO DO

No contexto da sociedade do risco, perigo e violência, até como consequência dela, verifica-se uma profunda e crescente crise do Direito. Essa crise se manifesta de diversas formas e

79 GUILLAUME, Marc. A competição das velocidades. In: A sociedade em busca de valores. Para fugir à

alternativa entre o cepticismo e dogmatismo. Lisboa: Piaget, 1996, p. 103-116.

80 GAUER, 2003, p. 33-34. 81 Id., 2006, p. 15.

em múltiplos planos. É o que Ferrajoli chama de Crise do Direito e da razão jurídica. 83

Sobre a influência da razão jurídica na formação da sociedade, bem como os resultados da sua eventual crise, Gauer84 afirma que:

A tradição ocidental manifesta-se hoje como uma consequência do processo de racionalização, que iniciou em fins do século XVIII, e é caracterizada por ser uma “civilização legal”. No entanto, toda a legislação moderna que tenta coibir a violência não tem alcançado seus objetivos. A língua geral da lei parece não ecoar na violência da sociedade contemporânea. É como se fosse uma visitante recém-chegada a uma cidade que desconhece totalmente o seu significado.

A ideia da racionalidade jurídica, mormente do poder punitivo, consolidou-se com o modelo liberal do contrato social do século XVIII. Ele visava fundamentalmente à busca da proporcionalidade das penas, controle e limitação do poder estatal.

Esse modelo gerou grande expectativa positiva, principalmente pelo fato de estar vinculado à racionalidade técnico-científica da época, lógica que está associada ao que se convencionou chamar de modernidade. A modernidade pode ser descrita como um modo de vida e um modelo de organização social que se estabeleceu na Europa no período compreendido entre os séculos XVIII e XIX, o qual passou a influir mundialmente com o advento da globalização.85

Essa proposta racional e científica da modernidade objetivava a felicidade plena da humanidade, a qual seria alcançada com a subjugação da natureza pela ciência, método experimental das ciências naturais. Era uma proposta de satisfação ilimitada de desejos e necessidades, por meio do método científico. Essa lógica, da racionalidade científica, como não poderia deixar de ser, foi transportada para o Direito e particularmente para a justiça criminal. No caso das condutas criminosas, o modelo de felicidade plena, de acordo com uma visão racional e civilizada, consistiria em extirpar da sociedade, e do próprio sistema de administração da justiça

83 FERRAJOLI, Luigi. El derecho como sistema de garantías. In: Derechos y garantías. La ley del más débil.

Perfecto Andrés Ibanez y Andrea Greppi. Madrid: Trotta, 1999, p. 15.

84 GAUER, 2006, p. 16-17.

85 AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Visões da sociedade punitiva: elementos para uma sociologia do

controle penal. In: Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2006, p. 43. Segundo o autor, citando GIDDENS (1991, p. 11), “A modernidade na tradição ocidental tem sido definida pelo progressivo triunfo da razão sobre as tradições, da ação científica ou tecnológica sobre sistemas de controle social e cultural, do universalismo sobre o particularismo e da produção sobre a reprodução. A modernidade sempre definiu a si própria por seu conflito com aquilo que considera como irracionalidade, desde costumes até privilégios, desde todas as formas de adscrição até religião. A modernidade nunca foi considerada apenas como uma série de transformações materiais, ou como o resultado de uma crescente densidade social; sempre foi associada, desde o Renascimento e a Reforma até o Iluminismo, o Positivismo e o Cientificismo, a uma luta constante dos agentes do progresso contra obstáculos a mudanças necessárias. A modernidade é a expressão historicista da “razão objetiva”. Ao invés de contemplar um mundo racional criado por um logos e ajustar-se a suas leis, o homem moderno cria um novo mundo e uma nova imagem do homem, que é definida pelo poder criativo que ele conquista quando compreende as leis da natureza e as utiliza para fortalecer seu controle das forças naturais”.

penal, toda e qualquer forma de violência.86

Mas o projeto racionalista não alcançou o êxito prometido e entrou em crise.87 Essa crise pode ser situada em três aspectos: a primeira é uma crise da legalidade, que se refere ao cumprimento das regras pelos gestores dos poderes públicos, falta ou ineficácia de controles sobre o exercício do poder. No caso da Itália, França e Espanha, em que inúmeros inquéritos judiciais vieram à tona, evidenciou-se a corrupção que envolve a política, a administração pública, as finanças e a economia. É quase um Estado paralelo, em que aparecem os partidos políticos e suas organizações, bem como lobbies de negócios, que têm suas próprias regras e funcionam à revelia do aparato legal.88

A respeito da crise da sociedade atual e da sua relação com o problema da corrupção, Souza89 pontua que:

Uma sociedade onde as pessoas não sejam propriamente pessoas, mas sujeitos e objetos de ciclos de produção, consumo e obsolência, na qual cada um se perceba com engrenagem da “máquina”, a corrupção é um dos fenômenos mais demonstrativos e candentes. Nenhuma sociedade não inclusiva e que convive com fenômenos de dimensões inumanas ou desumanas (em seus mais diversos e variados aspectos, como, por exemplo, a miséria estrutural, a fome crônica ou a indigência educacional de amplas camadas da população) em seu interior como se elas fossem naturais, não pode esperar senão, mais cedo ou mais tarde, ter de conviver com as dimensões terríveis de um fenômeno de corrupção também “naturalizado” e de inteligibilidade, como de combate, extremamente difícil.

Essa crise de legalidade do Estado Social evidencia-se pela inflação, expansão

legislativa, e na pressão dos interesses de setores e corporações. Também na perda da generalidade e abstração das leis. Há um excesso de legislações extravagantes aos códigos e de um desenvolvimento de legislação fragmentária, em função de fatos isolados, geralmente direcionado a casos emergenciais e de exceção, mormente na seara criminal. A respeito dessa

86 CARVALHO, Salo de. Criminologia e transdisciplinaridade. In: Sistema penal e violência. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2006a, p. 28-30. O autor afirma ainda que “O projeto sanitarista de erradicação da criminalidade- violência, na busca de eliminar os últimos resquícios de barbárie da civilização ocidental, transmudou-se, ele próprio, na brutalidade de um sistema policialesco genocida”.

87 SOUZA, Ricardo Timm de. Sobre as origens das filosofias do diálogo: Algumas aproximações iniciais. In:

Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 6-7. Souza questiona: “O que vive a civilização

ocidental no período de transição entre os séculos XIX e XX?”. Responde que “caracterizemos esta fase de transição como uma fase eminentemente crítica da história. A entrada em ciclo civilizatório predominantemente “pessimista”, em termos de uma racionalidade esclarecedora, que se anunciava pelos menos desde meados do século XIX, reflete a insegurança das bases racionais do presente momento da história ocidental – o que Husserl porventura chamaria de a “crise das ciências europeias”.

88 FERRAJOLI, Luigi. O direito como sistema de garantias. In: O novo em direito e política. Porto Alegre: Livraria

do Advogado, 1997, p. 89.

89 SOUZA, Ricardo Timm de. A racionalidade ética como fundamento de uma sociedade variável: reflexos sobre suas

condições de possibilidade desde a crítica filosófica do fenômeno da “corrupção”. A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 116-7.

perspectiva expansivista do Direito Penal, na atualidade vale referir os ensinamentos de Meliá90:

As características principais da política criminal praticada nos últimos anos podem resumir-se no conceito da “expansão” do Direito Penal. Efetivamente, no momento atual pode ser adequado que o fenômeno mais destacado na evolução das legislações penais do “mundo ocidental” está no surgimento de múltiplas figuras novas, inclusive, às vezes, do surgimento de setores inteiros de regulação, acompanhada de uma atividade de reforma de tipos penais já existentes realizada a um ritmo muito superior ao de épocas anteriores.

A inflação legislativa e a incoerência na sistematização geram uma incerteza generalizada, além de favorecerem a falta de elaboração de um Sistema de Garantias dos Direitos Sociais, equiparável ao Sistema de Garantias da Propriedade e da Liberdade. Isso representa um fator de falta de eficácia do Direito, além de um componente que contribui para o aumento da corrupção e da ilimitação do poder. Nesse contexto, vislumbra-se um modelo político-criminal de um “Direito penal da colocação em risco”, com traços nitidamente contrários ao paradigma liberal, bem como de característica notoriamente simbólico.91

A respeito dos efeitos dessa crise sobre a persecução criminal, mormente sobre o processo penal brasileiro, assevera Giacomolli92:

Na atualidade, também observamos leis superpostas, antitéticas, desvinculadas da Constituição Federal, mesmo engendradas após sua entrada em vigor. [...]. Isso produz uma crise de identidade do processo penal e um choque hermenêutico, na medida em que, segundo o segmento que parte das leis ordinárias na aplicação processual, em detrimento da constituição, a estrutura fascista que permeia do Código de Processo Penal continua legitimada.

Outro vetor dessa anunciada crise é a que se refere à inadequação estrutural das formas do Estado de Direito aos primados do Welfare State.93 Esse aspecto se agrava pela acentuação de seu caráter seletivo e desigual, devido à crise do Estado Social. A crise se relaciona à contradição entre o modelo clássico do Estado de Direito, fundado nas garantias da individualidade, presença negativa do Estado, e o Estado Social. Este, por outro prisma,

90 JAKOBS, Güinther. Direito penal do inimigo: noções e críticas. JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio

(Org.). Trad.: André Luís Calegari, Nereu José Giacomolli. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 55-6.

91 Ibid., p. 57.

92 GIACOMOLLI, Nereu José. Atividade do juiz criminal frente à constituição: deveres e limites em face do

princípio acusatório. In: Sistema penal e violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006a, p. 213.

93 AZEVEDO, 2006, p. 44. A respeito desse conceito, o autor tece o seguinte comentário: “A legitimidade do

Estado é conferida pelo império da lei (dominação racional-legal), e o Estado atua, a partir de sua consolidação nos países capitalistas avançados em finais do século XIX, através de políticas previdenciárias e da intervenção regulatória no mercado, medidas que chegam ao seu ápice com o keynesianismo, doutrina que assinala a passagem do modelo de Estado liberal ao Estado Social ou Welfare State”.

demanda aos poderes a satisfação de direitos sociais, a presença positiva do Estado. 94

A crise também se evidencia no modelo do Estado Nacional, com a mudança dos lugares da soberania e alteração do sistema de fontes do constitucionalismo. O processo de integração mundial – globalização - especificamente a europeia deslocou para fora dos confins dos Estados nacionais os centros de decisão reservados as suas soberanias, em matéria militar, de política monetária e social. Desse modo, o Estado não consegue desempenhar seu papel tradicional de regulador da sociedade e, na seara jurídica, há quebra das formalidades normativas e legais e um processo de desconstitucionalização dos Estados.95

Nesse sentido, Ferrajoli96 afirma o seguinte:

E embora este processo mova-se em direção à superação dos velhos e cada vez menos legitimados e legitimáveis Estados nacionais e das tradicionais fronteiras estaduais dos direitos de cidadania, isso está por ora pondo em crise, na ausência de um constitucionalismo de Direito Internacional, a tradicional hierarquia das fontes.

Essa crise do Direito corre o risco de traduzir-se em uma crise da democracia. Ela equivale à crise do Princípio da Legalidade, da sujeição do poder público à lei, no qual se fundam tanto a soberania popular como o Estado de Direito. Ela se resolve pela reprodução de formas neoabsolutistas do poder público, carentes de limites e de controles, e governadas por interesses ocultos. Nesse diapasão, é sugerido que o Direito, particularmente o criminal – Penal e Processual Penal - seja a solução milagreira para toda a espécie de problemas econômico-sociais e políticos. Cria-se uma ilusão de que a única maneira de enfrentar o fenômeno criminal é com o incremento legal-repressor.97

Como resultado, há uma crise da capacidade regulativa do Direito devido à complexidade das sociedades contemporâneas. Isso ocorre em face das múltiplas funções do Estado Social, a pluralidade das fontes normativas e de sua subordinação a imperativos sistêmicos de tipo econômico, tecnológico e político. A ineficácia dos controles e a irresponsabilidade dos poderes públicos gerariam, segundo Luhmann, Teubner e Zolo, uma crescente incoerência, falta de plenitude e ineficácia do Sistema Jurídico.98

Disso resulta um debilitamento da função normativa do Direito e, em particular, a quebra de suas funções limites e, portanto, de garantia dos direitos fundamentais. Essa crise

94 FERRAJOLI, 1999, p. 90.

95 BECK, Francis Rafael. Perspectivas de controle do crime organizado na sociedade contemporânea. In:

Leituras constitucionais do sistema penal contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004,

p. 262.

96 FERRAJOLI, op. cit., p. 91. 97 GIACOMOLLI, 2006a, p. 215. 98 FERRAJOLI, op. cit., p. 91

do modelo racionalista gerou reflexos penal-expansionistas nos próprios textos constitucionais.99 Nesse sentido, observa Carvalho100:

A crise no sistema de garantias individuais, agregada ao modelo de desmonte do Estado de bem-estar pelas políticas econômicas contemporâneas, produz profunda alteração no sistema jurídico, afetando, inclusive, a estrutura do texto constitucional. A propósito, é possível perceber que a expansão do direito penal, com a inerente deformação da sua matriz de garantias, é incorporada pelas Constituições contemporâneas que positiva os direitos transindividuais e, não esporadicamente, determinam que sua tutela seja realizada através da sanção criminal.

Por outro lado, Ferrajoli afirma que nossos sistemas não poderiam ser de outro modo. O ponto fundamental estaria no ser e no dever ser. A questão não é ser e dever ser, mas a necessidade de uma aproximação realista do Direito e correto funcionamento das instituições jurídicas. Assim, nada há de determinista e inevitável, nem de sociologicamente natural na ineficácia dos direitos e na violação sistemática das regras, bem como no caos normativo e na proliferação das fontes dos Direito, na incerteza e incoerência dos ordenamentos.101

O perigo para os direitos fundamentais e de suas garantias depende hoje não somente da crise do direito, mas também da Crise da Razão Jurídica. O problema não é só o caos normativo e da ilegalidade difusa, mas também da perda de confiança nessa Razão Artificial - Razão Jurídica Moderna - calcada no Paradigma Teórico da Modernidade.Todavia a situação do Direito no Antigo Regime era muito mais caótica. Hoje o quadro não é mais difícil que a encontrada pelo iluminismo jurídico quando da codificação sob o Princípio da Legalidade. Em relação ao Juspositivismo Clássico, a Razão Jurídica atual tem a vantagem do Constitucionalismo do séc. XIX, que trouxe o Direito como um Sistema Artificial de Garantias preordenado à tutela dos direitos fundamentais.102

A função de garantia do Direito atual é possível pela complexidade de sua estrutura formal, que nos modelos de Constituição Rígida têm uma dupla artificialidade: a) o caráter positivo das normas produzidas - do positivismo jurídico; b) pela sujeição da produção das normas ao Direito - não só normas formalizadas, mas submetidas a certos princípios do

99 FELDENS, Luciano; SCHMIDT, Andrei Zenkner. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade

no controle das normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005b, p. 61. A respeito dos mandatos de criminalização no nosso atual texto constitucional, o autor afirma: “No que diz respeito à expressa incorporação constitucional de matérias atinentes ao Direito Penal, a Constituição brasileira de 1988 apresenta-se como um dos exemplos mais eloquentes. Por mais de uma centena de vezes, utilizam-se expressões que dizem respeito com o Direito Penal [...]”.

100 CARVALHO, 2006a, p. 88. 101 FERRAJOLI, 1999, p. 93. 102 Ibid., p. 18.

Estado Constitucional de Direito.103

Há diferenças entre um Estado de Direito de um Estado Constitucional de Direito. Em virtude da estrutura formal do Direito, o ser, a existência do Direito não pode vir da moral. Portanto os nossos juízos morais, valorações subjetivas não existem enquanto lei/norma para a sociedade.104 O direito é o que os homens pensam, e o que é posto ou feito pelos homens, não tem uma origem divina, mas é como os homens querem.105

Um Estado Constitucional de Direito, como um sistema voltado para a defesa das garantias, postula um novo modelo para o Direito. Ele deverá ir além do plano meramente formal (simples legalidade), buscando atingir o substancial (estrita legalidade). Somente será legítimo o poder que adotar conteúdos substanciais (garantia dos direitos fundamentais) dos textos constitucionais dos Estados Democráticos de Direito. Nesse paradigma não se tem apenas uma fiscalização sobre a forma, mas também, principalmente, sobre o conteúdo das normas legisladas.106

A atual proposta de “Estado de Direito” deve ser revista diante da globalização e de outras complexidades da sociedade, buscando-se um novo conceito, qual seja, o “Estado Constitucional de Direito”. Esse novo paradigma quer a vinculação irrestrita dos poderes de estado às normas da Constituição.

Nesse sentido, vale trazer as palavras de Cademartori107:

[...] a passagem do Estado legislativo ao constitucional pressupõe o caráter normativo das Constituições, as quais passam a integrar um plano de juridicidade superior, vinculante e indisponível, em linha de princípio, para todos os poderes do Estado. As normas constitucionais são vinculantes de tal modo que resta assim superada definitivamente a imagem fraca da juridicidade constitucional característica do período liberal – e estarão situadas acima dos poderes do Estado, e fora do campo de ação e conflitos políticos. Desta forma, os poderes do Estado não podem dispor do sentido e conteúdo das normas constitucionais – pelo menos em condições de normalidade – e, precisamente por isso, do próprio Direito enquanto realidade constituída.

Por outro lado, devido à estrutura substancial do Direito, o dever ser, a “validez”, do direito positivo, é um sistema de regras que disciplinam as opções do que é dogmatizado,

103 FERRAJOLI, 1999, p. 93-4.

104 FELDENS; SCHMIDT, 2005b, p. 49. Segundo o autor: “Em um Estado laico (secularizado), fundado na

soberania popular, o Direito Penal não tem como missão “aperfeiçoar” moralmente os cidadãos, sob os auspícios do Estado Social e Democrático de Direito, comportamento criminoso que não se confunde com comportamento pecaminoso.”

105 FERRAJOLI, op. cit., p. 93-4. 106 FELDENS; SCHMIDT, op. cit., p. 34.

107 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999,

escrito, escolhido e legislado. Assim, o Direito é pensado, escolhido, de acordo com valores ético-políticos – aspecto substancial –, sob pena de impugnação da norma produzida.108 Não é só requisito da existência (o ser), mas também o da validez (o dever ser), que são considerados. Essa dupla artificialidade não só condiciona a produção jurídica, mas é condicionada. A própria legalidade positiva estará condicionada a vínculos jurídicos formais, além de substanciais. Então o Sistema Garantista, com essa dupla artificialidade, confere o papel de garantia em relação com o direito legítimo. A lei é vinculada aos princípios das Constituições, cuja elaboração é de responsabilidade da cultura jurídica. Esse modelo altera diversos planos do positivismo clássico: na teoria do Direito, revisa a teoria da validez, numa nova relação entre forma e substâncias das decisões. Na teoria política, revisa a concepção de democracia, com o reconhecimento de uma dimensão substancial.109

Nesse sentido, acentua Ferrajoli110:

E, todavia, em sentido não formal e político, mas substancial e social de “democracia” , o Estado de direito equivale à democracia, no sentido de que reflete, além da vontade da maioria, os interesses e necessidades vitais de todos. Neste sentido, o garantismo, como técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos, voltado a determinar o que estes não devem e o que devem decidir, pode bem ser concebido como a conotação (não formal, mas) estrutural e substancial da democracia: as garantias, sejam liberais ou sociais, exprimem de fato os direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes do Estado, os interesses dos fracos respectivamente aos dos fortes, a tutela das minorias marginalizadas ou dissociadas em relação às maiorias integradas, as razões de baixo relativamente às razões do alto.

Esse modelo filosófico-político de garantias ainda não está implantado principalmente nos países das repúblicas modernas, que buscam alcançar o nível de Estados de Direito. Alguns deles, como é o caso do Brasil, podem ser classificados, sob o ponto de vista político- jurídico, como de modernidade não completada. Sobre o alcance político-democrático desse paradigma, importa salientar as colocações de Wunderlich e Oliveira111:

108 FELDENS; SCHMIDT, 2005b, p. 34-5. 109 FERRAJOLI, 1999, p. 94.

110 Id., 2002, p. 693.

111 WUNDERLICH, Alexandre; OLIVEIRA, Rodrigo Mores. Resistência, prática de transformação social e

limitação do poder punitivo a partir do sistema de garantias: pela (re)afirmação do garantis penal na contemporaneidade. In: Política criminal contemporânea: criminologia, direito penal e direito processual penal: homenagem do departamento de direito penal e processual Penal pelos 60 anos da Faculdade de