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Os modelos da Alemanha e da Áustria

3.2 OS MODELOS DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

3.2.2 A investigação a cargo do ministério público

3.2.2.1 Os modelos da Alemanha e da Áustria

Em relação ao sistema da Alemanha, releva salientar que hoje, no Brasil, não se encontram muitas referências diretas. Isso se explica, talvez, pelo nosso atual maior afinamento com o Processo Penal de origem italiana.

352 PASTOR, 2004, p. 231-2 353 BINDER, 1997, p. 175. 354 Ibid., p. 170-1.

O modelo Processual Penal alemão, que vige na atualidade, vincula-se à Constituição Liberal e Democrática promulgada em 1949. Essa Constituição buscou restabelecer o Estado de Direito, com a tutela dos direitos e garantias fundamentais, depois de doze anos de totalitarismo do Terceiro Reich nazista.356

Em 1964, com a Lei de 19 de dezembro, publicada em 1.º de abril de 1965, ocorreram mudanças significativas na StPO, dentre elas a adoção dos princípios da obrigatoriedade e oficialidade da acusação pelo Ministério Público. Restou normatizado um sistema de garantias do imputado; qualificou-se a defesa e houve agilização do processo, com a concentração de seus atos. Com a reunificação das duas Alemanhas, em 1990, houve a unificação do processo penal, sendo estabelecido como regra, o direito processual da República Federal da Alemanha.357

O modelo de Processo Penal na Alemanha, em termos de procedimento, está dividido, basicamente, em três etapas: a) a preparatória (das Voverrefahren), b) intermediária (das

Zwischenverfaharen); e c) juízo (das Hauptverfahren). Na preparatória, ocorre a investigação

para apurar-se o autor do fato típico. A fase intermediária é utilizada comumente na função de controle judicial sobre o exercício da ação penal. Finalmente, na do juízo, acontecem os debates e a decisão sobre a culpa e a pena a ser imposta ao réu.358

O início da fase pré-processual no modelo alemão guarda semelhança com o do brasileiro, uma vez que a notícia da infração penal pode ser levada direto ao Ministério Público ou à polícia. Diante da informação sobre a ocorrência do delito, qualquer desses órgãos iniciará a investigação preliminar.

Por outro lado, no modelo alemão, ao contrário do nosso sistema, a fase pré-processual investigatória, que antecede a ação penal, é realizada sob a presidência do Ministério Público, o qual, desse modo, foi incumbido de dirigir a investigação policial e velar pela sua legalidade.359

Nesse sentido, Giacomolli360 observa que:

356 DELAMAS-MARTY, 2000, p. 82.

357 GIACOMOLLI, 2006, p. 33-4 e 119. Segundo o autor “As normas processuais estão reguladas pela Lei

Processual Penal de 1877 (StrafprozeBordung – StPO), pela Lei de Organização Judicial de 1877 (gerichtsverfassungsgesetz – GVG), modificadas em 1975, que se vinculam à Lei Fundamental de 1949 (Grundgesetz – GG). Outras leis têm modificado e completado estes diplomas legais. Destacam-se a Lei de combate ao Tráfico de Substâncias Entorpecentes e a da Criminalidade organizada (1992), a Lei de Agilização da Justiça (1993) e a Lei de Luta contra a Criminalidade (1994)”.

358 KAC, 2004, p. 75.

359 ROXIN, Claus. Pasado, presente y futuro del derecho procesal penal. Santa Fe: Rubinzal Culzoni, 2007, p. 33. 360 GIACOMOLLI, op. cit., p. 119.

As autoridades policiais, após a comunicação de um fato por qualquer cidadão ou quando é constatado por meios próprios, tomam as medidas urgentes e encaminha o expediente ao Ministério Público encarregado das investigações, o qual ordenará as diligências necessárias. Há que se considerar que na Alemanha “não existe uma polícia judiciária”.

Importa salientar, também, que nesse modelo ao próprio Ministério Público é a quem se destina a Investigação Preliminar, por ele mesmo conduzida. Sobre a forma de condução da fase preparatória, Delmas-Marty361 refere que:

La fase preparatoria está dominada por el Ministerio Fiscal que dirige la investigación, y por la Policía. La intervención del juez de instrucción se limita al control de la legalidad de las medidas coercitivas (die Zwangmassnahmen) que pueden adoptarse contra el acusado. No obstante, el juez, al valorar la necesidad de autorizar la medida, habida cuenta del grado de sospecha y de la gravedad de los hechos, procede implícitamente a un control de su oportunidad (zweckmässigkeit, § 162 STPO).

No sistema alemão, o Ministério Público, além da função típica do exercício da ação penal, tem atribuições que extrapolam aquelas que conhecemos no nosso modelo, tais como receber a comunicação de crimes das vítimas e dirigir a investigação preliminar.362 No entanto, é curioso o fato do parquet alemão não possuir a mesma independência funcional dos juízes, uma vez que é vinculado e dependente do Poder Executivo, embora essa subordinação não tenha um caráter absoluto.363

Todavia, verifica-se que o sistema da Alemanha busca efetivar a separação das funções de acusar e julgar, diferentemente do caso do Juizado de Instrução, as quais, embora teoricamente separadas, na prática, por vezes, confundem-se. Dessa forma, em tese, temos um processo de partes – Ministério Público e Defesa - que atuam de maneira independente da esfera jurisdicional, a qual fica alheia à gestão da prova.364

Não obstante, na Alemanha o Ministério Público presida a investigação preliminar, mas, para realizá-la, ele depende do auxílio da polícia. Desse modo, mesmo em um sistema em que o Ministério Público preside a investigação, ele não prescinde do trabalho da polícia, a

361 DELMAS-MARTY, 2000, p. 105.

362 GIACOMOLLI, 2006, p. 120. Quanto à direção da investigação preliminar, o autor observa que “O

Ministério Público dirige e coordena o procedimento investigatório, podendo decretar certas medidas sem intervenção judicial, tais como a prisão no caso de flagrante (§ 127, II, da StPO), o seqüestro de bens móveis (§98 da StPO), obrigar o comparecimento de testemunhas e suspeitos (§ 161, “a” e 163, “a”, da StPO), bem como outras, com controle judicial, tais como a prisão processual, a busca e apreensão domiciliar, o reconhecimento, o sequestro de obra escrita (§111, “n” e 114, I, da StPO)”.

363 KAC, 2004, p. 75 seg.. 364 CHOUKR, 2001, p. 57.

qual, no sistema alemão, lhe é subordinada, assim como acontece na Itália.365

Na realidade, em termos práticos, a condução da investigação preliminar no modelo alemão, fase preparatória (Das vorverfahren), segundo observa Delmas-Marty366, incumbe mesmo à polícia:

Se abre por la comunicación de la denuncia al Ministerio Fiscal, o por el atestado de la Policía. En teoría se practica una investigación previa (pre-enquête) para comprobar el fundamento tanto de los hechos denunciados como de las “sospechas serias” de que se cometió de verdad la infracción (§ 163 StPO). Sin embargo, en la práctica, la denuncia es investigada directamente por la Policía, que dirige al Ministerio Fisca un informe final (Schlussbericht) resumiendo las investigaciones practicadas y las pruebas recogidas.

Nesse mesmo sentido são as colocações de Roxin367:

Y, sin embargo, en lo que corresponde al ponto de vista general de hoy, la Fiscalía no es la “dueña de la fase de investigación penal” sino que las investigaciones, conforme a la descuidada regulación del § 163 II de la Ordenanza Procesal Penal, son ampliamente ejecutadas por la policía bajo su propia responsabilidad.

O procedimento preliminar é escrito e secreto, sendo que o investigado e seu defensor, salvo em situações especiais, não têm acesso à investigação. Somente ao final da fase preliminar, o investigado e seu advogado poderão consultar os autos da investigação. Na verdade, os direitos do investigado são muito limitados na fase da investigação, sendo que não há norma alguma que obrigue o Ministério Público a comunicar-lhe do início do procedimento, embora ele seja inquirido antes do término dessa fase.368

No sistema alemão, incide o controle judicial sobre a fase de investigação preliminar ou preparatória, com o chamado juiz de investigações (Ermittlungsrichter). Esse Magistrado tem a função de controlar a legalidade dos atos de coerção efetivadas (Zwangsmassnahme), pela polícia ou pelo Ministério Público, uma vez que este lá tem o poder de determinar tais medidas.369

Do mesmo modo, ocorre em relação à adoção de medidas limitativas de direitos fundamentais, as quais estão a cargo do Juiz competente, que, mediante solicitação dos órgãos de investigação, Ministério Público e/ou polícia, analisará a pertinência ou não delas.370 Todavia o fato de a polícia na Alemanha conduzir, na prática, parte das investigações do Ministério Público, bem como as suas, de uma forma independente, não deve criar a falsa

365 VALLEJO, 2003, p. 134.

366 DELMAS-MARTY, 2000, p. 104-5.

367 ROXIN, 2007, p. 33.

368 GIACOMOLLI, 2006, p. 123. De acordo com o autor, ao citar Jung, refere que “a fase da investigação preliminar

deveria ser reformada para se reforçar os direitos de defesa e equilibrar a forte posição do Ministério Público.

369 KAC, 2004, p. 76. 370 VALLEJO, op. cit., p. 134.

imagem de que o parquet tem poucos direitos e poderes na investigação penal.371

A decisão sobre o arquivamento da investigação preliminar, por exemplo, no sistema alemão não há controle judicial sobre ela, pois o sistema processual penal, § 153a do Código Processual Penal, daquele país possibilita que o Ministério Público decida diretamente sobre iniciar ou não a ação penal, com um poder de decisão similar ao do Juiz. Ou seja, não há norma no sentido de que o parquet possa ser obrigado a exercer a ação penal pelo Judiciário, principalmente nos crimes de bagatela, naqueles em que a pena mínima é de até um ano, vigendo o princípio da oportunidade, ou melhor, de uma discricionariedade limitada pela lei.372

Especificamente em relação à propositura da ação penal, entendendo o parquet, que é o caso de iniciá-la, abrir-se-á uma fase dita intermediária. Essa etapa surgirá entre o fim da fase preliminar pré-processual e o processo acusatório. Trata-se de um juízo de admissibilidade da acusação. Nessa fase, o investigado tem a possibilidade de trazer aos autos as provas que entender pertinentes para que não seja aceita a acusação e instaurada a ação penal contra ele.373

Retomando a questão da investigação preliminar, vale registrar, conforme afirmou Roxin, que, na prática, o Ministério Público da Alemanha tem conduzido principalmente a fase investigatória em relação a crimes econômicos. Os demais são apurados pela polícia. Desse modo, verifica-se que o sistema vem sendo desvirtuado e está ocorrendo um controle fático da investigação pela polícia.374

Dessarte, o modelo alemão, em relação à fase pré-processual, guarda grande semelhança com o brasileiro. A principal diferença, além da fase da admissibilidade, também presente em alguns sistemas de Juizado de Instrução, está no fato de a Investigação Preliminar ser presidida pelo Ministério Público e não pela Autoridade de Polícia Judiciária, como no nosso caso.

No sistema da Áustria, que, formalmente, busca um processo realmente acusatório, o Ministério Público possui atribuições claras no sentido da presidência e condução da investigação preliminar. Não há Juiz de Instrução, via de regra. Entretanto, existe a fase de

371 ROXIN, 2007, p. 35-7. Sobre o nível participação do Ministério Público e da polícia nas investigações, o autor

observa ainda isto: “Y finalmente, hay que pensar que la Fiscalía en los delitos de la criminalidad doméstica, incluso hasta en el campo de la criminalidad medianamente grave, es partícipe menor en las investigaciones, pero es los delitos financieros y en los delitos de gobierno, en los hechos punibles económicos (abstracción hecha de la delincuencia tributaria), en los delitos que afectan en medio ambiente y en general en los hechos jurídicamente complicados, la Fiscalía tiene en control completo de la investigación en su manos”.

372 CHOUKR, 2001, p. 58.

373 DELMAS-MARTY, 2000, p. 106.

374 ROXIN, op. cit., p. 36. O autor observa que a legislação é imperfeita e indeterminada sobre as relações entre

o Ministério Público e a Polícia, em face da não existência de uma conexão orgânica entre as instituições. O autor também refere que existem propostas que pensam que o remédio – conforme reivindica a Polícia Judiciária - seria ceder totalmente a investigação à Polícia Judiciária, e o Ministério Público limitar-se a acusar ou arquivar as investigações.

admissibilidade da acusação.375

A polícia pode fazer investigações em relação aos fatos delituosos que lhe forem comunicados, mas tem de dar satisfações imediatas ao Ministério Público a respeito do que apurou.376