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3.2 OS MODELOS DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

3.2.2 A investigação a cargo do ministério público

3.2.2.3 O modelo português

Com a Constituição de 1976, o sistema processual português sofreu modificações, sendo que na seara criminal, nitidamente, inclinou-se por uma opção liberal e democrática.403 Em relação à vinculação do atual texto da Constituição de Portugal, bem como do poder judicial, à tutela dos Direitos Fundamentais, Canotilho404 afirma que:

A primeira função dos direitos fundamentais – sobretudo dos direitos, liberdades e garantias – é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado (e de outros esquemas políticos coactivos). Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implica, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direios fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). [...] aos tribunais cabe a tarefa clássiva da <<defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos>> (CRP, artigo 205.º/2). Os tribunais, porém, como órgãos do poder público, devem considerar-se vinculados

402 CHOUKR., 2001, p. 65-6.

403 GIACOMOLLI, 2006, p. 277. Segundo o autor, “A Constituição da República de 1976 havia elevado à

categoria de direitos fundamentais diversos princípios, mormente a subsidiariedade da prisão preventiva, a regularidade probatória, a compatibilidade entre a celeridade e a garantia da defesa, a assistência de defensor e a garantia do Juiz natural”.

pelos direitos fundamentais. Esta vinculação dos tribunais pelos direitos,

liberdades e garantias efectiva-se ou concretiza-se: (1) através do processo justo

aplicado no exercícios da função jurisdicional ou (2) através da determinação e direcção das decisões jurisdicionais pelos direitos fundamentais materiais.

Pode-se destacar que essas mudanças constitucionais consagraram um modelo de Processo Penal Acusatório.405 Todavia o modelo não pode ser considerado acusatório puro,

uma vez que foram atribuídos ao Judiciário alguns poderes autônomos de investigação, em nome das exigências de verdade, no Código de Processo Penal de 1988.406

Conforme disposição do Código de Processo Penal português de 1988, a investigação preliminar abandonou o modelo do Juizado de Instrução, inspirado nos sistemas da Espanha e da França.407 A presidência da investigação preliminar ficou a cargo do Ministério Público, o qual integra o Poder Judiciário, motivo pelo qual os membros do parquet são também considerados magistrados em Portugal. Essa situação lhes garante autonomia e independência.408

Sobre a fase da investigação preliminar no sistema português – a qual faz parte do processo - afirma Dantas409:

En verdad, el proceso comienza por una fase preliminar a cargo de una entidad pública – el Ministerio Público- a quien le fueron atribuidos de iniciativa procesal, y que está dominado por su carácter oficial, por su carácter secreto y por la ausencia de contradicción. Las pruebas recogidas en esta fase del proceso se destinan a apoyar la decisión de sumisión o no al juicio y, por norma, no pueden ser usadas en la fase de audiencia.

No sistema português, quando se fala em instrução, refere-se à fase do processo propriamente dito, quando iniciada a ação penal. A fase preliminar preparatória, dirigida pelo Ministério Público, em que não há o contraditório e que tem a função de apurar a materialidade do delito e sua autoria, para a adequada propositura da ação penal, é chamada

405GIACOMOLLI, 2006., p. 279.

406 DANTAS, Antonio Leones. In: Sistemas de proceso penal en Europa. Director: Ramón Maciá Gómez.

Barcelona: CEDECS, 1988, p. 77.

407 LOPES, 2008c, p. 59.

408 BASTOS, 2004, p. 49. O autor traz parte do texto do Código de Processo Penal e Constituição de Portugal, os

quais, respectivamente, vale citar: “Art. 263-º (direção do inquérito): 1. A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal. 2. Para efeito do disposto no número anterior, os órgãos de polícia criminal actuam sob a direta orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional. Art. 270-º (actos que podem ser delegados pelo Ministério Publico nos órgãos de polícia

criminal): 1. O Ministério Público pode conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a

quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito. 2. Exceptuam-se do disposto no número anterior, além dos actos que são da competência exclusiva do juiz da instrução, nos termos dos artigos 268-º e 269-º, actos seguintes...”. art. 219 da Constituição de Portugal: 1. Ao Ministério Público compete...; 4 Os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados, e não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei”.

de inquérito. A polícia criminal, que é auxiliar do parquet, possui dependência funcional do titular da investigação criminal – o Ministério Público.410

Nesse sentido, Fernandes411 esclarece que:

No modelo introduzido pelo C. P. P. de 1987, o processo comum foi dividido em apenas duas fases: a preparatória e a de julgamento. A primeira delas, a fase preparatória, efectiva-se por uma só, ou duas fases preliminares, ou seja, um inquérito que é obrigatório e uma instrução sempre facultativa. [...] Segue-se uma fase autónoma de instrução, dirigida por um juiz diverso daquele que intervirá no julgamento e destinada à comprovação da decisão do ministério público de deduzir a acusação ou arquivar o inquérito. Finda a instrução, ou não requerida a sua abertura, segue-se o julgamento, a ser realizado perante um juiz singular, um tribunal colectivo, ou pelo tribunal do júri, conforme a gravidade (e excepcionalmente) a natureza do crime acusado.

Cabe ao Ministério Público, portanto, realizar a persecução dos delitos, desde a fase do inquérito, realizando a mais profunda apuração do fato delituoso. Assim, segundo o art. 14 do DL 35.007, na direção da instrução preparatória, deverá observar o princípio da legalidade e tem dever de objetividade.412

Por outro lado, embora no modelo português os membros do Ministério Público sejam considerados magistrados, suas funções não são jurisdicionais. Mas as suas prerrogativas não vão além dos poderes de investigação e de iniciação da ação penal.413

No sistema português, atua na fase preliminar um Juiz Instrutor, o qual faz o papel de

juiz de garantias, uma vez que lhe cabe intervir nos atos que possam violar direitos e

garantias fundamentais realizados pelo promotor investigador. Nesse sentido, Dantas414 assevera que:

A pesar de que el código tiene atribuido al Ministerio Publico la responsabilidad de la dirección y realización del inquérito, los actos procesales que pueden perturbar derechos fundamentales están judicializados. El nivel de intervención del juez de instrucción en el inquérito depende de la naturaleza de los actos a llevar a cabo. Así, hay actos en que la ley exige la intervención del proprio juez de instrucción y hay otros en que la Ley se contenta con la previa autorización para su realización. La intervención del juez en el inquérito surge, así como una forma de garantía de que las lesiones de los derechos solo ocurran en la medida estrictamente necesaria en la realización de los objetivos del proceso y cuando la ley lo permita. Eu juez de instrucción es ajeno a la definición de los objetivos del inquérito y la dirección funcional de este. 410 GIACOMOLLI, 2006, p. 279. 411 FERNANDES, 2001, p. 527. 412 CHOUKR, 2001, p. 66. 413 RANGEL, 2003, 163. 414 DANTAS, 1988, p. 80-1.

No sistema português, o Ministério Público, na tarefa de realizar a investigação preliminar, será apoiado pela Polícia Judiciária. Entretanto, apesar do MP ser o dominus do inquérito, a direção que lhe é conferida não exige que ela seja real e efetiva, bastando uma

direcção funcional.415 Assim, embora nessa fase o Ministério Público tenha a função de

presidir de forma direta o inquérito, tais funções podem ser delegadas à Polícia Judiciária, a qual irá realizar as diligências sob a coordenação do parquet.416

A respeito das relações da polícia e do Ministério Público, quando da realização da investigação preliminar, Dantas417 observa o seguinte:

El Ministerio Público, con la colaboración de la policía, lleva a cabo las tareas necesarias a realizar en el inquérito, pero siempre que tenga que realizar actos que perturben directamente derechos fundamentales tiene que provocar la intervención del juez de instrucción. Para llevar a cabo la realización de tereas del inquérito las autoridades policiales se colocan bajo la dependencia funcional del Ministerio Público. A través de esta dependencia se sujeta la intervención policial a un control permanente de una autoridad judicial.

Salienta-se que no sistema português, da mesma forma como no italiano, o Ministério Público será o endereço final da investigação preliminar preparatória, a qual ele próprio dirigiu. Concluída a fase da investigação preliminar, surge como possibilidade, para o conteúdo daquilo que foi produzido nessa fase, tendo por base os critérios da legalidade e objetividade, o arquivamento do inquérito, o exercício da ação penal, decidir o Ministério Público pela suspensão do processo ou pelo rito do simplificado do processo sumaríssimo.418

Em relação ao não exercício da ação penal, chamado pelo legislador português de

abstenção da acusação, o controle que existe é interno ao Ministério Público. A comunicação

ao Procurador-Geral de que a investigação preliminar fora arquivada, poderá ser feita pela

415 CHOUKR, 2001, p. 66-7. De acordo com o autor, a jurisprudência portuguesa, ao decidir sobre a forma de

condução do inquérito pelo Ministério Público, observou que “São válidos e não geradores de nulidade os atos de instrução dos processos crime efetuados pelas Polícias ao abrigo do Despacho do Procurador-Geral da República, de 21 de dezembro de 1987, por o conceito de direção da instrução conferida ao MP pelos artigos 53 e 263 do CPP não exigir a direção real e efetiva, e se contentar com uma direção funcional da mesma”.

416 KAC, 2004, p.73. 417 DANTAS, 1988, p. 81.

418 FERNANDES, 2001, p. 527-528. Segundo o autor, uma visão panorâmica do processo penal português, no

modelo introduzido pelo C.P.P., de 1987 (na fase do inquérito), seria a seguinte: “se inicia com o recebimento da notícia do crime pelo Ministério Público (art. 241º), ensejando a abertura da fase do inquérito, dirigida por esta instituição com assistência dos órgãos de polícia criminal (art. 262º e seguintes). Como titular da fase do inquérito, o Ministério Público encerra-a (nos prazos abstractamente previstos em função da gravidade do crime e de o arguido se encontrar ou não privado da sua liberdade: art. 276º) proferindo despacho de acusação ou arquivamento”.

vítima, pelo magistrado ou pelo próprio promotor que conduziu a fase preliminar, nos trinta dias subsequentes ao despacho de arquivamento. O Procurador Geral poderá determinar que seja revisto o despacho.419 Desse modo, basicamente o controle sobre o exercício da ação penal é hierárquico.420

Exercitada a ação penal pelo Ministério Público, a legislação portuguesa também traz a possibilidade – facultativa como já pontuado - de uma fase de admissibilidade da acusação

(fase intermediária) com o contraditório entre a acusação e defesa perante o Juiz de Instrução,

que discutirá sobre a procedência da acusação. Nesse momento, há um controle do Poder Judiciário sobre a postura de exercer a ação penal por parte do Ministério Público.421

Ao contrário da fase da investigação preliminar, em que o juiz fica totalmente alheio ao processo, nessa etapa de admissibilidade da acusação, ele tem participação ativa. Aqui ele dispõe livremente sobre os atos a serem apurados, para a analisar a possibilidade da acusação capitaneada pelo Ministério Público, podendo o Juiz inclusive rechaçar a acusação do parquet.422

Cabe observar ainda, que o modelo de Portugal o legislador buscou nitidamente, um sistema garantista, no qual a função do Juiz é tutelar os direitos e as garantias fundamentais do acusado, motivo pelo qual o magistrado restou desvencilhado da persecução criminal. A função persecutória ficou ao encargo do Ministério Público, que é o presidente da investigação preliminar e titular da ação penal. Desse modo, o Magistrado atua na sua ideal função, ou seja, na função de garantidor.423 Por isso, nesse aspecto, o modelo português no âmbito internacional é visto como modelo.

419 CHOUKR, 2001, p. 68

420 FERNANDES, 2001, p. 529. Refere o autor que existe, também, um controle judicial sobre o poder do

Ministério Público de acusação ou não acusação, através do direito que facultado tanto ao arguido, no caso de acusação (art. 287º, nº 1, alínea a), como ao assistente, na hipótese de não acusação (art. 287, nº 1, alínea b), de requererem a abertura da instrução, fase processual esta, conforme já visto, destinada a comprovar judicialmente a decisão de levar ou não a causa a julgamento.

421 RANGEL, 2003, p. 165. Sobre essa fase intermediária vale trazer o texto do Código de Processo Penal, citado

pelo autor, uma vez que é bastante esclarecedor: “Art. 289 – A instrução é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes civis. Art. 298 – O debate instrutório visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento”.

422 DANTAS, 1988, p. 85.