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O sistema dos Estados Unidos da América do Norte

3.2 OS MODELOS DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

3.2.3 Investigação policial

3.2.3.2 O sistema dos Estados Unidos da América do Norte

No modelo norte-americano, assim como no argentino, tendo em vista o pacto federativo, cada Estado membro pode legislar, inclusive na seara penal e processual penal de maneira divergente. Da mesma forma, a União legisla em relação aos delitos federais.478

476 KAC, 2004, p. 78.

477 DELMAS-MARTY, 2000, p. 165.

478 RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2006, p. 35. Conforme esclarece o autor: “De fato, nos EUA há pelo menos 52 sistemas de justiça criminal, a saber: os dos 50 Estados-membros, o da União e o do Distrito de Colúmbia. Logo, há também 52 diferentes fontes de estabelecimento de procedimentos penais”.

Essa circunstância cria problemas metodológicos no estudo do sistema como um todo diante da multiplicidade de legislações e experiências jurídicas do modelo estadunidense. Muitas vezes, tal excessiva fragmentação do sistema, resultado de um modelo federativo interpretado de uma forma radical, cria até mesmo contradição direta entre as normas jurídicas dos entes da federação.479

Não obstante essa problemática, é possível a divisão do Processo Penal norte-americano em três grandes fases: a primeira é a fase investigatória (investigatory stage), segue-se com a fase de judicialização (adjudicatory stage) e, por fim, a etapa do julgamento.480

No sistema dos Estados Unidos, a Polícia Judiciária é a responsável pela condução da investigação preliminar, sendo que o resultado dessas diligências é encaminhado diretamente à Promotoria Pública, órgão aos moldes do Ministério Público.481 Ressalta-se, todavia, que há divergência na doutrina nacional sobre o tema. Nesse sentido, Kac e Bastos afirmam que o

parquet é o responsável pela presidência da fase preliminar no sistema norte-americano.482

Mas Ramos483, em sua abrangente obra sobre o Processo Penal norte-americano, é enfático sobre a condução da investigação pela polícia judiciária naquele país:

Não é da tradição dos promotores a realização de investigações criminais. [...]. A investigação criminal é realizada pelos órgãos policiais, em caráter praticamente monopolístico, não porque privativa, mas porque típica atividade policial, que somente as agências policiais realizam com múnus principal. A polícia judiciária não é subordinada aos promotores, mas ao chefe do respectivo Poder Executivo.

479 CHOUKR, 2001.

480 RAMOS, 2006, p. 177.

481 LOPES, 2009c, p. 64-5; CHOUKR, 2001, p. 72-101; ANDRADE, 2000, p. 83-5. O autor refere que “a

maioria das investigações criminais nos Estados Unidos são dirigidas pelos Departamentos de Polícia”. Todavia o autor mais adiante tece críticas sobre o Ministério Público norte-americano e sua conduta de negociação processual – plea bargain. Isso faz com que o parquet naquele país interfira na condução das investigações policiais, uma vez que o início, a interrupção ou o andamento da investigação, corriqueiramente, dependam das negociações da promotoria. Além disso, refere que o fato de a polícia norte- americana não dispor de poder postulatório em juízo, faz com que ela dependa do promotor para requerer medidas cautelares de intervenção em direitos fundamentais.

482 KAC, 2004, p. 47-8. Essas são as colocações do autor: “Cumpre ressaltar, ainda, que os attorneys ou

prosecutors, como são chamados, têm a seu dispor toda uma gama de avaliações técnicas que lhe permitirão aquilatar o teor da acusação e de quem seja seu autor. [...] conta com uma equipe altamente especializada de policiais e técnicos forenses que lhe subministrarão os elementos básicos e imprescindíveis à propositura da ação penal. [...] O procedimento se inicia com o registro policial, desenvolvendo-se a investigação penal com a condução direta do Ministério Público, que detém o poder de decidir se leva o caso adiante (é o chamado poder discricionário quanto à disponibilidade da ação penal)”; BASTOS, ob, cit., pp. 76-78. Esta é a posição do autor: “O fenômeno da massificação da criminalidade nos Estados Unidos, a exigir mecanismos fortes e ágeis para o seu enfrentamento, levou a uma hipertrofia do Parquet, que o coloca em uma posição de supremacia até mesmo em relação ao Poder Judiciário. [...] Não só as investigações criminais são dirigidas pelo Promotor, com o auxilio da Polícia, como o exercício da ação penal fica ao seu juízo discricionário, posto que nos Estados Unidos a ação penal é plenamente disponível diante do plea bargaining”.

Havendo violações da legislação dos estados, as polícias dos condados ou estaduais procederão às investigações. Na hipótese de afronta à lei federal, agências e investigação da União realizarão a investigação.484 Segundo Ramos485, a fase investigatória policial é desenvolvida em duas etapas:

A fase de investigação é claramente dividida em dois períodos: ou fases dentro da fase. Num primeiro período, as autoridades investigantes dedicam-se à determinação dos fatos, bem como à individualização de um suspeito. No segundo período, com a identificação de um suspeito, a investigação assume a forma de uma persecução criminal. Nessa fase, os protagonistas mais importantes são os órgãos policiais de investigação e técnicos.

Em relação ao acompanhamento que o Ministério Público realiza sobre a investigação preliminar, no modelo norte-americano, o órgão de acusação tem amplo acesso sobre o desenvolvimento das diligências procedidas pela Polícia Judiciária. Pode, inclusive, requisitar aquelas que lhe parecerem pertinentes, visando ao esclarecimento dos fatos ou orientar a direção da prova, conforme convenha à tese acusatória. Entretanto volta-se a salientar que existe total independência entre o parquet norte-americano e a Polícia Judiciária, não havendo qualquer subordinação hierárquica.

Terminada a fase preliminar, acontece a fase da adjudicação, na qual, inicialmente, haverá juízo de valor pelo acusador em relação ao exercício ou não – arquivamento das diligências investigatórias - da ação penal, da mesma forma o Poder Judiciário fica totalmente excluído. Caso a Promotoria Pública verificar que há elementos pertinentes para tentar ingressar com a ação penal, haverá a acusação formal (complaint, indictment ou prosecutor’s

information) e postulará pela audiência preliminar ou pela apresentação ao grande júri.486

A audiência preliminar, em que haverá o contraditório, acontecerá perante um magistrado, via de regra, no mesmo dia ou no seguinte da detenção do investigado, quando for o caso. Então será aferido pelo Poder Judiciário, que analisa a admissão e a validade das provas coletadas, se existe ou não a probable cause. Rejeitada a tese acusatória, não haverá a ação penal. Esse

484 LOPES, 2009c, p. 64.

485 RAMOS, 2006, p. 178-81. De acordo com o autor, na primeira fase da investigação – sem suspeito - não há

prazo para a sua conclusão. O único limite é a 4.ª Emenda, que tutela o povo em geral contra buscas sem causa provável. Isso muda quando surge um suspeito e as autoridades policiais iniciam a persecução criminal (Par excellence). A partir daí, existem prazos para a sua conclusão, bem como o investigado passa a ser sujeito de direitos, os quais vêm enunciados na 5ª, 6ª e 8ª emendas.

486 RAMOS, op. cit., p. 184-7. Conforme o autor, basicamente são três as formas de iniciar a persecução criminal

nos EUA: a queixa (complaint), que é o pedido de prisão de alguém a um tribunal; o indiciamento (indictment), que é a declaração pelo grande júri de que há provas para submeter alguém ao pequeno júri; e a informação do promotor (prosecutor’s information), que a é apresentação formal pelo agente público de uma acusação contra alguém.

momento processual é considerado muito importante, quando se fala em economia processual. 487 Admitida a acusação, nessa instância da fase de adjudicação acontece a audiência de citação (arraigment). Na audiência de citação, o acusado, após tomar conhecimento detalhado da acusação, fará suas declarações iniciais, podendo se manifestar de quatro formas: culpado (guilty), inocente (not guilty), insanidade mental, ou nolo contendere. Neste último caso, acontece a aceitação de culpa pelo acusado, mas o conjunto probatório fica impedido de ser utilizado em outro processo. Ou seja, possibilita a aplicação de pena criminal, mas não vale para efeito de prova em eventual ação cível indenizatória.488

Caso o acusado se declare inocente, quando são feitas as moções (motion) das partes, nas quais apresentam suas pretensões processuais, durante toda essa fase, a 6ª Emenda da Constituição norte-americana assegura ao acusado o direito de se aconselhar com seu advogado, e termina, assim, a fase de adjudicação. Começa a fase judicial, quando acontece a instrução propriamente dita do processo. Nesse momento, acontece a fase do contraditório, com a apresentação de provas pelas partes – instrução – e a crítica da causa, com os argumentos de encerramento (closing argument). Culminando a fase judicial, tem-se o julgamento (veredict). Em caso de condenação (guilty), surge ainda a etapa sentenciamento

(sentencing proceedings), na qual será determinada a pena imputada ao acusado.489

O sistema norte-americano possui ainda mais uma distinção crucial em relação ao nosso e aos outros modelos estudados, cuja diferença se consubstancia na possibilidade de que haja a negociação de pena ou de transação penal entre a acusação e o réu, denominada

plea bargaining, a qual ocorre normalmente quando o acusado assume a culpa nas

declarações iniciais.490

Mas o sistema de penas negociadas no sistema norte-americano sofre muitas críticas. Ataca-se a plea bargaining pelos mesmos motivos que nosso sistema do JECrim: não há liberdade de escolha do acusado, diante da forte pressão do Ministério Público para que aquele aceite penas severas, sob ameaça do processo e de uma situação mais grave – pena de

487 CHOUKR, 2001, p. 72. No mesmo sentido, KAC, 2004, p. 48, complementa, sobre a audiência preliminar

que o imputado pode desistir dela ou mesmo o Ministério Público pode solicitar que ela não se realize. Ainda, que o objetivo da audiência é analisar o acervo probatório para que o acusado seja levado a julgamento. Há o contraditório, podendo as partes produzir provas, sendo que o mais comum é que a acusação apresente suas testemunhas, sendo permito à defesa inquiri-las. Ao término da audiência preliminar, o Magistrado decidirá pelo envio do imputado a julgamento ou pelo arquivamento (bind the case over), ou, ainda, pelo arquivamento do procedimento.

488 KAC, 2004, p. 49. Conforme o autor, são três as alternativas básicas para a negociação: “(i) acordo para que o

acusado se declare “culpado” de uma imputação menos gravosa; (ii) declaração de “culpado” com alguma atenuante, como, por exemplo, a concessão de livramento condicional, e (iii) declarar-se “culpado” da acusação com a promessa de não ser processado por outros fatos puníveis.”

489 RAMOS, 2006, p. 189-94. 490 Ibid., p. 49-50.

morte, por exemplo. Essa negociação, com tais contornos,fere qualquer modelo de garantias processuais que se pretenda dar ao acusado.

O modelo de penas negociadas norte-americano é criticado por Giacomolli491 nos seguintes termos:

Considera-se que este sistema não fomenta a investigação científica; que no reconhecimento da culpabilidade ocorre uma coação psicológica, prestando-se à manipulação política contra os negros e os mais pobres, com condenação dos menos experientes. Ademais, propicia uma troca de favores entre o Ministério Público, que é eleito e luta para manter seu cargo por meio de um grande número de condenações fáceis de obter com a negociação com o acusado.

Verifica-se que no modelo norte-americano há uma preocupação com a manutenção de um sistema acusatório. Há uma nítida separação das funções de investigar, acusar e julgar, nas quais o juiz fica absolutamente ausente, em termos de controle ou de produção de prova, da fase inquisitória, que é conduzida com independência pela Polícia Judiciária.

Todavia, a partir do momento em que o promotor opta pela ação penal, embora exista um cuidado com acusações infundadas, inclusive com um juízo de admissibilidade da acusação, o acusado fica praticamente à mercê da acusação. Isso ocorre em face do sistema de penas negociadas, o qual, em muitos poucos casos, o acusado consegue declinar, tendo em vista os instrumentos de pressão que o sistema proporciona à Promotoria.