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3.2 OS MODELOS DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

3.2.1 Os juizados de instrução

3.2.1.1 O modelo francês

O atual Código de Processo Penal da França, em vigor desde 1958, resultou da reformulação do Código de Instrução Criminal de 1808. Importa ressaltar que esse Código de 1958 vigeu por decreto – ordonnance - não sendo submetido a debate parlamentar. Tendo em

275 LOPES JR, 2008b, p. 220.

276 CHOUKR, 2001, p. 48. O autor, por exemplo, divide seu estudo sobre a investigação preliminar nos modelos

de Juizado de Instrução e acusatórios – promotor investigador e de Common Law - neste último caso, referindo-se especificamente aos sistemas norte-americano e inglês, os quais utilizam o modelo policial, assim como o Brasil.

vista sua característica autoritária, não passou incólume a críticas e modificações influenciadas pela constitucionalização do Direito francês, decorrente, dentro outros fatores, pela ratificação do Tratado Europeu de Direitos Humanos e dos pactos da Organização das Nações Unidas 277

O atual procedimento do Processo Penal da França pode ser delimitado, genericamente, em três etapas: a investigação preliminar - enquête, a instrução – instrucaio

préparatoire ou poursuite e a do julgamento - jugement.278

Cabe ressaltar que essa configuração do processo penal francês poderá ser diferente,

conforme a espécie da infração penal. O processo poderá iniciar diretamente na fase de instrução, com uma etapa preliminar investigatória, sob a presidência do Juiz de Instrução. Depois a instrução seguirá com caráter de processamento judicial. Ou seja, de formação da prova processual, preparando o processo para julgamento, semelhante ao brasileiro.279

Notadamente, tem-se a França como o país de surgimento do Juizado de Instrução.280 Esse sistema é conhecido como um marco da repressão criminal. É derivado do lieutenant

criminel, surgida na Declaração dos Franceses de 1.º, de janeiro de 1522. Sua conformação

atual remonta a 1810, quando a lei de organização judiciária disciplinou a função de Juiz Instrutor, com prazo limitado para o exercício do cargo de três anos.281

Dependendo da espécie de delito, na fase preliminar, a função do Juiz de Instrução é de investigar e depois instruir o processo criminal. Ele tem o papel de colher as provas com o objetivo de delimitar a materialidade e autoria do fato delituoso. Entretanto, tem poderes jurisdicionais, ou seja, não deixa de ser um juiz.282 Por outro lado, como investigador, sua atuação é semelhante a de um policial civil no Brasil, pois realiza uma função administrativa, embora não deixe de ser um magistrado.283

277 DELMAS-MARTY, Mireille. Procesos penales de Europa. Alemania, Inglaterra y País de Gales, Bélgica,

Francia: EDIJUS, 2000, p. 263-5. O autor esclarece que, embora o Código de Processo Penal da França ainda seja o de 1958, ele sofreu várias modificações parciais em 1985, 1986, 1989, 1992, 1993, 1994 e 1995.

278 KAC, Marcos. O ministério público na investigação criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 54. No

mesmo sentido DELMAS-MARTY, op. cit., p. 281-3.

279Ibid., p. 281, 283-7. Conforme explica o autor, a instrução (information) é obrigatória para os delitos graves

(crimes), facultativa para os menos graves (delitos) e excepcional para as faltas (contravenções). No primeiro caso (crimes) a instrução preparatória terá caráter de investigação e será presidida pelo Juiz de Instrução.

280 LOPES, 2009c, p. 55. 281 CHOUKR, 2001, p. 48-9

282 RANGEL, Paulo. Investigação criminal direta pelo ministério público: visão crítica. Rio de Janeiro.

Lumen Juris, 2003, p. 159. Na mesma esteira, DELMAS-MARTY, op. cit., p. 288.

283 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Curso de investigação criminal. São Paulo: Juarez Oliveira, 2002, p. 134.

O autor refere que “É curioso saber que antigamente tanto o Promotor de Justiça como o Juiz de Direito tinham, na França, o título de Oficiais da Polícia. Hoje, todavia, não o têm mais, mas conservam ainda o mesmo poder de um oficial.”

Sobre as funções do Juiz de Instrução, – na fase preparatória, vale trazer os ensinamentos de Delmas-Marty284:

El Juez de instrucción tiene una doble función, como investigador y como Juez. Como investigador está encargado de reunir las pruebas de las infracciones, de buscar los autores y de preparar las actuaciones del proceso; debe instruir a favor y en contra del denunciado. Como Juez puede requerir el auxilio de la fuerza pública, y decide sobre la inculpación del encausado – mise en examen - después, eventualmente, de su puesta en prisión provisional o en libertad bajo control judicial.

Mas o Juiz Instrutor na França não possui a titularidade exclusiva de comandar a investigação, a qual divide com o Ministério Público. Então o modelo de investigação preliminar francês pode ser considerado híbrido, em relação a sua presidência.285

Essa divisão na direção da fase investigatória, entre o Juiz Instrutor e o Promotor, acontece em face da espécie da gravidade da infração criminal a ser apurada. Na França, as infrações (gênero) penais são divididas, gradativamente, em crimes, delitos e contravenções (espécie), de acordo com a gravidade. Os crimes são as infrações punidas com pena de reclusão e detenção; os delitos com pena de prisão e multa; e as contravenções, apenas com multa.286

Em termos de procedimento investigatório, existem dois, um é a instrução preparatória (instruction préparatoire), a qual é conduzida pelo Juiz Instrutor e destinada à investigação das infrações mais graves (crimes), o outro procedimento é a enquete ou enquete preliminar (enquête préliminaire), que é utilizado para apuração das infrações menos graves, ou seja, delitos e contravenções.287

Desse modo, conforme o modelo francês, nos crimes existe a obrigatoriedade de atuação do Juiz de Instrução, como responsável pela investigação. No caso do delito, a atuação do magistrado investigador é facultativa, diferentemente do que ocorre na contravenção, na qual a sua intervenção somente ocorrerá por requerimento do Ministério Público.288

Na França, o Ministério Público faz parte do Poder Executivo, hierarquicamente subordinado ao ministro da Justiça.289 Por outro lado, o ministère public é considerado uma espécie de magistratura especial – parquet. Os magistrados e os promotores compõem um

284 DELMAS-MARTY, 2000, p. 273.

285 LOPES, 2009c, p. 55.

286 DELMAS-MARTY, op. cit., p. 265.

287 BASTOS, Marcelo Lessa. A investigação dos crimes de ação penal de iniciativa pública. Papel do

ministério público. Uma abordagem à luz do sistema acusatório e do garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 63.

288 MENDRONI, 2002, p. 130.

289 RANGEL, 2003, p. 159. O autor pontua que na França, tendo em vista esta subordinação ao Poder

único corpo de juristas de carreira e são formados pela Escola Nacional da Magistratura.290 Além da função investigatória, o parquet tem como atribuições o exercício da ação penal e a representação da sociedade para postular aplicação das leis e guardar a observância delas. Ainda, além dessas, executar as decisões judiciais, quando se relacionarem à ordem pública, e defender os interesses daqueles que não tiverem capacidade de fazê-lo.291

Acentua-se que, embora haja diferenciação das carreiras da magistratura dos juízes e dos integrantes do Ministério Público, admite-se com certa normalidade a transferência de magistrados de um quadro para outro. As carreiras são fungíveis, sendo que o exercício de ambas as funções pelo Magistrado já fora considerado fator observado para efeito de promoção, dentro dos quadros.292

Na realização da investigação preliminar, tanto pelo Juiz Instrutor como pelo parquet, eles serão apoiados pela Polícia Judiciária, conforme esclarece Delmas-Marty293:

La policía judicial está encargada de “comprobar las infracciones de la ley penal, reunir las pruebas y buscar los autores mientras no se abra una información” (art. 14 CPP). Estos poderes son ejercidos, ya por instrucción del fiscal de la República; ya de oficio durante la investigación preliminar (art. 75 CPP); después bajo la dirección del Juez de instrucción tras la apertura de una información (art. 14.2 CPP).

Embora sua função fosse de auxiliar o Juiz Instrutor e o Ministério Público nas suas investigações, com o tempo a Polícia Judiciária viu aumentada a relevância das enquêtes

preliminares. Na prática, restaram as enquetes policiais por se constituir na verdadeira base de

esclarecimento dos fatos apontados como delituosos, acabando a investigação desenvolvendo- se quase que exclusivamente ao seu alvedrio.294

Hoje, na França, pode-se dizer que a atuação do juizado de instrução é dependente da investigação preliminar da polícia. Tal circunstância gera um aumento das atribuições da Polícia Judiciária que age, em regra, de forma autônoma ou com delegação de poderes das autoridades judiciais.295

Quanto à relação do Ministério Público e da Polícia Judiciária, cabe ser ressaltado que, na França, sob um ponto de vista formal, há relação entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público. Ela chega a ser hierárquica, sendo que ao parquet cabe a fiscalização dos trabalhos

290 DELMAS-MARTY, 2000, p. 266. 291 BASTOS, 2004, p. 61-2.

292 KAC, 2004, p. 52-3.

293 DELMAS-MARTY, op. cit., p. 269. 294 CHOUKR, 2001, p. 49.

da Polícia Judiciária.296

Nos casos em que é sua atribuição investigar, cabe ao Ministério Público instruir a Polícia Judiciária a atuar de acordo com suas orientações. O parquet pode efetuar ou determinar a realização dos atos de investigação preliminar. Desse modo, nesses casos, pode- se dizer que ele dirige a atividade policial, sendo que está dentro da sua esfera de atribuições determinar punições por faltas disciplinares, bem como fazer o controle da legalidade dos atos investigatórios.297

Também há obrigação de informação ao parquet da detenção operacionalizada diretamente pela Polícia Judiciária.298 Sobre essa detenção policial – gar à vue -, com fins

investigatórios, Delmas-Marty299 refere que:

A los fines de una investigación, un oficial de la policía judicial puede detener a ciertas personas; ha de informar “en breve plazo” al fiscal de la República. Cuando el cumplimiento de un exhorto del Juez de instrucción necesita la detención policial de una persona, los poderes conferidos al fiscal de la República son entonces ejercidos por el Juez de instrucción (art. 154 CPP).

Há um dever de informação da Polícia Judiciária ao Ministério Público, desde o início da investigação até o final da enquête. Importa salientar que na prática esta informação se dá, via de regra, através de contato telefônico.300

No caso das contravenções, ao final da investigação, a Polícia Judiciária remete um relatório - dossier - ao Ministério Público dando conta do que apurou. Caso se trate de infração de um delito, os oficiais de Polícia Judiciária, de acordo com as orientações do

parquet, poderão iniciar diretamente o processo contra o imputado.301

Sobre a atuação e o controle da atuação da Polícia Judiciária, no Juizado de Instrução francês, Choukr302 pondera que:

296 MENDRONI, 2002, p. 131. 297 KAC, 2004, p. 54-5. 298 CHOUKR, 2001, p. 50.

299 DELMAS-MARTY, 2000, p. 322-3. Conforme a lição do autor, no Processo Penal francês, a gar à vue é

utilizada para manter suspeitos e até testemunhas à disposição da Polícia Judiciária para fins de investigação, visando ao esclarecimento do delito, pelo tempo de 24 horas, de um modo geral ou mais, no caso de o investigado ter contra si indícios de participação no fato. Essa medida se compara à Prisão Temporária do Direito brasileiro, com a diferença de que lá na França pode ser decretada diretamente pela Polícia Judiciária.

300 CHOUKR, op. cit., p. 49-50. Conforme o autor, “excepcionalmente é feito um relatório escrito e diário” da

polícia ao parquet.

301 DELMAS-MARTY, op. cit., p. 283. 302 CHOUKR, op. cit., p. 50.

No entanto, malgrado tais disposições, Levy anota ainda que desde uma visão pragmática, este controle é meramente retórico, na medida em que no caso da situação parisiense, cerca de 73% dos casos investigativos terminam sem que o parquet tenha sido informado de sua ocorrência e, nesse quadro, a iniciativa da investigação pertence exclusivamente à polícia judiciária, vale dizer, mesmo sem a intervenção do juiz instrutor.

Terminada a fase de instrução, existe no sistema francês, nos casos mais complexos, a obrigatoriedade de análise pela Sala de Acusação – chanbre d’ accusation – que é composta por três magistrados. Nessa fase intermediária, entre a instrução preparatória e o julgamento, faz-se um juízo de valor sobre os elementos probatórios colhidos até então, atuando como um tribunal de retificação e controle sobre os atos do Juiz de Instrução. Após esse exame, a Sala de Acusação decide pelo envio do imputado ao tribunal que o julgará ou fará o arquivamento do processo.303