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Os modelos da Inglaterra e do País de Gales

3.2 OS MODELOS DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

3.2.3 Investigação policial

3.2.3.1 Os modelos da Inglaterra e do País de Gales

O sistema inglês apresenta muitas dificuldades de estudo ao observador estrangeiro, devido as suas particularidades. Para começar, a Inglaterra não possui um Código de Processo Penal. As normas processuais estão dispersas em vários textos legislativos, os quais remontam ao século XIV, mas são utilizados até hoje, bem como tem assento em abundante jurisprudência.464

462 HAC, 2004, p. 88-9.

463 Ibid., p. 89.

464 DELMAS-MARTY, 2000, p. 147. A autora explica que, da mesma forma, os grandes princípios do Direito

inglês – que em outras legislações normalmente estão na Constituição - também não estão sistematizados. Na verdade, sequer Constituição escrita possui a Inglaterra, uma vez que ela depende de diversas fontes, sendo a mais antiga e famosa a Carta Magna de 1215.

Uma das singularidades do sistema da Inglaterra é a não existência de uma instituição do Estado com as funções e a organização aos moldes do nosso Ministério Público. Na verdade, até 1985, o sistema inglês não tinha previsão da existência do Ministério Público. Portanto, até meados da década de oitenta do século XX a persecução criminal pública – investigação e acusação - na Inglaterra eram confiadas à polícia de cada localidade, praticamente com exclusividade.465

Nesse aspecto, o sistema britânico é tão diferente que não se pode compará-lo com nenhum outro. Embora esclareça que não se trata da mesma figura existente nos países continentais, Delmas-Marty466 propõe identificar o Crown Prosecution Service como algo

semelhante ao Ministério Público. Sobre as atribuições desta instituição na Inglaterra, comenta o seguinte:

El Crown Prosecution Service continúa o sobresee el proceso penal iniciado por la decisión de la Policía de perseguir el hecho punible. Si la Policía no ejercita la acción penal, el Crown Prosecution Service no interviene en principio. Los Fiscales (Crown Prosecutors) pueden actuar ente el magistrates’ court, pero no pueden llevar un caso ante el Crown Court. En este caso la acusación se ejerce por un abogado (prosecuting counsel) contratado por la acusación.

Nem mesmo o Attorney General, o qual seria um auxiliar do governo, apresenta qualquer similaridade com a figura do Promotor Público, da forma como se tem no nosso sistema.467 Conforme pontua Choukr, na Inglaterra, a infração criminal ataca diretamente a figura do rei, o qual, por uma ficção jurídica, aparece em todos os tribunais britânicos. Desse mesmo modo, valendo-se dessa ficção legal, a legitimidade para perseguir o delito é facultada a qualquer pessoa, uma vez que representa o rei ofendido perante a justiça.468

A persecução criminal inglesa possui três fases: a preparatória, a qual se desenvolve com a investigação preliminar e os atos de persecução criminal a cargo da Polícia, culminando com a continuação ou não da acusação pelo Ministério Público; a intermediária

(transfer for Trial) trata daquela fase em que há admissibilidade da acusação, nos casos de

465 BASTOS, 2004, p. 73.

466 DELMAS-MARTY, 2000, p. 151-5.

467 LOPES, 2009c, p. 62. Conforme esclarece o autor, o Attorney General, que é membro do Parlamento Inglês e

do Governo, é quem nomeia e controla o Director of Public Prosecutions, o qual dirige o Crow Prosecution Service, ou seja: o Ministério Público na Inglaterra e País de Gales.

468 CHOUKR, 2001, p. 71. Ainda de acordo com KAC (2004, p. 80), O Ministério Público inglês (Crown

Prosecution Service) foi criado em 1985 e é dirigido pelo Director of Public Prosecutions, nomeado pelo Attorney General. Complementa o autor que o Ministério Público inglês é fraco, possuindo funções apenas na seara criminal, e mesmo nessa dimensão sofre forte intervenção da polícia e de outros órgãos administrativos e da iniciativa privada, sendo muito subordinado ao poder político. Em relação à ação penal, por exemplo, além do Ministério Público, ela pode ser iniciada pela vítima, pela polícia e outros órgãos administrativos, por qualquer cidadão.

infrações graves ou mistas. E, fechando o ciclo do processo penal, a fase do juízo oral, na qual o acusado, no caso das infrações leves ou mistas será julgado ante a Magistrates’ Court, ou perante a Crown Court, no caso dos delitos graves ou mistos.469

No modelo inglês. a polícia, além da investigação preliminar, na prática, é quem realiza a própria persecução criminal, com a decisão de acusar o investigado perante a justiça.470 Na verdade, o sistema possibilita que, em muitos casos, o Estado nem participe da persecução dos delitos, pois quem faz a acusação pode ser sociedade civil organizada ou a própria vítima que teve o seu bem lesado.471

A respeito das funções da polícia inglesa, ensina Delmas-Marty472:

En Inglaterra, la Policía ejerce una doble función, la búsqueda de las pruebas y el ejercicio de la acción penal. Ambas funciones están ligadas porque es precisamente a la terminación de la investigación realizada por ella y a la vista de las pruebas obtenidas durante esta fase cuando la Policía se decide por el archivo del asunto (classement sans suite) o por formular la acusación. Si la Policía tiene al detenido en sus locales, la acusación se realiza mediante la notificación de los hechos punibles que le imputan (by way of charge).

Fica evidenciado que, no modelo de investigação preliminar inglês, a polícia atua com exclusividade. A ênfase à atuação da polícia, na persecução criminal inglesa, explica-se pela tradição que a polícia possui de ser uma instituição que nasce na sociedade civil e age em defesa dos seus cidadãos.473 Já o Ministério Público não detém poder investigatório – sequer possui a titularidade exclusiva da ação penal - apenas tem a função de acompanhar a investigação conduzida pela polícia, visando levar adiante a futura ação penal.474

Na fase preliminar, a intervenção do Judiciário fica restrita apenas às situações em que há a necessidade da decretação de providências cautelares de urgência – não é de controle. A atuação judicial na investigação policial – nos moldes de Juiz de Garantias - é desempenhado pelo Juiz de Paz, que, na maioria dos casos, não é profissional. A decisão de investigar ou não, bem como de iniciar a ação penal, é discricionária da polícia. Do mesmo modo, a decisão de continuar a acusação de parte do Ministério Público também é de sua discricionariedade, sendo que o Judiciário não interfere nela.475

469 DELMAS-MARTY, 2000, p. 166-7. 470 RANGEL, 2003, p. 168.

471 CHOUKR, 2001., p. 72.

472 DELMAS-MARTY, op. cit., p. 153. 473 LOPES, 2009c, p. 62.

474 BASTOS, 2004, p. 73.

Característica importante do modelo da Inglaterra é a valoração da prova colhida no tribunal, não havendo uma busca da verdade real.476 Isso decorre da vigência de um sistema acusatório. Na fase judicial, há rígida separação nas funções de acusar e de julgar. É estabelecida uma relação triangular entre as partes e o Juiz. As partes – acusação e defesa - enfrentam-se em um contraditório, sob a arbitragem do Juiz. Imagem de enfrentamento cara a

cara entre as partes traduz a ideia de igualdade de armas entre elas, na qual cada uma possui

os mesmos meios de prova.477

Essa mesma ideia da igualdade de armas se aplica à fase preliminar, uma vez que há o entendimento de que a investigação e o exercício da ação penal não devem estar concentrados em um só órgão. Desse modo, instituições diferentes devem existir e atuar na persecução criminal: uma dirigida à investigação, a polícia, e outra para atuar na acusação, quando instaurada a ação penal.

Na visão dos legisladores ingleses, o investigado/réu ficaria em visível desvantagem em relação ao acusador, caso este pudesse conduzir as investigações com vistas à futura pretensão acusatória na ação penal. Outro argumento contra o acusador de conduzir as investigações é evitar a autopromoção dos acusadores – que se viu na França e Itália – diante da mídia.

Desse modo, o sistema da Inglaterra aparece, até certo modo, como um modelo curioso, mormente para os brasileiros que, em qualquer área, pouco conseguem fazer sem base legal escrita e sem ingerência estatal, mormente em termos de aplicação da justiça. No entanto, apesar de tais características, não se tem notícia de que aquele sistema seja pior do que o do Brasil ou do que o de outros países europeus.