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O termo circunstanciado e os juizados especiais criminais

3.2 OS MODELOS DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR

3.2.3 Investigação policial

3.2.3.3 O paradigma constitucional de investigação criminal no Brasil

3.2.3.3.3 O termo circunstanciado e os juizados especiais criminais

A partir do comando constitucional da CF/88, foi possível a criação dos Juizados Especiais, tanto para pequenas causas cíveis como para o julgamento dos delitos tidos como de menor potencial ofensivo (Lei nº 9.099/95 e 10.259/01).

No que diz respeito à investigação prévia, apontou a lei que, em sede de Juizados Especiais Criminais, ela existirá sob o título “Da Fase Preliminar”. O artigo 69 da Lei 9.099/95 normatiza que, nos casos de delitos de menor potencial ofensivo, será procedido um termo circunstanciado.527

Lavrado o termo, este será imediatamente encaminhado ao Juizado Especial Criminal, com as partes, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários. O Juizado tem a competência para o julgamento das infrações de menor potencial ofensivo (contravenções penais e crimes apenados com no máximo dois anos, ainda que previsto procedimento especial – art. 2.º, parágrafo único, da Lei n.º 10.259/2001).528

Desse modo, foi criada outra forma de investigação preliminar, simplificada em relação ao inquérito policial. Nesse caso, o inquérito policial é dispensado e substituído por um procedimento investigatório mais simples.529 O termo circunstanciado também é lavrado sob a presidência da autoridade policial (Delegado de Polícia), no qual constará uma narração sucinta dos fatos, bem como a indicação da vítima, do autor do fato e das testemunhas, em número máximo de três.530

Mas ao contrário de algumas interpretações, o termo circunstanciado não trata apenas de um simples boletim de ocorrência, conforme explica Tovo531:

527 BRASIL (Leis, etc.). Código Penal, 2008, p. 778.

528 FELDENS; SCHMIDT, 2005a, p. 29-30. O autor critica a confusão legislativa em torno da definição de crime

de menor potencial ofensivo e alcance da aplicação da Lei 9.099/90. “Em manifesta inversão de sentido, a Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso), a pretexto de oferecer uma proteção jurídica mais eficaz às pessoas enquadradas em sua disciplina legal (os idosos) previu, em seu art. 94, que “aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código de Penal e do Código de Processo Penal”.

529 GIACOMOLLI, 2006, p. 308. O autor entende que, entre as inovações da sistemática aplicada pela Lei

9.099/95, “Também a autoridade policial não está obrigada a investigar estas infrações, restringindo-se a fazer uma constatação fática da notitia criminis e enviá-la ao Judiciário – termo circunstanciado.

530 SAAD, 2004, p. 89.

531 TOVO, Paulo Cláudio; TOVO, João Batista Marques. Princípios de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen

Acentue-se que o termo circunstanciado da ocorrência não é mera notícia da infração penal, mas um verdadeiro substitutivo ou sucedâneo do inquérito policial, com a mesma finalidade precípua, isto é, ministrar elementos para que o titular da ação penal possa acusar o autor do crime ou da contravenção (compare-se o art. 77, § 1º, da lei em tela com o art. 12 do Código de Processo Penal).

O procedimento previsto não pode ser traduzido em mero boletim de ocorrência pelo fato de que poderá embasar a transação penal, com a composição dos danos, a proposição de pena não privativa de liberdade – restritiva de direitos ou multa. Também servirá de embasamento para o oferecimento da denúncia oral, queixa ou solicitação de arquivamento da persecução criminal. O boletim de ocorrência é mero informe, enquanto o termo circunstanciado traduz-se em conjunto de informações. Dessarte, o termo circunstanciado terá de ser instruído de forma mais completa que o simples boletim de ocorrência.532

Como se trata juridicamente de investigação criminal, tem o termo circunstanciado de estar submetido ao paradigma constitucional vigente. Mas essa interpretação errônea sobre o procedimento como mero boletim de ocorrência - e não procedimento investigatório - levou a uma situação complicada aqui no Rio Grande do Sul.533

Através de ato do Poder Executivo, fora delegado o poder à Brigada Militar para realizar expedientes investigatórios, em relação aos delitos de menor potencial ofensivo. Tal fato já se perpetua há vários anos, ao arrepio das normas constitucionais e legais vigentes.

A respeito desse tema, esclarece Lopes Jr.534:

A lacuna surge na elaboração do termo circunstanciado, nos delitos de menor potencial ofensivo, previsto no art. 69 da Lei 9.099. Não se trata nesse caso de inquérito policial, mas de um procedimento muito mais simples e célere, o mero termo circunstanciado, que nada mais é do que uma narrativa circunstanciada do ocorrido e a indicação do autor, vítima e testemunhas. Com base nesse argumento, algumas polícias militares dos Estados estão realizando os termos circunstanciados (um ensaio do “ciclo policial completo” em que a mesma polícia que atende a ocorrência realizaria investigação).

532 SAAD, 2004, p. 90-1.

533 RANGEL, 2003, p. 211. Na verdade, o problema da invasão das atribuições da Polícia Judiciária pelas

polícias militares não é só problema do Rio Grande do Sul. No Brasil, hodiernamente, em especial no Estado do Rio de Janeiro, há casos de exercício da polícia de atividade judiciária sendo feito pela Polícia Militar, em verdadeira afronta à Constituição, inclusive há delegacias de polícia que já contam com certo número efetivo de policiais militares realizando investigação criminal como se integrantes da Polícia Judiciária fossem. A matéria é constitucional e não pode ser tratada em nível estadual, mas sim somente pela União, através do Congresso Nacional. A lotação de policiais militares em Unidades de Polícia Judiciária, por decreto ou por qualquer outro ato normativo do Governador do Estado é manifestadamente inconstitucional. Os atos da administração pública devem obedecer ao princípio da legalidade (art. 37 da CRFB).

Além desse equívoco sobre a natureza jurídica e conteúdo do termo circunstanciado, esse poder indevidamente conferido aos milicianos é sustentado pelo argumento de que quando a lei 9099/95 fala da “autoridade policial” não se refere ao Delegado de Polícia, mas a qualquer agente que tenha poder policial. Isso é um erro muito grave, tratando-se de mais uma violação do paradigma constitucional de investigação criminal.

Nesse sentido, cabe salientar, novamente, que, de acordo com disposto no art. 144 § 4.º da CF/88, é atribuição da Polícia Civil, que é dirigida pelo delegado de polícia, a apuração das infrações penais, exceto as militares. Por outro lado, o art. 144, § 5.º, também da CF/88, dispõe que compete às polícias militares o policiamento ostensivo.535

Essa é também a visão de Saad536:

O termo circunstanciado deve ser lavrado por autoridade policial, segundo determina o art. 69, caput, da Lei 9.099/1995. A autoridade policial é o delegado de polícia de carreira, que exerce as funções de polícia judiciária, nos termos do art. 144, § 4.º, da Constituição da República, muito embora há quem alargue esse conceito, entendendo que o policial militar é também autoridade policial.

Da mesma forma, a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul define a apuração das infrações penais como atribuição da Polícia Civil, no seu art. 133, “caput”. O mais curioso é o conceito de autoridade policial tenha sido “flexibilizado” justamente aqui no Estado. Isso porque no parágrafo único desse mesmo artigo da nossa Constituição Estadual há a definição expressa do Delegado de Polícia de carreira, como autoridade policial, cargo que é privativo de bacharéis em Direito.537

535 MARQUES, 2000, p. 158-9; MORAES, Bismael B. (Coord.). O papel da polícia no regime democrático.

São Paulo: MAGEART, 1996, p. 653. Remetemos o leitor as definições feitas das funções policiais pelos dois autores, em momento anterior do texto.

536 SAAD, 2004, p. 91-2. A autora refere que o provimento 758/01 do Conselho Superior da Magistratura do

Estado de São Paulo estatuiu que, para fins da Lei 9.099/95, a autoridade policial pode ser tanto agente público do policiamento ostensivo, como investigatório. Segundo ela, tal provimento recebeu aguçadas críticas, tais como: “(i) trata-se de ato administrativo inexistente, ou nulo, porque emanado de autoridade incompetente; (ii) seu objeto e conteúdo são impróprios, porque cuida de atividade policial, e a finalidade pretendida não decorre de lei alguma; (iii) é inválido por regular procedimento especial penal, o que não pode ser feito por provimento; (iv) é inconstitucional por atribuir função de polícia judiciária a servidor público militar; e (v) é inaplicável na prática, em razão das peculiaridades que poder surgir, como a condição feminina, a inimputabilidade do autor do fato entre outros”.

537 RIO GRANDE DO SUL. Constituição do Estado do Rio Grande do Sul: promulgada aos 3 de outubro de

1989. 3. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 54. “Art. 133 – À Polícia Civil, dirigida pelo Chefe de Polícia, delegado de carreira da mais elevada classe, de livre escolha, nomeação e exoneração pelo Governador do Estado, incumbem, ressalvada a competência da união, as funções de polícia judiciária e apuração das infrações penais, exceto as militares. Parágrafo único – São autoridades policias os Delegados de Polícia de carreira, cargos privativos de bacharéis em direito”. Grifos nossos.

O entendimento de Lopes Jr.538, pelo menos quanto às polícias militares, é que elas não têm legitimidade para realizarem qualquer espécie de investigação preliminar, excetuado o inquérito policial militar:

Daí pensamos que a investigação preliminar em sentido amplo (do inquérito policial ao termo circunstanciado) deve estar a cargo da Polícia Judiciária e/ou do Ministério Público. Constitui uma indevida invasão de atribuições permitir que polícia militar (policiamento preventivo/ostensivo) desempenhe o papel de polícia judiciária (verdadeira encarregada da investigação). Assim, que a polícia judiciária é o órgão encarregado do inquérito, não resta dúvida. Os problemas que se apresentam atualmente são: Essa titularidade é exclusiva? Pode o Ministério Público investigar e instruir o seu próprio procedimento administrativo pré-processual?

Releva salientar ainda que o art. 92 da Lei no 9099/95 indica explicitamente que se aplicam a esta norma as disposições do Código de Processo Penal no que não forem incompatíveis. Então, para efeitos processuais, não só do Código, como de todas as demais normas processuais, consideramos autoridade policial o Delegado de Polícia. Essa interpretação é tranquila, motivo pelo qual, obviamente, aplica-se a Lei no 9099/95, uma vez que as expressões são idênticas.

Por isso, causa estranheza que o termo “autoridade policial”, da Lei no 9099/95, e somente nesse caso, seja interpretado de forma diversa daquele disposto em vários momentos no Código de Processo Penal, uma vez que são idênticas as expressões. A questão é que pelo modelo constitucional de investigação criminal existente no Brasil, a polícia ostensiva não pode realizar qualquer apuração de fato criminal, exceto se forem da esfera militar.539

Mas além dessas questões, há o problema do prejuízo causado à investigação, quando o termo circunstanciado é realizado por policias militares, conforme observa Lopes Jr.540:

Essa sistemática tem demonstrado alguma eficácia nos crimes de mínima gravidade e complexidade, mas de outro lado, fracassa nas situações mais complexas pela falta de preparo técnico e conhecimento jurídico dos policiais militares. Isso tem conduzido a situações absurdas. Ainda, em outros casos, o atendimento policial no local, com a lavratura de termo circunstanciado ali mesmo, sem sequer condução de agressor e vítima para a Delegacia de Polícia, tem-se mostrado um estímulo para a sensação de impunidade e até para a violência de menor lesividade, principalmente a violência doméstica e entre vizinhos.

538 LOPES JR., 2008, p. 242.

539 RANGEL, 2003, p. 211. Vale trazer as próprias palavras do autor: “A vedação é para a polícia preventiva

ostensiva fardada que não pode realizar investigação criminal de delitos já ocorridos, exceto se forem militares”.

É bem verdade que o tema encontra divergência doutrinária e jurisprudencial. Entretanto, não podemos esquecer que a investigação criminal tem um duplo enfoque constitucional. Um, porque é expressamente prevista e normatizada no texto constitucional; dois, porque diz respeito à restrição de direitos e garantias individuais. Portanto não é cabível, nessa seara, interpretações que alarguem prerrogativas, no sentido de atacar os Direitos Humanos Fundamentais.

Dessarte, sob o enfoque do paradigma constitucional de investigação criminal, o termo circunstanciado somente pode ser realizado pela Polícia Judiciária, sendo a autoridade legítima para instaurá-lo e instruí-lo o Delegado de Polícia, conforme determinam as Cartas Magnas – federal e estadual.

No entanto, situação fática da instauração de expediente investigatórios por soldados da Brigada Militar, particularmente no Rio Grande do Sul, segue indiferente a todos esses argumentos contrários. Conforme os argumentos apontados, temos a convicção de que tal situação consubstancia atividade inconstitucional, que fere direitos e garantias individuais, que são fundamentos do Estado Constitucional de Direito.541