• Nenhum resultado encontrado

2. Um estranho no espelho: relações entre a dança e o teatro

2.1 Cruzamentos entre a dança e o teatro no tempo e no espaço

Ao longo da história das Artes Cênicas, desde as primeiras manifestações artísticas do ser humano, dança e teatro se relacionam de diferentes maneiras. Se alternando entre salões de palácios, palcos de teatros, manifestações populares nas ruas, dentre tantos outros exemplos,

as duas linguagens ora se aproximavam, ora se distanciavam, desenvolvendo assim algumas características peculiares e outras comuns entre si.

Para essa pesquisa, interessa especialmente perceber que a partir do século XIX, começaram a ser traçados pela cultura ocidental os limites de uma separação formal entre as duas linguagens. Foi então que “a divisão dos gêneros, em Drama, Ballet e Ópera tornou-se definitiva, e cada um deles começou a levar uma vida independente no universo do espetáculo” (GUINSBURG, 2001, p. 280).

Até meados do século XX, essa divisão foi mantida e aprofundada fazendo com que dança e teatro ocupassem campos bastante distintos. Como afirma Strazzacappa (2012), na Europa e na América, teatro e dança são considerados duas categorias diferentes de arte, e essas categorias, ainda que não sejam opostas, requerem formações específicas. Coerente com essa concepção, a dança foi sempre considerada a arte do movimento, e o teatro, a arte da palavra.

É importante destacar que essa divisão é fruto da cultura ocidental e de uma determinada época histórica pois como nos aponta Barba & Savarese (1995, p.12):

A tendência de fazer uma distinção entre dança e teatro, característica de nossa cultura, revela uma ferida profunda, um vazio sem tradição, que continuamente expõe o ator rumo a uma negação do corpo e o dançarino para a virtuosidade. Para o artista oriental esta distinção parece absurda, como teria sido absurda para artistas europeus em outros períodos históricos [...].

E os autores complementam a ideia:

O leitor não deveria surpreender-se se eu uso as palavras ator-bailarino e dançarino indiscriminadamente, nem porque me movimento com uma certa indiferença do Oriente para o Ocidente, e vice-versa. Os princípios da vida que procuramos não são limitados pela distinção entre o que definimos como teatro, dança ou mímica [...] (ibid).

Corroborando com esta ideia, Ibsen Rasmussen [atriz do Odin Teatret36] afirma que discutir “a diferença entre o teatro e a dança é somente um jogo de palavras”. Para ela, pouco importa a classificação que se possa dar ao que ela faz, se é dança ou teatro; o importante é continuar a interpretar com o mesmo domínio corporal de sempre (STRAZZACAPPA, 2012, p.56).

No Brasil, a partir de meados dos anos 80, começaram a surgir experiências cênicas que buscavam diminuir a distância existente entre o teatro e a dança. Se, por um lado, o teatro passou a dar mais importância ao corpo, por outro, vemos cada vez mais espetáculos coreográficos invadidos por textos. A expressão “artista cênico” se tornou cada vez mais

36 O Odin Teatret foi fundado por Eugenio Barba, em 1964, em Oslo, na Noruega. Em 1966 transferiu-se para a

Dinamarca, e se transformou em Nordisk Teaterlaboratorium. Atualmente possui 25 membros que provém de dez países e quatro continentes. Fonte: www.odinteatret.dk

comum, uma vez que caminhamos para uma forma de arte na qual não há distinção formal entre as linguagens artísticas espetaculares, mas sim uma complementaridade (ibid).

Como afirma Fernandes (2006), há muito tempo já não se pode falar em entidades puras, isoladas, separadas do contexto e do resto do mundo. Na pós-modernidade a regra é a contaminação e a simultaneidade de tempos históricos. “Em meio à desmaterialização, quem quer fazer arte a partir do corpo – e não apenas com o corpo, tem migrado para as fronteiras: o artista plástico para a performance, o dançarino para a dança-teatro, o ator para o teatro-físico” (ibid, p. 374).

O que não quer dizer que os artistas da dança devam, obrigatoriamente, se aproximar do teatro e vice-versa. Dança e teatro, enquanto duas linguagens distintas, possuem estruturas e elementos que podem muitas vezes os aproximar. Mas também possuem estruturas que podem se organizar de maneiras diferentes como é o caso de suas formas de treinamento e processos de criação.

Eu visualizo essa relação entre a dança e o teatro como água e areia à beira-mar. A fronteira entre as duas é muito tênue e indefinida. Varia com o balanço das ondas, com o sobe e desce das marés ou de acordo com o ponto de onde observamos. É preciso ultrapassar a fronteira, entrar com seu corpo dentro d’água para descobrir que na verdade não há fronteira, pois a areia continua embaixo dos seus pés...

2.1.1 Klauss Vianna: um exemplo brasileiro de entrelaçamento entre a dança e o teatro

Não pretendo apresentar aqui a trajetória artística ou discutir a importância de Klauss Vianna enquanto bailarino, coreógrafo e/ou professor. Isso muitos pesquisadores já se propuseram a fazer e o fizeram muito bem37. A mim, neste momento, interessa entender a importância de Klauss Vianna enquanto “exemplaridade da rara ação cênica de um homem que na dança pertencia ao teatro e no teatro pertencia à dança (NAVAS apud TAVARES, 2010, p.18).

37 Apresento aqui algumas indicações de livros que têm como tema vida e obra de Klauss Vianna:

MILLER, Jussara. A Escuta do Corpo. Sistematização da Técnica Klauss Vianna. São Paulo: Summus, 2007. AQUINO, Dulce. “Klauss Vianna: conexão da dança brasileira com a modernidade”. Revista de arte e cultura. Piracema. N° 01. Rio de Janeiro: Funarte/Ibac, 1993. p. 110-8.

MANSINHO, Martha. Trajetória de Klauss Vianna na dança brasileira – entrevistas. Florianópolis: UFSC, 1990. NEVES, Neide. O movimento como processo evolutivo gerador de comunicação – Técnica Klauss Vianna. São Paulo: PUC, 2004.

Através de suas ações intradisciplinares, ele direcionou seu olhar ao corpo do intérprete - independentemente se bailarino ou ator – procurando perceber e questionar os gestos e movimentos humanos em sua profundidade. Inicialmente trabalhando com o ballet clássico, mas questionando-o continuamente, dedicou grande parte de sua vida profissional ao trabalho com bailarinos.

Ao se mudar para a cidade do Rio de Janeiro, em 1965, Klauss se voltou para o teatro ocasionando um entrelaçamento entre este e a dança. Foi nesta sua fase carioca (1965- 1980), que desenvolveu um trabalho transversal entre as duas áreas, com resultados renovadores para ambas. De acordo com Tavares (2008), Klauss Vianna proporcionou uma espécie de transferência, em que os fundamentos do movimento, pesquisados até então no corpo do bailarino, foram instrumentalizados para o corpo do ator.

Tudo isso era uma riqueza enorme, porque meu trabalho com os atores modificava minhas aulas com os bailarinos no dia seguinte. Ao mesmo tempo, essas aulas influenciavam a coreografia que faria para o teatro, mais tarde. O teatro, à noite, modificava a dança, de dia. E tudo se juntava numa coisa só (VIANNA, 1990, p. 33). Sua obra coreográfica para o teatro, se apresenta através de trinta e duas montagens, nas quais ele interveio ao longo de vinte e um anos (1967-1988), como coreógrafo, preparador corporal, ator e até mesmo diretor. Sua cronologia teve marco inicial na montagem de A Ópera de Três Vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill, sob a direção de José Renato, em 1967, no Rio de Janeiro. E o marco final foi no espetáculo Risco e Paixão, de Fauzi Arap, sob a direção de Francisco Medeiros, em São Paulo, em 1988 (TAVARES, 2008).

No seu primeiro contato com o corpo do ator, em A Ópera de Três Vinténs, Klauss percebeu a inoperância da coreografia tal como trabalhava na dança. O que fez surgir “a necessidade de um trabalho específico para atores, com o qual pudessem trabalhar tanto a flexibilidade quanto o ritmo, a percepção visual e auditiva, o tato, o contato e a criatividade” (RAMOS, 2007, p.73). Algo completamente novo para a época, como ele próprio salienta muito bem:

Era muito comum acontecerem coisas assim, um diretor de teatro imaginar uma movimentação em um espetáculo e chamar alguém ligado à dança para criar alguma coisa. Mas era sempre essa dancinha e foi nesse sentido que aceitei o trabalho. Mas não fiquei nisso e, outra vez, quis ir mais longe. É claro que os atores não tinham a linguagem da dança: por isso fiz algumas marcações e o resultado foi tão diferente do comum que, pela primeira vez, um crítico de teatro chamou a atenção do público para a existência de um trabalho corporal em um espetáculo de teatro” (Vianna, 1990, p.32).

A Ópera de Três Vinténs foi apenas o marco inicial de um entrelaçamento entre as áreas da dança e do teatro carioca, o que Klauss Vianna promoveu intensamente na década de

setenta. A função de “preparador corporal” foi de extrema importância para a redefinição do corpo do ator no teatro brasileiro.

De acordo com o levantamento de Tavares (2008, p. 21), Klauss Vianna batizou seu trabalho no teatro com, aproximadamente, oito termos distintos, a saber: “coreografia”, “dinâmica corporal”, “expressão corporal”, “preparação corporal”, “direção corpo/espaço”, “direção”, “criação e direção da técnica corporal” e “direção e movimentação corporal”. O que, para a autora, ilustra como Klauss sempre esteve em contínuo processo de reinvenção de seu ofício.

Em 1980, Klauss Vianna se mudou para a cidade de São Paulo, onde continuou promovendo novos entrelaçamentos entre as artes. Seja na direção da Escola Municipal de Bailados (1981-1982), onde inseriu aulas de dança criativa e moderna, seja como diretor artístico (1982-83) do Teatro Municipal (atual Balé da Cidade). Neste último, introduziu aulas de teatro e criou um Grupo Experimental com bailarinos contemporâneos, nos moldes do GRTOP - Groupe des recherches théâtrales de L’Ópera de Paris (1975-1980) - dirigido por Carolyn Carlson (TAVARES, 2014).

2.2 Sobre as relações entre a dança e o teatro no CEFAR: o que vi, ouvi e