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3. Um olhar por trás das cortinas como se forma um artista cênico?

3.2 O pensamento pedagógico do CEFAR

3.2.2 Os professores e seus diferentes estilos de ensino

Conforme anunciei previamente, acredito que voltar o olhar para a prática pedagógica dos professores é um dos caminhos para a compreensão da proposta pedagógica da escola como um todo. No caso do CEFAR, encontrei entre os professores diferentes formas de conceber o ensino, a aprendizagem, os estudantes, as aulas... a prática docente como um todo.

Ouvi professores afirmarem que não queriam dar aula porque desejavam uma carreira performática; que nem todos professores são (ou precisam ser) artistas; que ensinar é sua vocação; que sempre foi fascinada pelo ensino de dança; que só acredita no ensino de um professor que também esteja atuando artisticamente; dentre tantas outras declarações. Somente

elas seriam suficientes para uma longa discussão sobre ensino de arte (BARBOSA, 1985; 1986; 2006), formação de professores (ARROYO, 2002; STRAZZACAPPA, 2006), conceito de artista-docente (MARQUES, 1996), dentre outros conceitos que daí poderiam ser extraídos.

Porém opto por apresentar duas situações vivenciadas durante o período da pesquisa de campo que trazem em si algo que interessa bastante a essa pesquisa: as diferenças na forma de ensinar dança e de ensinar teatro. A seguir descrevo essas situações:

Em uma aula de repertório clássico, para as três turmas de Dança juntas, em um momento de pausa dos exercícios, a professora45 estava falando com um aluno quando este, por algum motivo que não percebi, virou para trás antes dela terminar sua frase. Essa atitude foi o suficiente para que ela gritasse enfurecida: “Uma aula de clássico exige hierarquia! Virar de costas para o professor, nunca!!!”

Na mesma semana, assistindo a uma aula de teatro para a turma do 1º ano, em que o tema era a criação de partituras corporais, uma aluna estava improvisando a partir das orientações do professor Luiz Garrocho, enquanto o restante da turma observava. Ela demonstrava bastante dificuldade, porém tentava seguir à risca as instruções do professor. Em um determinado momento, ele já irritado falou: “Não seja tão obediente! Não é para me obedecer tanto assim! Procure seu próprio caminho!”

Acredito que as duas situações relatadas podem ser analisadas a partir de diferentes aspectos. Porém, me interessa aqui, analisá-las a partir da perspectiva de que tipo de aluno cada um desses professores pretende formar. Paulo Freire afirma que, qualquer que seja a atitude que um professor tome, seja ele eficiente ou não, responsável ou licencioso, rígido ou amoroso, sempre haverá marcas desse professor na vida do aluno (1996, p.73).

Partindo desse pressuposto, eu pergunto: o que uma professora está ensinando, estimulando, propiciando, quando faz questão de gritar para um aluno que na aula dela existe hierarquia e que ela, professora, é quem ocupa o posto mais alto? Qual o discurso subliminar desta atitude?

Para mim, é impossível não relacionar tal situação com o pensamento de Michel Foucault (1991), sobre as implicações que o poder que as pessoas investidas de autoridade (neste caso, a professora) detêm podem acarretar na formação do pensamento e da personalidade dos que estão sob seu comando. A postura da professora demonstra ainda uma séria confusão entre autoridade e autoritarismo (FREIRE, 1996).

45 Manterei o anonimato desta professora pois ela não participou das entrevistas e, portanto, não assinou o termo

Em uma outra aula dessa mesma professora, após ela apresentar uma síntese de sua opinião sobre como tinha sido a avaliação bimestral, ela passou a palavra aos alunos, mas ninguém quis falar. Um silêncio constrangedor permaneceu na sala por algum tempo. Em minhas anotações no diário de campo, nesse momento fiz referência a uma passagem do livro de Klauss Vianna:

Uma sala de aula não pode ser isso que vemos, onde a disciplina tem algo de militar, onde não se pergunta, não se questiona, não se discute, não se conversa. Com isso, a tradição do balé se perde em repetições de formas, onde todo o trabalho é feito aleatoriamente (VIANNA, 1990, p.24).

Essa professora pode até argumentar que gostaria de ouvir o que os alunos têm a dizer, que deu abertura para que eles falassem, etc. Mas não me surpreende que eles não tenham querido falar. O estudante precisa se sentir acolhido, respeitado, para conseguir se expressar. Perguntar se alguém quer falar alguma coisa não é suficiente para despertar o desejo (e a coragem) de um estudante se pronunciar. Paulo Freire (1996) nos lembra que ensinar exige saber escutar. E escutar vai muito além de ouvir...

Principalmente se tratando de uma aula de ballet, essas situações que presenciei não me surpreendem. Nas últimas décadas autores que discutem o ensino de dança vêm denunciando a forma autoritária e hierárquica como grande parte das aulas de dança acontece. Essa atmosfera reprodutivista e autoritária colabora para a formação de alunos passivos, obedientes, sem qualquer tipo de autonomia. Como afirma Stinson (1995), em muitas aulas de dança, o silêncio e a passividade são atitudes esperadas e estimuladas nos alunos. O depoimento do estudante de Dança, Mateus Alves, ilustra bem a questão:

[...] falta os alunos questionarem. É muito por medo. Tem um medo muito grande porque tem também essa coisa da repressão. Qualquer coisinha que você fala, gera um...cresce! Você acaba sujando seu nome e aí você nunca mais vai ser escolhido para nada. Então acaba preferindo sofrer calado. Você não tem uma relação de troca entre o aluno e o professor. É muito carente isso aqui.

Voltemos à segunda situação descrita, a qual vivenciei na aula de teatro. O que ensina, estimula, propicia, um professor que pede para ser desobedecido? As palavras do próprio professor, em um momento de sua entrevista, me ajudam a responder a essa pergunta: “Não faça como eu faço, faça comigo. Eu estou atuando também na orientação. Então faça comigo, vamos juntos” (Luiz Garrocho).

A meu ver, a atmosfera de respeito que uma atitude assim cria, favorece a participação ativa dos estudantes. Estimula não só a coragem para que manifestem suas opiniões

(como de fato acontecia praticamente em todas as aulas), como também colabora para que a relação professor-aluno seja mais equilibrada.

Isso fica evidente no depoimento da estudante Luíza Rodrigues, quando em sua entrevista se refere especificamente a esse professor:

Ele compreende cada aluno, sabe da dificuldade, mas não deixa a turma perceber que ele sabe. Um professor neutro, com muita coisa para passar, está estudando ainda, vai passando tudo. Dedicado, não se atrasa, está sempre ali disposto, acessível, disponível. Se você quiser é possível até ter aula com ele fora do horário.

Outros depoimentos de outros professores da escola de Teatro também trazem exemplos de uma visão mais abrangente de ensino, na qual o professor não é o detentor do saber, mas sim um colaborador no processo de construção do conhecimento. Dentre eles, destaco dois:

“[...]eu não quero ensinar nada a ninguém. Eu acredito que as coisas estão dentro de você. Eu vou me colocar como um provocador, eu vou criar um espaço para que você possa descobrir tudo que você tem” (Gil Amâncio).

Hoje eu trabalho como professor uma relação mais compartilhada. Como é que a gente chega numa escolha de obra juntos, como a gente chega na escolha de uma dramaturgia juntos, como é que chega na decisão dos elementos de pesquisa de linguagem juntos (Lenine Martins).

Essa ideia de ensino que coloca o estudante no centro do processo de aprendizagem nasce de uma “compreensão de educação que busca enxergar, cada vez com mais clareza, as particularidades do aluno, em vez de concentrar-se num modo supostamente ideal de transmissão de conteúdo” (PIRAGIBE in TELLES, 2013, p.8). E não se pode dizer que tal proposta seja algo excepcionalmente novo pois Klauss Vianna, na década de 1990, já alertava: “A relação do tipo professor-guru-onipotente e aluno-fiel-subserviente pode ser muito prejudicial ao trabalho que se está desenvolvendo, assim como à própria vida” (VIANNA, 1990, p.101). E exemplificava através de sua prática docente, o respeito ao desenvolvimento individual de seus alunos. Estimulava “o dançar de cada indivíduo, anunciando que dança é um modo de existir; é, portanto, vida, um corpo não automatizado, um corpo que se escuta [...]” (MILLER, 2007, p.21).

Refletindo sobre as diferenças que verifiquei na prática pedagógica entre os professores das duas escolas, levanto a hipótese de que tal diferença esteja amalgamada na herança histórica que o ensino de cada uma das linguagens carrega. Enquanto o ensino de dança nasce ainda no século XVI, atrelado à execução de uma técnica específica – o ballet clássico – e baseia-se na forma como os passos que compõem seu vocabulário devem ser executados, é

só na virada do século XIX para o XX que o fazer teatral rejeita a encenação tradicional e exige do ator “um longo período de formação, que justifica por si só a existência, em nossos dias, das escolas de arte dramática” (BORNHEIM, 1992, p. 21).

No Brasil, a primeira escola de dança foi fundada em 1927, já com intenções profissionalizantes pois seria o embrião do Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro (PEREIRA, 2003). Já as primeiras práticas de teatro-educação surgem junto às escolinhas de arte de Augusto Rodrigues, disseminando-se aos poucos em colégios experimentais, escolas de magistério, etc. E de acordo com Santana (2002), “como ainda não havia tradição em termos de ensino da linguagem teatral ocorreu a difusão massiva do espontaneísmo” (p.248).