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1. Meu quintal é do tamanho do mundo

1.3 A organização escolar do CEFAR

1.3.1 O processo de seleção

A admissão para todos os cursos do CEFAR se dá por meio de um processo de seleção anual regulamentado por edital. Para se inscrever, o candidato tem que estar cursando ou já ter cursado o ensino médio e cumprir alguns pré-requisitos específicos para cada área.

Para o curso técnico em Dança, o candidato tem que ter no mínimo quatro anos de estudo de dança clássica e três anos de dança contemporânea, ser aprovado nas avaliações fisioterápica, técnica e artística, assim como na entrevista. São oferecidas vinte e cinco vagas. De acordo com o edital25 são avaliadas as características físicas e posturais dos candidatos assim como suas habilidades técnicas e artísticas. Faz parte da prova técnica e artística a apresentação de duas variações: uma de dança clássica (estipulada pela escola) e uma de dança contemporânea (de livre escolha do candidato). Não está divulgado no edital qual a nota mínima

21 Mais informações no site: www.coltec.ufmg.br/tu/#!/ 22 Mais informações no site: www.pucminas.br/escoladeteatro

23 Informações sobre a regulamentação dos cursos técnicos profissionalizantes no Brasil encontram-se como Nota

de fim de capítulo.

24 O CEFAR oferece também os cursos livres de nível básico de dança, música e iniciação teatral. Porém, por essa

pesquisa tratar especificamente dos cursos técnicos profissionalizantes, apenas estes serão apresentados e discutidos. Mais informações: www.fcs.mg.gov.br

25 Edital 03/2014 da Fundação Clóvis Salgado disponível em:

para aprovação. É informado apenas que “O CEFAR reserva-se o direito de não preencher todas as vagas disponíveis, caso não haja classificação de candidatos, de acordo com os requisitos exigidos (Fundação Clóvis Salgado, Edital 03/2014, p.8)”.

Tradicionalmente as vagas para o curso de dança não são preenchidas em sua totalidade. Apesar de vários dos professores entrevistados se mostrarem contrários à essa política excessiva de corte, as turmas dificilmente chegam a 20 alunos (em 2014 a turma do primeiro ano tinha apenas 10 alunos matriculados). Sobre esse baixo índice de aprovação no processo de seleção, a professora de técnica clássica Maria Clara Salles comenta:

“Eu participo do processo de seleção todos os anos. Todo ano eu ponho mais gente do que eles querem. Dizem que eu sou muito generosa. Porque eu acho que a gente não tem bola de cristal. Eu, na minha opinião, acho que todas as vagas deveriam ser preenchidas. Por quê? É tão ampla a gama! As vezes a menina não é uma bailarina maravilhosa, mas as vezes ela vai ser uma professora maravilhosa. Eu acho que essa história da gente ter bola de cristal e de conseguir analisar que aquela menina vale a pena e a outra não, é muito doloroso”.

A então coordenadora da escola de dança, Joana Wanner, em entrevista, também se mostrou incomodada com o fato das vagas não serem totalmente preenchidas:

“(...) eu sou dessa opinião, assim, que a gente está escolhendo alunos para passarem por um processo de três anos. E a gente tem que contemplar um número maior de pessoas, a gente tem que oferecer mais oportunidade sim. Eu acho que não se pode ser tão exigente até porque a gente se surpreende com eles”.

É interessante notar que na fala da professora Maria Clara, ela cita: “Todo ano eu

ponho mais gente do que eles querem”. Em uma primeira análise, podemos imaginar que “eles” se

refere à coordenação do curso. Porém, a coordenadora também se mostra contrária ao fato de não preencherem todas as vagas. Fica então a pergunta: quem são eles? O grupo de professores mais antigos? O mercado de trabalho? Um ideal imaginário?

As exigências da avaliação fisioterápica também podem aparecer como um fator determinante para o número excessivo de corte dos candidatos. Nessa avaliação são realizados testes de força, flexibilidade, mobilidade articular, entre outras coisas, conforme descrito:

Avalia flexibilidade, mobilidade articular, se a pessoa tem algum desvio de coluna; o formato do pé: se é um pé plano, chato, o arco do pé; tem avaliação de força muscular, principalmente do membro inferior, que é a maior exigência da dança clássica. É para a gente fazer uma triagem do candidato, ele pode ser: apto, não apto, apto com restrições. E aí a gente vai observar essas restrições no desenvolvimento dele na prova prática. (Coordenadora da escola de Dança in RESENDE, 2011)

Verifica-se nesse tipo de processo de seleção uma supervalorização dos requisitos técnicos e físicos em detrimento do artístico. A coordenadora conta com pesar sobre o primeiro

processo de seleção que participou como banca, onde essa questão de técnica versus arte se evidenciou: “(...) o primeiro processo seletivo, eu achei muito radical! (...) eu lembro em especial de

uma menina, que não tinha muita técnica clássica de fato, mas eu lembro dela ser uma grande artista” (Joana Wanner).

Esse tipo de pensamento vai ao encontro do exposto por Noverre26 em suas “Cartas sobre a dança”, escritas no século XVIII:

É raro, senhor, para não dizer impossível, encontrar homens totalmente bem-feitos. Por esta razão, é comum defrontarmo-nos com uma multidão de bailarinos mal construídos, nos quais frequentemente percebemos defeitos de conformação, que os recursos da arte dificilmente corrigem. Seria talvez uma fatalidade própria da natureza humana querer sempre distanciar-nos do que convém, levando-nos a seguir uma carreira na qual não conseguimos nem caminhar, nem sustentarmo-nos? É a cegueira, a ignorância a respeito de si mesmo que origina essa multidão de maus poetas, de pintores medíocres, de comediantes sem imaginação, de músicos barulhentos, de bailarinos ou saltimbancos detestáveis; o que quer dizer, senhor, de todas essas espécies de homens insuportáveis. Esses mesmos homens, se colocados em seus devidos lugares, teriam sido úteis à humanidade, bem merecido sua pátria. O verdadeiro talento, fora do lugar e da posição que lhe é destinada, desperdiça-se, torna- se, dependendo do caso, mais ou menos ridículo. (MONTEIRO, 1998, p.309). No caso do curso técnico em Teatro, para se candidatar a uma das vinte vagas, o candidato tem que ter no mínimo um ano de estudo de teatro e/ou apresentar experiência na área. O processo seletivo está dividido em quatro etapas que são minuciosamente descritas no edital, incluindo seus objetivos:

- Prova escrita de conhecimentos gerais e conhecimentos de leitura e escrita: têm como objetivo avaliar os níveis de conhecimentos dos candidatos, com relação aos contextos socioculturais, à compreensão de textos e à redação; - Prova prática de atuação: o candidato deverá apresentar uma cena escolhida entre duas indicadas pela escola. Serão avaliados: compreensão do texto encenado, utilização do espaço e do tempo cênico, clareza gestual e vocal; - Prova prática de corpo/voz: constará de exercícios motores, rítmicos e de composição cênica. Serão avaliadas a disponibilidade e a capacidade expressiva do candidato;

- Período de avaliação coletiva: o candidato participará de aulas que envolverão a leitura de textos, exercícios de voz, corpo, som e jogos de

26 Jean-Georges Noverre (1727-1810) foi um bailarino francês e mestre de ballet da Ópera de Paris que questionou

através de suas “Cartas sobre a dança” o caráter da dança estruturada em função dos “divertimentos” (pequenas óperas com coreografias) apresentados nas cortes europeias. Criando o chamado “balé de ação”, ele interessou-se em dar maior expressividade à dança separando-a das outras artes envolvidas nos “divertimentos” (Monteiro, 1998).

improvisação. Critérios de avaliação: compreensão das atividades propostas, disponibilidade para o trabalho, atenção, prontidão, relacionamento com o grupo, habilidade no desenvolvimento das questões concretas da cena. A coordenadora da escola, Letícia Castilho, explica a necessidade das quatro etapas:

A necessidade de ter mais de uma etapa é exatamente porque tem mais de uma coisa para se observar. Geralmente a gente precisa ver a cena que esse ator cria, a gente tem que ver esse ator em coletivo trabalhando corporalmente – improvisando com o outro, questões de ritmo, o corpo dele como é, voz também.

Sobre o detalhamento do processo de seleção divulgado no edital, considerei a fala de uma aluna muito interessante: “Eu li muito o edital, li várias vezes e isso dá mais ou menos uma noção do que eles buscam. Mas foi só isso. Eu não conhecia nada a não ser isso. Nunca nem tinha vindo aqui” (Gabriela Fernandes). Ela cita o edital como uma forma de entender o curso, o que despertou seu interesse em estudar lá mesmo não conhecendo os professores nem tendo acesso a demais informações.

Quanto ao preenchimento das vagas, assim como no curso de Dança, consta a informação que o CEFAR reserva-se o direito de não preencher todas as vagas. Porém, nesse caso, são divulgadas as notas mínimas para aprovação e critérios de classificação. Outra informação que considerei bastante interessante é sobre os critérios para avaliação das provas práticas, em que consta: “Não serão critérios para julgamento nas provas práticas aptidões estabelecidas segundo padrões de “certo vs errado”, uma vez que, no campo das Artes, tais padrões não se aplicam” (Fundação Clóvis Salgado, Edital 03/2014, p. 15). Reconheço aqui uma postura importante que se reflete durante o processo de formação artística dos estudantes.

Diferentemente do curso de Dança, as vagas para o curso de Teatro são sempre preenchidas em sua totalidade, inclusive para atender à enorme demanda de inscrições. De acordo com a coordenadora da escola, Letícia Castilho, o número de inscritos no processo de seleção já chegou a 500. No ano de 2013 foram 180 inscritos disputando as 20 vagas para o ano letivo de 2014. No que diz respeito ao processo de seleção em si, Walmir José, primeiro coordenador da escola, nos conta que tal processo já passou por diversas modificações:

Essas [modificações] sempre foram no sentido de auferir aquele aluno que tivesse maiores qualidades, maior potencial técnico-artístico. Sempre foi procurar selecionar aquele que tivesse maior habilidade. Mas às vezes a gente, como professores que estão na banca, a gente se deixa levar pela intuição também. ‘Ele’ não tem habilidade técnica como aquele mas parece que tem um desejo mais definido, uma vontade maior. A gente às vezes se guia pela intuição!

O professor Lenine Alves, que já ocupou o cargo de coordenador, também comenta que na época em que estava na coordenação, o processo de seleção passou por mudanças todos os anos: “A gente tentava de alguma maneira pensar em que tipo de aluno (ou como) deixar entrar”.

A participação como banca na seleção dos estudantes é vista como algo difícil, mas necessário, por boa parte do corpo docente. O professor Luiz Garrocho exemplifica bem essa sensação em seu depoimento:

Eu acho que você só pode ser o menos injusto possível. Você nunca vai ser justo. Acho que são ossos do ofício. Detesto fazer isso. Não tenho prazer nenhum. E vou falar a verdade: é dificílimo! Até hoje eu não tenho a fórmula. Eu gostaria que fosse assim: a pessoa é passível de aprendizado, de interação, de receber orientações e se transformar com elas? Se sim, eu acho que deveria ser selecionada. Mas nós precisaríamos de muito mais ferramentas e condições para fazer isso e não é o foco isso.

É interessante notar que a dificuldade em conseguir ser aprovado no processo de seleção – muitos estudantes relataram que só conseguiram entrar depois de tentarem duas ou três vezes - é entendida positivamente. Para a grande maioria, o fato do processo de seleção ser bastante disputado, de certa forma reflete a boa qualidade da escola:

Porque eu acho que assim como as melhores faculdades (PUC, UFMG), por ser um processo seletivo muito rígido, então provavelmente a escola é muito boa (Júlia Alves).

Aí eu ouvi falar que o Palácio das Artes tinha um curso muito bom, que era muito difícil de entrar, tinha 4 etapas (Luciano Magno).

Sendo um dos objetivos desta pesquisa averiguar as possíveis diferenças no processo de formação entre os estudantes de teatro e os de dança do CEFAR, não posso deixar de apontar a diferença no tipo de processo de seleção adotado pelas duas escolas. Enquanto a escola de dança exige que o candidato tenha um mínimo de quatro anos de ballet clássico e três anos de dança contemporânea, já fazendo uma pré-seleção antes das inscrições, a escola de teatro aceita a inscrição de candidatos com apenas um ano de prática. Enquanto o processo da escola de dança tem como primeiro corte de candidatos uma avaliação física, não averiguando nenhum tipo de conhecimento teórico, a escola de teatro utiliza como primeiro critério de corte uma prova teórica de conhecimentos gerais e escrita. Evidencia-se aí a escolha de perfil de aluno desejado. O que vai refletir diretamente na postura e atuação desses estudantes durante os três anos de formação.