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4. O corpo que sou versus O corpo que tenho

4.1 Corpo como interface entre a dança e o teatro

4.1.2 Percepções de corpo no teatro:

“[...] daquele corpo que representa, daquele corpo que engendra o teatro” (Prochno, 1999, p.17). Foi a partir do século XX que o corpo passou a receber uma maior atenção ganhando um lugar especial na cena teatral. Muitas obras passaram a ser realizadas através da construção de partituras corporais onde “uma dramaturgia corporal se interpõe a uma narrativa linear ou a uma dramaturgia textual pré-estabelecida” (COHEN, 1998). Antes disso, de acordo com Pavis (2003, p. 75): “O corpo não passava de um relé54 e de um suporte da criação teatral

(...). O corpo ficava, então, totalmente avassalado a um sentido psicológico, intelectual ou moral; ele se apagava diante da verdade dramática, representando apenas o papel de mediador na cerimônia teatral”.

52 A dança-teatro (expressão traduzida do alemão Tanztheater) é conhecida sobretudo através da obra de Pina

Bausch, porém tem sua origem no Folkwang Tanz-Studio, criado em 1928 por K. Joos, que foi professor de Baush e proveio, ele próprio, da Ausdruckstanz, a dança expressionista alemã. A esta corrente da criação coreográfica contemporânea pertencem outros coreógrafos que, apesar de não utilizarem este termo, são conhecidos como coreógrafos abertos à teatralidade e favoráveis à descompartimentação das artes cênicas. Os principais nomes são: J. Kresnik, R. Hoffmann, G. Bohner, M. Marin, J.C. Galotta, J. Nadj e K. Saporta. (PAVIS, 1999)

53 Foi no século XIX que ocorreu o auge dos balés românticos com uma estética que idealizava a figura feminina

e estabelecia o uso da sapatilha de ponta como acessório importante para a obtenção do efeito de leveza e imaterialidade das personagens em cena. Essa estética é a responsável pela imposição de um modelo de corpo ideal: mulheres magras, longilíneas, graciosas (MOURA, 2001).

54 Corpo-relé: corpo como suporte para a palavra, para o texto. Está em segundo plano. Opõe-se a esse conceito o

Quando o teatro se distancia da centralidade do texto como guia das suas criações, e passa a entender o corpo como uma entidade plástica multidimensional, torna-se necessário fazer o ator consciente da expressividade de seu próprio corpo e da necessidade de treiná-lo.

Sobre este treinamento, Stanislavski, em seu Manual do ator, explica:

(...) O ator deve movimentar-se com uma facilidade que enriqueça a impressão por ele criada, ao invés de desviar-se daquilo em que deveria estar concentrado. Para fazê-lo, ele deve ter um corpo saudável e em pleno desempenho de suas funções, capaz de um controle extraordinário. (...) Os exercícios contribuem decisivamente para o melhor funcionamento de nossa estrutura física, tornando-a mais móvel, flexível, expressiva e, até mesmo, mais sensível. (...) Os exercícios físicos ideais são aqueles que corrigem as deficiências da natureza. (...) Acima de tudo, é importante que não falte intenção a nenhum dos movimentos realizados durante os exercícios

(STANISLAVSKI, 1997, p.61).

Grotowiski, por outro lado, acredita que a preparação do ator corresponde à liberação dos impulsos vivos do corpo: “[...] impulsos quase invisíveis, que tornam o ator irradiante, que fazem com que mesmo sem falar, fale continuamente, não porque quer falar, mas porque é sempre vivo” (2007, p.169). Apresenta ainda o conceito de corpo-memória no qual analisa o deslocamento do foco da memória emotiva para a pesquisa sobre as ações físicas. Um corpo que não tem memória, que não bloqueia a memória, mas que é a memória em sua materialidade. Segundo Grotowski, “É necessário dar-se conta de que o nosso corpo é a nossa vida. É no corpo como um todo que estão inscritas todas as nossas experiências, sobre a pele e sob a pele” (citado por BITENCOURT, 2013, p. 272).

Meyerhold, em uma conferência proferida em junho de 1922, onde se propunha a falar sobre o ator do futuro e a biomecânica, cita duas condições imprescindíveis ao ator: 1) possuir uma capacidade natural à excitabilidade refletora (a excitabilidade é a qualidade adquirida através do treinamento corporal e indispensável para que o ator jogue em cena); 2) o ator deve ser fisicamente gracioso, ou seja, deve ter boas proporções, estabilidade e saber onde encontra o centro de gravidade de seu corpo a qualquer momento. E indica: “A fisicultura, a acrobacia, a dança, a rítmica, o boxe, a esgrima – são todas matérias úteis. No entanto, elas só podem se tornar utilizáveis quando forem entendidas como extensões do curso de biomecânica, matéria principal e essencial para todo e qualquer ator” (MOSCHKOVICH in TAVARES e KEISERMAN, 2013, p. 167).

Pode-se perceber que independente do método desenvolvido para a preparação corporal do ator, o corpo tornou-se algo fundamental para o trabalho desses diretores. Tanto os russos Stanislavski e Meyerhold, quanto o polonês Grotowski, e mais tarde o italiano Barba, preocuparam-se com a expressividade do corpo – como o corpo pode expressar melhor aquilo

que se passa no interior do homem? (STRAZZACAPPA, 2012). E apesar da utilização de métodos diferenciados acredito que, em essência, todos procuraram proporcionar uma maior organicidade aos movimentos do ator.

Para Stanislavski a 'organicidade' significa as leis naturais da vida 'normal' que, através de uma estrutura e composição, aparecem sobre a cena e se transformam em arte, enquanto que para Grotowski organicidade indica algo como o potencial em um corpo humano de uma corrente quase biológica de impulsos que vêm do 'interno' e vão para o cumprimento de uma ação precisa (RICHARDS citado por BURNIER, 2001, p.53).

Assim como o termo organicidade, o termo energia também pode ser encontrado em diversos textos sobre o corpo do ator. Para Burnier (2001), as ações físicas são o meio pelo qual o ator entra em contato com suas energias potenciais. Podem ser consideradas, portanto, como o aspecto corpóreo e físico das energias interiores do ator.

Ainda sobre esta energia, que por muitos pode ser considerada vital para o trabalho do ator, aponta Barba (1995, p.13):

O corpo torna-se carregado com energia porque dentro dele se estabelece uma série de diferenças de potencial, que proporciona um corpo vivo, fortemente presente, mesmo com movimentos lentos ou em imobilidade aparente. A dança de oposições é dançada no corpo antes de ser dançada com o corpo. É essencial entender este princípio da vida do ator-bailarino: a energia não corresponde necessariamente ao deslocamento no espaço.

Em alguns casos essa energia aparece como fator diretamente relacionado com a presença cênica55 do ator. Sobre esta relação, afirma Ryngaert (1985, p.29): “nem sempre ela [a presença] existe através das características físicas do indivíduo, mas sob forma de uma energia irradiante, cujos efeitos sentimos antes mesmo que o ator tenha agido ou tomado a palavra, no vigor de seu estar ali”.

Esta delicada relação entre preparação corporal, energia e presença cênica está muito bem explicitada nas palavras de Machado (2006, p.46):

O trabalho corporal sistematizado gera transformações qualitativas no trabalho de criação e interpretação do ator. Este aprofunda seu conhecimento acerca de seu corpo e seus recursos de expressão, intensifica sua presença cênica, promove e instaura o estado de atenção e prontidão necessários à percepção das sensações, dos estados corporais, das idéias, dos pensamentos e das imagens que o corpo produz. O ator desenvolve a consciência e compreensão de sua ação em cena.

Assim como na dança, é importante salientar que apesar de haver uma tendência na prática teatral atual para o que é chamado de teatro experimental (PAVIS, 2003), ainda é

55De acordo com Pavis (1999) “ter presença” é, no jargão teatral, saber cativar a atenção do público e impor-se; é,

também, ser dotado de um “quê” que provoca imediatamente a identificação do espectador(...) Segundo a opinião corrente entre a gente de teatro, a presença seria o bem supremo a ser possuído pelo ator e sentido pelo espectador. A presença estaria ligada a uma comunicação corporal “direta” com o ator que está sendo objeto de percepção.

possível encontrar outros tipos de manifestações teatrais como o teatro tradicional, o teatro comercial, dentre outros. Para essa pesquisa, a diferença em relação à dança é que no CEFAR há sem dúvida um predomínio de uma visão contemporânea de teatro.