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4. O corpo que sou versus O corpo que tenho

4.1 Corpo como interface entre a dança e o teatro

4.1.1 Percepções de corpo na dança

“O corpo em êxtase, o corpo em dança, o corpo em ação, restaura a luz. Ele não pensa pois é

48 De acordo com Pavis (1999, p.27), as artes da cena estão ligadas à apresentação direta, não adiada ou apreendida

por um meio de comunicação, do produto artístico. O equivalente em inglês (performing arts) dá bem a idéia fundamental destas artes da cena: elas são “performadas”, criadas diretamente, hic et nunc, para um público que assiste à representação. O teatro falado, cantado, dançado ou mimicado (gestual), o balé, a pantomima, a ópera são os exemplos mais conhecidos.

pensamento e nesse pensamento age, cria e, portanto, resiste. Ele não possui memória, mas é memória e nessa memória recria, restaura e, portanto, se atualiza” (Ferracini, 2006, p.13).

O fato de ter passado alguns séculos desvinculada da palavra, fez com que a dança se apropriasse do corpo como seu principal meio de expressão. Mesmo assim, o entendimento que foi dado a este corpo se difere enormemente quando passeamos pela história da dança49.

O tratamento que a dança acadêmica (ou ballet clássico) deu ao corpo, trabalhando- o todo o tempo na posição en dehors, transferindo o peso do corpo para a ponta dos pés modificando desta forma os pontos de equilíbrio do corpo, e codificando todos os movimentos em passos pré-estabelecidos, fez com que essa dança fosse considerada por muitos como uma dança mecanizada. Noverre, dançarino e coreógrafo que viveu no século XVIII, foi um dos primeiros a criticar esta mecanização do ballet clássico:

[...] filhos de Terpsícore, renunciai às cabriolas, aos entrechats e aos passos muito complicados [...] Essa combinação de passos numerosos bem ou mal encadeados, esse desempenho difícil, esses movimentos complicados despojam, por assim dizer, a dança de palavras. Mais simplicidade, mais doçura, maior suavidade nos movimentos dariam ao bailarino mais facilidade de retratar e de exprimir-se; poderia dividir-se entre o mecanismo dos passos e os movimentos próprios à expressão das paixões. A dança livre das pequenas coisas poderia então dedicar-se às grandes (MONTEIRO, 1998, p.65).

Apesar de todas as críticas apontadas por Noverre, foi só no início do século XX que a dança conseguiu desvincular-se de uma técnica rígida dando ao corpo maior liberdade de expressão. A catalisadora dessa revolução foi Isadora Duncan que ao dançar apenas com uma túnica cobrindo o seu corpo e de pés descalços, almejava libertar o corpo do bailarino do excesso de roupa, o que, em sua opinião, impedia o fluxo do movimento. Ela afirmou:

Assim como o nu é a coisa mais sublime em toda a arte, deve ser a coisa mais sublime na dança, pois dançar é o ritual religioso da beleza física. A dançarina do futuro terá de adaptar a dança à simetria do corpo. Terá de ter um corpo perfeito50, que voltará a ser reconhecido como coisa bela, pura e sagrada. E nesse corpo deverá expressar-se harmoniosamente, na excitação da dança, um espírito grande e livre. Só dessa maneira a dança poderá ser elevada ao seu lugar entre as belas artes (DUNCAN, 1996, p.29). A geração que se seguiu, conhecida como os pioneiros da dança moderna foi de extrema importância para estabelecer uma nova forma de tratar o corpo. A pesquisa de novos movimentos tendo como foco a estrutura do próprio corpo, pode ser considerada como uma das principais características deste grupo composto em sua maioria por norte-americanos.

49 Somente será abordada a história da dança cênica – dança concebida enquanto espetáculo cênico, que se

diferencia, em essência, da dança folclórica ou social, as quais possuem outras finalidades.

50 A expressão “corpo perfeito” aqui utilizada por Isadora Duncan, nada tem a ver com o conceito de “corpo ideal”

Se antes o corpo movia-se verticalizado, alinhado e harmônico, em busca de um movimento ideal, estruturado por uma organização espacial geométrica estabelecida a priori como um jogo de regras fixas, na dança moderna o espaço passa a ser concebido a partir do corpo do bailarino, cujos movimentos ditam as direções e as fronteiras. [....] As primeiras gerações da dança moderna enfatizavam especialmente o papel expressivo do movimento (PRIMO, 2006, p.105-106).

Um nome importante desta geração é a dançarina e coreógrafa Martha Graham que, em 1927, chegou ao seu princípio de contração e relaxamento, o qual estava diretamente ligado à respiração. Em seus trabalhos o corpo é um todo vinculado: tronco, ombros, rosto, ventre, quadris e pernas formam um todo único. Tantos outros foram os coreógrafos modernos que através de suas pesquisas pessoais de movimento, deram ao corpo novos significados em cena. Dentre eles destacam-se: Loie Füller, Ruth Saint-Dennis, Ted Shawn, Doris Humphrey (Bourcier, 1987).

Concomitantemente ao desenvolvimento da dança moderna nos Estados Unidos, tinha início um movimento que veio a ser conhecido como dança expressionista alemã. Em termos de descobertas sobre o corpo e exploração das possibilidades do mesmo, não se pode deixar de citar Rudolf Laban. Considerado um dos primeiros estudiosos da dança, acreditava que cada dançarino deveria ter a possibilidade de explorar, conhecer, sentir e expressar sua subjetividade enquanto dançava. Desenvolveu um cuidadoso estudo do movimento conhecido como coreologia51, o que viabilizou um maior conhecimento dos elementos estruturais da dança tendo o corpo como seu elemento fundamental.

A segunda metade do século XX trouxe para a dança novas possibilidades de tratar o corpo através das propostas de coreógrafos de dança contemporânea (ou dança pós-moderna) e de dança-teatro. Sobre a relação que a dança pós-moderna estabelece com o corpo, nos aponta Banes (1987, p. 144):

Se o balé vestiu o pé em sapatilhas de cetim, ocultando a superfície do corpo e sua força de trabalho atrás de uma cobertura que representava a feminilidade macia e graciosa, e se a dança moderna bravamente despiu o pé para simbolicamente assegurar seu contato com a terra, a musa da dança pós-moderna usa tênis, não simbolizando nada, provendo a rapidez e a leveza das sapatilhas de ponta, mas também o conforto, mantendo uma distância fria e humana da terra enquanto garante que os pés fiquem firmes no chão.

A dança passa a questionar os padrões formais e estéticos de um bailarino reprodutor de técnicas e partituras, interessando-se muito mais por sua potencialidade

51 “Coreologia é a lógica ou ciência da dança, a qual poderia ser entendida puramente como um estudo geométrico,

mas na realidade é muito mais do que isso. Coreologia é uma espécie de gramática e sintaxe da linguagem do movimento que trata não só das formas externas do movimento, mas também de seu conteúdo mental e emocional. Isto é baseado na crença que movimento e emoção, forma e conteúdo, corpo e mente são uma unidade inseparável” (LABAN, citado por RENGEL, 2000, p. 35).

expressiva. Nesse contexto encontra-se a dança-teatro52, que tem como sua principal representante a coreógrafa Pina Bausch.

No final do século XX abriram-se novas perspectivas para o trabalho com o corpo, com o aparecimento do vídeo-dança e com o uso das novas tecnologias de comunicação. Tornou-se possível coreografar virtualmente. O corpo pôde ser fragmentado, decomposto, recomposto, reconstruído, remasterizado. A sensação é que o corpo humano parece não ser mais suficiente para dizer tudo o que deve ser dito em cena. Outras fronteiras começaram a ser ultrapassadas (Ferreira, 2001).

Se faz importante ressaltar que essas diferentes formas de entendimento de corpo e de seu processo de treinamento convivem simultaneamente na contemporaneidade. Enquanto alguns artistas da dança exploram ao máximo as potencialidades expressivas do corpo durante seus processos de criação, inúmeras escolas de dança – dentre elas o CEFAR – ensinam o ballet clássico perpetuando uma ideia de corpo vinculada ao século XIX53.