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2 CULTURA E SUAS DIVERSAS COMPREENSÕES

A política cultural, conforme Teixeira Coelho (1997), é entendida como programa de intervenções realizadas pelo Estado, instituições civis, organizações privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da população e promover o desenvolvimento de suas representações simbólicas. Para tanto, desenvolve-se um conjunto

60 RIEVERS, Marina. Entrevista concedida para o projeto Mecanismos de gestão e disseminação

de ações voltadas para a promoção da produção, distribuição e uso da cultura, preservação e divulgação do patrimônio histórico e o ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável.

Assim, a política pública de cultura pode ser compreendida como police, ou seja: um complexo de soluções propostas por atores governamentais e não governamentais para enfrentar problemas públicos (SILVA, GARCIA, LOUREIRO, 2013). As políticas são viabilizadas por meio de normas jurídicas, editais, programas e planos.

As políticas são definidas mediante a compreensão do objeto ao qual estão atreladas. No caso do “objeto” cultura a situação é no mínimo controversa. A ideia de cultura ainda presente no imaginário de expressiva parcela da sociedade tem sua origem em perspectivas eurocêntricas. A noção de civilization desenvolvida na segunda metade do século XIX na França propunha que o homem partia de um estágio primevo em direção a estágios civilizatórios superiores. Desse modo, ser “civilizado” compreende a adoção dos costumes, significados e sentidos cujos modelos encontravam-se no mundo europeu.

Esta visão ainda presente em parte do imaginário coletivo é entendida como “cultura erudita” em oposição àquela designada como “cultura popular”. A primeira é inspirada nos modelos europeus, produzida e apreciada pelas “elites” e pessoas “cultas”; a segunda faz referências às manifestações originadas pelos segmentos populares, compreendida como “folclore” e artesanato. Esta distinção pode ser observada, por exemplo, nos editais de financiamento a cultura lançados pelo governo e/ou pelas empresas os quais privilegiam projetos de grande visibilidade comercial a fim de garantir retorno midiático referente a sua imagem associada a ideia de empresa que investe em cultura.

Nesses editais, assim como nas políticas públicas, é assumido um conceito restritivo que não considera a ausência de hierarquias entre as culturas dos diversos grupos humanos (Mintz, 2010). Segundo Kuper (2001) a cultura pode ser entendida como um sistema ordenado de significados e sentidos, isto é: um sistema simbólico. Em seu interior os sujeitos definem seu mundo, expressam seus sentimentos e ideias e emitem seus juízos de valores surgidos de uma imensa multiplicidade, na qual os costumes e valores são diversificados e entendidos coletivamente. Esta ênfase no coletivo é corroborada por Mintz (2010) ao vislumbrar que o comportamento humano não pode ser compreendido isoladamente, pois o indivíduo tem um caráter eminentemente social e seu comportamento é mediado por meio de símbolos. As culturas humanas são essencialmente compostas pela diferença, o conflito e a heterogeneidade. Essas características encontram-se presentes em todas as construções materiais e imateriais desenvolvidas pelos coletivos humanos. As políticas culturais deveriam,

por conseguinte, considerar estas dimensões a fim de garantir a inserção da multiplicidade e da transformação exteriorizada nos comportamentos, valores e ideias ao longo do tempo.

A noção de multiplicidade se encontra no interior da identidade. A multiplicidade de valores estéticos, morais e éticos estão imersos naquilo que é denominado de identidade. Contudo, estes não estão evidentes ou aceitos por todos de determinado grupo como algo que tenha significado, ou seja, não ocorre a alteridade. Exemplificando, o Recife tem como um dos seus ícones de sua identidade o Frevo e acredita que isto tenha o mesmo valor simbólico para todo o estado pernambucano, contudo, ele não é visto da mesma forma pelos pernambucanos que vivem nos munícipios do sertão. Para estes há outras manifestações que carregam significados que para eles fazem sentido. Isso implica que a busca por uma identidade pode ser uma luta existencial de um determinado grupo social pelo reconhecimento e manutenção de um estilo de vida que pode durar apenas um espaço de tempo.

A vida humana, segundo Ingold (2000), realiza-se simultaneamente em dois domínios: relações interpessoais e relações interorgânicas. Assim, o humano encontra-se sempre em profunda ligação com os objetos e ambientes que cria. As realidades da vida moderna, de acordo Haraway (2000), implicam em redes de relações integradas entre pessoas e tecnologias sem que possamos precisar onde acaba um e inicia-se o outro. A esse complexo de redes integrado por humanos e não-humanos a autora denomina de rede tecnocultural - humanos e máquinas interligados. Propõe, ainda, o conceito de “ciborgue” para definir os humanos enquanto uma coleção de redes constantemente fornecendo e recebendo informação ao longo da linha que constitui os milhões de redes que formam nosso mundo. Desse modo, “Ciborgue” é um organismo cibernético, uma criatura da realidade social e da ficção - imaginativa. Realidade social significa relações sociais vividas; significa a construção política mais importante, uma ficção capaz de mudar o mundo. Exemplificando utiliza a ideia de libertação que depende da construção da consciência da opressão, de sua imaginativa apreensão e, portanto, da consciência e da apreensão da possibilidade.

O binômio natureza e cultura são reestruturados; uma não pode ser mais ser objeto de apropriação ou de incorporação pela outra. As máquinas do século XX tornaram ambíguas as diferenças entre o natural e o artificial, entre a mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que é externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de muitas outras distinções que se costumavam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes. Em lugar das distinções entre natureza e cultura, sujeito e objeto, destaca-se a coabitação. Isto é, diferentes ciências e culturas coabitam entre organismos e máquinas. Alerta que a “tecnologia não é neutra.

Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de nós. Vivemos em um mundo de conexões – e é importante saber quem é que é feito e desfeito”. (HARAWAY, 2000, p. 32).

A noção de seres híbridos, rede e multiplicidade são a tônica das abordagens contemporâneas referentes ao estudo da “cultura”. Para Latour (1994, 2012), há dois conjuntos de práticas que assinalam o conceito de moderno: as práticas de “tradução” e de “mediação”, que permitem compreender o primeiro como a hibridização entre natureza e cultura caracterizando as redes; e o segundo com as práticas de “purificação” que separam os humanos e não-humanos. O autor desenvolve a teoria ator-rede e afirmando que a rede é assistemática, plural, caótica e complexa.

A sociedade, contudo, desde os primórdios cria mecanismos com o objetivo de moldar e pôr em ordem as relações ora com fins de controle ora com fins de entender a realidade minimamente organizada. Mas, colocar em ordem o mundo caótico, complexo e plural é uma tentativa vã e falha. Afinal, as relações sociais são fluidas, provocadas mediante as preferências humanas ou por motivos exógenos (LAW, 1999), e cada ponto da rede pode mover-se como quiser e interagir com diversos pontos sem obedecer hierarquia e controle. O foco nas relações que acontecem na rede é a tônica do texto de Law (1992) para quem as relações são simultaneamente materiais (entre as coisas) e semióticas (entre conceitos).

Devido a esta multiplicidade, Law e Mol (2002) destacam que não há uma ontologia, mas ontologias porque a realidade é múltipla e performática. Mol (2002) traz quatro questões que problematizam esta multiplicidade ontológica, utilizando um exemplo, trazido da saúde, relativo a temática da anemia: 1) Onde estão as opções? 2) O que está em jogo? 3) Há mesmo opções? 4) Como devemos escolher e quem pode fazer e determinar uma política ontológica?

Essas questões propostas por Law e Mol (2002) para refletir sobre a política ontológica podem ser transpostas para a área das políticas públicas culturais: 1) Onde estão as opções de formulação e implementação de tais políticas? 2) O que motiva as escolhas políticas? 3) Quais ideologias, fontes e recursos são mobilizados para tal política? 4) Quem escolhe o sujeito, o objeto e o contexto simbólico que serão privilegiados? 5) Quem determina os objetivos e resultados de uma política pública cultural? 6) Há políticas públicas de cultura que deem conta da multiplicidade?