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Consideramos que a soberania, então, implica um campo, ou seja, uma restrição das possibilidades de circulação – no território dominado – um conjunto finito, mesmo que seja indeterminado, de formas verdadeiras, autênticas e normatizadas de integração. O território submetido, assim, é integrado pelas possibilidades normatizadas de circulação, em que os conceitos devem manter sua integridade, sua identidade, suas fronteiras bem estabelecidas, copulando da forma correta com verbos designados, para que se configurem em atributos, em um conjunto estruturado, uma realidade configurada, mantida por dispositivos – formas de ajuste do fluxo de circulação, jurídicas, tecnológicas, burocráticas e subjetivas, que permanecem invisíveis, ou reconhecíveis apenas por seu efeito. Esta forma de soberania que se configura, segundo a tradição ocidental, como o UM – o Deus Pai – que submete seus súditos a um regime de circulação. As três principais tradições de soberania são, segundo Hardt e Negri (2005b, p. 412) derivadas desse UM, da relação com uma forma de soberania que produz unidade no território. A base da tradição de governo político europeu, como a unidade sobre um território, toma a forma da monarquia, aristocracia e democracia.

Deleuze pensa em modelos de exercício de poder, em que transitamos da sociedade disciplinar, como pensada por Foucault, com dispositivos de confinamento e estruturação dos dispositivos de poder, para uma sociedade de controle, na qual o poder exercido é modulado como um fluxo a céu aberto, e as identidades – antes fixas e disciplinadas – agora se flexibilizam, dando lastro a uma forma de controle baseada no exercício da liberdade, em que justamente a abertura do sujeito é o objeto a ser constrangido (DELEUZE, 1992), tendo, na máquina de Turing – e sua forma universalizante de produzir e circular socialmente representações –, a contraparte tecnológica deste modelo (FRANKLIN; MONTEIRO, 2013). O ponto que devemos destacar é que estas três arquiteturas de exercício da soberania, a sociedade de soberania, disciplinar e de controle, implicam formas diferentes de materialização do conceito, ou seja, exercem sua soberania sobre a circulação dos conceitos, por intermédio de dispositivos diferentes, com uma visibilidade tecnológica que as caracteriza com diferentes máquinas, aqui entendidas, precisamente, como a parte visível dos dispositivos invisíveis que o exercício da soberania sujeita à fisicalidade para constituição de um território, um campo.

A sociedade de soberania – associada à monarquia absoluta –, por condicionar o exercício do poder a uma instância de vontade indecifrável e voluntariosa, exerce o constrangimento do possível a partir da presença de seu soberano, sendo esse de origem divina – o Deus único da tradição ocidental – não lhe cabe nenhuma previsibilidade, nenhuma publicidade de seus atos, que podem ser apenas sofridas como o exercício da autoridade, sedução e proteção. Não há, então, nenhuma regra que se aplique ao grande Pai, sendo este o doador da lei e não seu seguidor. O Pai, como o imaginado por Freud, na horda primeva (FREUD, 1999), institui um poder, transformando seus súditos em iguais, em irmãos, mas não sofre o poder instituído, ou seja, permanece invisível à lei, outorgando-lhe consistência. Presente, mesmo que invisível, mesmo que seja morto, é consistente, fazendo que seus súditos possam circular no território, entre seus irmãos, mantendo a identidade da forma por todos os percursos da cidade.

A sociedade disciplinar – associada à modernidade e aristocracia – limita o poder do rei, apesar de ainda o pressupor. O limite ao poder soberano está na sua racionalização, em sua publicidade, em uma lei escrita e acessível a todos, ou seja, o soberano passa a ser o proletário da lei, no sentido dado por Cabas (2002), em que o soberano, agora, trabalha para tornar consistente o conjunto de regras que governam o mundo. Como o mundo da renascença onde, recém-inventado mundo natural, permite, com a matemática, decifrar a realidade e suas leis ocultas, fazendo com que o mundo moral da idade média ceda lugar ao mundo moderno,

em que a burocracia e a universalidade das leis que controlam o Estado, sejam coextensivas às leis impessoais que governam o mundo. A presença da vontade do soberano, então, é virtualizada em uma lei escrita, pública e impessoal, que controla a circulação, também, dos conceitos, a partir dos dispositivos disciplinares que regulamentam seu ciclo de vida, da autoridade clerical, constituída nos picos das pirâmides disciplinares das instituições, à burocracia baseada na regra escrita e pública.

O mundo natural moderno pode ser pensado como uma das grandes invenções da modernidade. Antes, no mundo clássico, os conceitos eram forjados pelo ato de pensamento dos filósofos e circulavam socialmente pelo intenso debate retórico ocorrido no interior da pólis. Com a redescoberta do pensamento clássico, principalmente Aristóteles, no século X, com a retomada da cidade de Toledo, na Espanha, o ocidente cristão tem contato com um tipo de pensamento que lhe era estranho (BINI, 2010 p. 18-21). Se, por um lado, o cristianismo antigo tinha as premissas da produção de uma universalidade das relações sociais, podendo converter os Gentios sem que esses fossem, antes, Judeus (BADIOU, 2003), por outro, o pensamento de Aristóteles procurava entender a relação dinâmica entre as propriedades dos objetos abstraídos da experiência sensível, um cosmos. A filosofia tomista, então, faz um esforço teológico de integração do pensamento aristotélico, no interior do cristianismo, sintetizando, assim, um mundo onde os conceitos podem ter a predisposição de um trânsito universal pelos reinos, como no cristianismo – daí seu caráter missionário e universalmente evangelizador (e colonizador) –, além de poderem ser alcançados pela razão, como na vida clássica, e não mais pela revelação divina, característica da relação presencial entre Deus e sujeito, típico da sociedade de soberania. A síntese entre essas duas cosmovisões, entre a invenção do universalismo cristão e a abstração experiencial da vida clássica, em suma, cria um novo mundo possível, em que os conceitos poderiam ser universalizados em sua abstração racional, contando com um Deus impessoal e mudo, característico do novo testamento (MILES, 1997), que pede pela interpretação pública e matematizada de seus mistérios, mas nunca se revela pessoalmente, como fazia no velho testamento. O mundo natural surge, então, como uma articulação de universalização de circulação dos conceitos, caracterizando a Europa, desta forma, como portadora das grandes instituições colonizadoras e universalistas. A razão europeia, assim, segue sua expansão institucional colonizadora e universalizante, criando um sistema de soberania que poderia, pela primeira vez, universalizar as relações humanas produzindo uma circulação irrestrita de conceitos, uma vez que estes podem, em uma nova metafísica (SILVA, 2006), transitar livremente, em um amplo contexto impessoal de correlação geométrica, próprio da modernidade.

Com a modernidade, novas instituições tomaram forma na Europa, com uma concepção humana universal, as instituições se formalizaram, com uma descrição pública de suas funções, piramidais, como castelos controlados por uma cúria que conhecia perfeitamente os modos de funcionamento das leis, de uma burocracia que garantia o trânsito dos conceitos pelos territórios, disciplinando e normatizando os corpos. Neste contexto, devemos ressaltar, que as formas universais de controle ainda são modelos predicativos dos conceitos; ou seja, parecidos com o modelo clássico, os conceitos ainda são produzidos como uma articulação hierarquizada de objetos e predicados, a diferença, em resumo, da condição de trânsito pela sociedade da soberania, é que agora este está vinculado ao mundo natural, em uma metafísica moderna, em que os conceitos encontram instituições impessoais, burocráticas, produzindo assim os grandes sistemas de significação, do homem, da história, do sentido. Da biologia à física, esta é a arquitetura que permitiu as grandes árvores classificatórias, esteadas nas condições do mundo natural, na razão experimental, no universo ordenado.

A partir de um conjunto claro de conceitos articulados e hierarquizados, no topo da pirâmide disciplinar, é possível, na modernidade, fazer transitar a identidade dos conceitos por um vasto número de territórios, integrados por um tipo universal de soberania. É neste contexto que encontramos Paul Otlet e sua ideia do Mundaneum, em que um conceito pode transitar por diversas fisicalidades, em diversos “suportes materiais” de modo a preservar sua organicidade (DAY, 2001) nas diversas áreas do campo institucional, ou seja, nas quais o império da lei e suas regras de constrangimento da multiplicidade vigorarem. Assim, poderemos contar com a consistência dos objetos em trânsito, desvinculando, na forma moderna, o conceito de informação de seu suporte físico, com as devidas articulações predicativas. Mesmo que a sua fisicalidade mude, sua materialidade, enquanto construto de instituições sociais que constrangem e permitem sua circulação, os conceitos têm permissão de circulação em um território muito mais amplo e expansivo: todo o mundo natural, compreendido pelas instituições da modernidade. A formalização burocrática e racional do Estado-nação, na modernidade, unifica, integra e normaliza o circuito dos conceitos. Na sociedade de soberania, as coisas mantinham sua consistência pela sua força vital – vis vitae – , uma singularidade que caracterizava suas propriedades outorgando-lhe uma interioridade, de forma a separar os entes em diferentes elementos: a água, a terra, o fogo e o ar, por exemplo. A força unificadora da modernidade, com o conceito de energia, integrou esses elementos, produzindo um conceito unificador de forças (BUCUSSI, 2007). Energia, eletricidade,

economia, informação, conceitos modernos de circulação universal, em um mundo vocacionado à globalização, uma vez unificada sua forma de circulação de conceitos.

O rompimento com a tradição entre a sociedade da soberania e a sociedade disciplinar, entre a presença viva do soberano e sua virtualização por um conjunto articulado de leis escritas universais, não é um movimento que se encerra com a eclosão da modernidade, mas um continuum de prevalência da escritura sobre o corpo, da expansão da soberania pela circulação dos conceitos. Trata-se da aparição de um construto da alma do ocidente – aqui seguindo os passos de Weber (2003) – por assim denominar o movimento que caracteriza a forma de vida ocidental, que vai das formas preferenciais de abstração do saber clássico em Platão e Aristóteles, em detrimento de Heráclito e Anaximandro; chega ao cristianismo paulino, ao inventar uma estruturalidade que a tudo pode incluir – vide o mote de “ama ao próximo, como a ti mesmo” – por meio de um mecanismo transcendental de organização (o deus invisível e silencioso); passa pela modernidade, na invenção do conceito de mundo natural, que pode ser questionado por meio de caracteres matemáticos, ou seja, a matematização do real, criando um mundo onde a organização passa a ser impessoal, e não moral; segue pela invenção dos conceitos de energia, economia, pensamento sistêmico e informação, na qual a diversidade dos entes pode ser contabilizadas por um único valor transcendente, um isomorfismo, característico da teoria geral dos sistemas (BERTALANFFY, 1973).

Esse “percurso” do ocidente, de realização de uma vocação, por assim dizer, de abstrair, universalizar e conjugar suas formas de representação, a ponto de incluir todas as diferenças em um único dispositivo de segurança, inaugurando, com a globalização, uma forma de soberania global, um império (HARDT; NEGRI, 2005a), não em mecanismos globais de estabelecimento de sentido, como o marxismo, a psicanálise e o estruturalismo, mas na produção de uma forma de representação e circulação global do conceito sobre o território. Enquanto, na sociedade disciplinar, o imperialismo impunha uma cosmovisão sobre um povo oprimido, por meio da sujeição de suas organizações ao dispositivo de sentido Europeu, às suas formas de comércio e organização conceitual, no império, mediante uma estruturalidade que abole o sentido – pois trata qualquer diferença como significado possível – não há necessidade de imposição de uma cosmovisão sobre o território ocupado, basta que as diferenças sejam computadas na nova estruturalidade, a nova máquina universal, que faz o que antes parecia impensável. De maneira radical o próprio conceito foi modificado, foi universalizado e representado em um único alfabeto, o código binário, a escritura da máquina de Turing (FRANKLIN et al, 2013).

Enquanto a máquina de Turing e seu alfabeto radical fazem com o sentido a mesma operação que o cálculo diferencial fez com a geometria, ou seja, produz um cálculo monístico capaz de integrar diferentes funções, as atividades humanas são compiladas em movimentos que podem ser resumidos em um cálculo de energia, tempo e informação, sem a interioridade que caracterizava a sociedade clássica, quer dizer, sem um fator de singularidade e interioridade. Em suma, no Império, tudo é reduzido a sua forma universal de alfabeto; por intermédio de dispositivos de segurança que não precisam das qualidades do sentido, de hierarquia entre conceitos, sistemas de árvores de conceituação, como na sociedade disciplinar. Não que não haja hierarquias, mas estas são operadas como diferenças de grau e não diferenças de gênero e espécie, como na sociedade disciplinar. A máquina de Turing, assim, radicaliza os pressupostos energéticos da máquina a vapor, da sociedade disciplinar, integrando todas as operações em um mesmo conjunto de dispositivos de segurança, integrando todos os possíveis intrínsecos aos objetos em um mesmo regime de soberania, global, acêntrico e atemporal. O ciberespaço, enquanto a máquina de Turing em seu estado de completa globalização e ubiquidade, representa a parte visível dos dispositivos contemporâneos, da sociedade de controle, antecipada por Foucault e Deleuze, e realizada na fase líquida da modernidade, em que o sentido não é um atributo imprescindível para o exercício da soberania; pelo contrário, pode ser emulado, enquanto uma diferença de grau em um dispositivo radicalmente universalizante, como uma espécie de cristianismo sob o efeito de anabolizantes.

A máquina contemporânea, enquanto a parte visível dos dispositivos de segurança da sociedade de controle, implica a realização, a operação e materialização da fantasia completa do ocidente – o cristianismo –, de que todos possam ser irmãos equivalentes em um universo regido por um Deus soberano, silencioso e oculto, em que um chamamento pela expressão subjetiva atualize a escolha do súdito, ou seja, em que a liberdade individual, por mais divergente que possa ser, seja reintegrada a soberania do reino. Dada essa propriedade de integração universal, em que todos os reinos são possíveis de serem contemplados, não são mais necessárias nem convenientes as divisões de gênero e espécie, tão comuns na sociedade disciplinar. Assim, a sociedade de controle gradualmente apaga as diferenças e as fronteiras, produzindo híbridos que prolongam e afirmam a soberania do reino, homens-máquina, animais falantes e quimeras tecnológicas, afastando os regimes antigos e aplicando seus dispositivos universais de segurança. Este apagamento das fronteiras disciplinares, frente à consistência da informação nonsense, aparece, então, na materialidade da informação contemporânea, como explica Frohmann (2006), causando um mal-estar nas

instituições modernas. Afinal, como controlar, por intermédio de mecanismos disciplinares, a circulação da informação contemporânea? Sim, podemos escruciar os corpos culpados e expô-los ao escrutínio da condenação pública, mas não estaríamos tocando, sequer por um segundo, em nenhum dispositivo que tornou reais as possibilidades de seus pecados. Seria essa a incrível sedução da máquina contemporânea, que não podemos sequer sonhar em resistir: de permitir ao sujeito uma ação que seja sempre integrada ao reino, por mais que essa o afronte?