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O início da vida clássica é marcado por uma ruptura em seu interior. A filosofia clássica sofre uma espécie de virada em direção à abstração, à identidade (CARNEIRO LEÃO, 2005). A filosofia dos pré-socráticos, com Anaximandro e Heráclito, por exemplo, prestava especial atenção às questões do devir, da mudança dos entes em direção a um destino que não poderia ser resumido a seus atributos, às suas qualidades, e não poderia ser outro senão sua dissipação no curso do tempo. Enquanto Anaximandro via o tempo como uma moral que punia os entes pela individuação, levando a todos, inexoravelmente, à aniquilação da vida, enquanto culpa ao ato de existir; Heráclito retirava a significação moral do devir, pensando a mudança como uma revitalização lúdica amoral da vida. Ambos possuíam uma visão trágica – no sentido clássico –, por fazerem-se sabedores do destino impermanente da vida e de sua inevitável cessação da identidade e permanência da transformação (BITTENCOURT, 2011).

Depois de Sócrates, no entanto, destacando os pensamentos de Platão e Aristóteles, a abstração é privilegiada em termos identitários, e a razão passa a consistir na permanência de essências que poderiam ser formalizadas. Essa racionalidade estaria preocupada, então, com a definição de uma forma para as entidades, algo que as faria permanecer no turbilhão do

tempo, algo “real”. Seja em Platão, com a procura de uma forma perfeita, em uma essência compreensível pela razão, na qual toda a aparição sensível seria uma degeneração de uma ideia pura, nos planos superiores; ou em Aristóteles, que, por meio da razão, poderia abstrair as características fundamentais das coisas e objetivar sua natureza, encontrando assim, sua dinâmica fundamental, em um cosmos ordenado (BARROS-PEREIRA, 2011). Há, nesta virada, no entanto, uma característica fundamental, ao privilegiar as abstrações formalizáveis: a inauguração de uma divisão fundadora do mundo ocidental, a diferença da experiência sensível da experiência inteligível (SOUSA, 2013).

Depois dessa caracterização, o mundo ocidental organizou o conhecer como a experiência inteligível, ou seja, a experiência formal, aquela que pode ser discutida por homens livres, em um estatuto público da razão e da cidade, a pólis. A experiência sensível, agora com o estatuto do indizível, frente a seu devir de evanescência e impossibilidade de aderir ao discurso público, estaria, então, outorgada a uma outra classe, ao fundo. É importante notar que a experiência trágica da vida clássica, desta forma, fica vinculada a estas duas grandes figuras: a forma e o fundo, aos deuses Apolo e Dionísio, respectivamente, como explica Nietzsche (2005). As formas clássicas ganham, assim, uma dimensão trágica em sua aparição ocidental. Se, por um lado, apresentam entidades com essências formalizáveis, em um discurso público racional, por outro, esvanecem na experiência sensível, em que estão sujeitas à corrupção e à degeneração de sua falta de representação na vida dionisíaca. Se o conhecimento, assim, ganha a boa forma de representação circulável na pólis, a experiência sensível, condicionada no tempo, aparece como uma ameaça tangível e sempre à espreita no mundo ocidental, como o devir.

A experiência inteligível, a prioritária no mundo ocidental, devido seu trânsito na esfera pública, da discussão racional, fica condicionada à produção e circulação de conceitos que, em seu modelo aristotélico, é condicionada pela compilação de enunciados particulares verdadeiros, que são generalizados, formalizados e podem circular nas vias públicas, operando mecanismos de inferência, gerando enunciados lógico-formais. O conhecimento, então, em sua via ocidental, um aglomerado hierarquizado de conceitos articulados por predicados (DAHLBERG, 1978) pode circular pelas vias públicas, pela pólis, pelo território dos homens livres, para que possa ser compreensível e argumentado, por homens iguais, produzindo um campo onde o saber é transitável e legítimo.

Mas, o que seria circulável? – poderíamos perguntar. Se o modelo de produção de conhecimento ocidental, movido pelo moto da abstração, não lida com formas singulares de representação, mas só com uma relação de objetos particulares, em um entorno universal

(apenas para a pólis), então, para que sejam conceitos, os objetos precisam, ainda, suportar acidentes, predicações, eventos, para que mantenham suas articulações e hierarquias e, ainda assim, percorram o território, pela mudança de suas predicações (WOLFF, 1999). Os objetos, assim, ganham novos acidentes – verbos – ao longo do campo, que caracterizam e formalizam uma história, no conjunto de suas predicações pelo tempo. Não mais o esfacelamento dionisíaco do devir, mas o agrupamento de predicações ao longo de um tempo apolíneo: o caminho de um circuíto predicativo dos objetos – de identidades – circuláveis por um território, o conceito surge, então, como um agregado articulado de objetos acidentados. O conceito de informação que usamos neste trabalho é este: o trânsito material dos conceitos por um território, enquanto mudança de suas predicações sobre objetos que são feitos permanentes, dado a um entorno de soberania.

E o que seria legítimo? – seguiremos perguntando. Sendo justamente a esfera pública o atributo da experiência inteligível, o legítimo seria sua circulação social – não apenas sua significação –, entendendo que não haveria um conceito para fora da pólis, para fora de um contexto de poder que lhe conceda circulação, concordando com Medeiros (2010), admitindo uma aproximação entre a construção do conceito entre Foucault e Dahlberg – o que nos remete, imediatamente, a questão da soberania, ou seja, o regime de poder que torna possível a circulação das hierarquias predicativas entre os objetos. É importante lembrar, ao seguir as pistas foucaultianas deixadas por Agamben (2002), que o conceito de soberania consiste em uma força de bando, capaz de fazer vigorar uma lei, mas não necessariamente significá-la, quer dizer, distinguiria o que da matéria pode ser considerado a boa cópia, a predicação apta para circular num território, aquela que pode trafegar pela cidade, daquela ilegítima, que, ao comando do soberano, deve ser aprisionada, ou abandonada, ou, simplesmente, não reconhecida e, por isso, carente de trânsito. A soberania constitui, finalmente, para Agamben, na capacidade de produzir-se em uma estruturalidade, não em significar seus produtos de circulação, mas promover o exercício da avaliação deste circuito: a possibilidade de promover o estado de exceção sobre a regra, uma vez que lhe caberia o exercício de dizer o que é o possível.

A soberania, ao produzir uma estrutura de possibilidades e modalidades para a produção de conceitos, um dispositivo de segurança (FOUCAULT, 2008), constrangeria a multiplicidade da experiência sensível, para uma convergência de séries possíveis, integrando a experiência inteligível, característica dos conceitos, a uma organização compreensiva aos mecanismos da cidade. O conceito, dado em um campo composto por uma soberania, então, torna-se componente integrável de um conjunto possível de outros conceitos, assumindo sua

condição de circularidade. Fundamentalmente, com essa regulação de possibilidades, de circulação de conceitos e sua articulação condicionada a um campo de possíveis, este dispositivo de segurança, que nos descreve Foucault, torna-se, então, o elemento primário de entendimento da própria possibilidade da operação do conceito de informação, como se a abordagem social olhasse para suas primas físicas e cognitivas e pudesse, agora, criticar sua própria interioridade. As próprias abordagens da ciência da informação, sobre seu conceito fundamental, seriam, assim, indicadores da mudança do campo que as permite consistência, fornecendo as pistas para entender a sua materialidade (FROHMANN, 2006).

A materialidade da informação, isto é, a admissão do entorno de soberania que lhe permite circulação e consistência, poderia, então, oferecer uma abordagem de entendimento para a tradição fisicista e cognitiva, que, sem retirar-lhes a autonomia, ofereceria um contexto para a pergunta: como a informação mesma poderia ter sido pensada e operada de forma fisicista e cognitiva? Afinal, como isso foi possível? O desenvolvimento desta pergunta nos leva, não obstante, ao enfrentamento das condições de entorno e soberania das diferentes abordagens possíveis para o conceito de informação. Na próxima seção, abordaremos três momentos autônomos – que não são superáveis entre si, apesar de serem hegemônicos em determinadas épocas –, três arquiteturas diferentes, da constituição da soberania e seus dispositivos de segurança.