• Nenhum resultado encontrado

2 DELINEANDO OS CONTEXTOS ESTRUTURAIS

2.1 CULTURA, ECONOMIA E MERCADO NA BAHIA

Salvador, que desde a sua fundação foi criada para ser uma metrópole e elo com outros centros comerciais e urbanos, sobreviveu economicamente das suas funções portuária,

23 Alguns suportes importantes como o recentíssimo Mapeamento da Dança: diagnóstico da dança em oito

capitais de cinco regiões do Brasil (NUSSBAUMER; MATOS, 2016), o Diagnóstico do Audiovisual Baiano (MIGUEZ et al, 2010) e o sistema de consulta a alguns indicadores para a economia criativa da Federação da Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), como postos de trabalho, remuneração e grau de escolaridade (FIRJAN, 2016), oferecem importantes informações sobre os setores artísticos, embora nem sempre ofereçam bases para comparações, uma vez que cada estudo possui diferenças significativas no que se refere ao período, localidades e sujeitos investigados, natureza das fontes e das técnicas de análise de dados.

comercial e administrativa, mesmo quando perdeu a influência em nível nacional. Até meados do século passado, a cidade era muito pouco dinâmica em seu setor produtivo, havendo um clima de relativa estagnação demográfica e econômica. Nesse período, as representações culturais construídas em torno da Bahia remetiam a imagens de lugar provinciano, lento, praieiro, de algum modo pré-capitalista e “parado no tempo” (MARIANO, 2009).

Esse cenário começou se transformar no final da década de 1940, com a descoberta e o início da exploração do petróleo na Região Metropolitana de Salvador (RMS) e com os processos de industrialização, nos anos de 1960 e 1970, a partir da construção do Centro Industrial de Aratu (CIA) e do Polo Petroquímico de Camaçari. Tais mudanças econômicas impactaram também no desenvolvimento demográfico, o que levou Salvador, de forma gradativa, a tornar-se a terceira cidade mais populosa do Brasil (CARVALHO; PEREIRA, 2014).

Do ponto de vista cultural, Salvador possui alguns elementos que a colocariam num lugar privilegiado no cenário nacional: seu valor histórico como primeira capital do Brasil, seu sítio arquitetônico e a singularidade da sua matriz sociocultural, amplamente moldada pela população de origem africana, o que a projetou nacionalmente no campo das artes. Tais elementos também alimentaram um conjunto de representações baseadas no exotismo, nas festividades e no sincretismo religioso (MARIANO, 2009).

Mesmo com esse potencial, as atividades culturais e o turismo contribuíram muito pouco para a vida econômica da cidade até meados da década de 1950. Mesmo quando as ações governamentais passaram a investir no turismo como insumo para o desenvolvimento econômico, Gottschall (1994) identificava que o setor, ainda que conseguisse absorver um contingente significativo de mão de obra, o fazia sobretudo entre trabalhadores de baixa qualificação e remuneração (atendentes, camareiros, garçons, seguranças, faxineiras), com salários muitas vezes inferior aos de setores tradicionalmente de baixo rendimento, como a construção civil e o comércio.

As transformações socioeconômicas ocorridas na segunda metade do século XX, em especial aquelas ligadas à industrialização, também contribuíram para a construção de um novo perfil socioeconômico na cidade, que incluía agora um proletariado mais qualificado, melhor remunerado e com novos hábitos de consumo, inclusive culturais – o que também contribuiu para dar outra feição à cidade.

Nas décadas de 1970 e 1980, do encontro entre uma matriz cultural popular construída de referências tradicionais – diferentes manifestações religiosas e profanas de matriz africana – com novas referências capturadas no campo de lutas sociais de negros norte-americanos e

da afluência de ritmos e referências da diáspora (música caribenha, black music, soul music, reggae), a cidade experimentaria um processo de reapropriação da herança e da cultura negra para a construção da sua autoimagem (MARIANO, 2009; RISÉRIO, 1981).

A força da música e do Carnaval foi capitalizada e apropriada pelas ainda incipientes políticas culturais de Salvador e da Bahia. O governo estadual assumiu, através da Secretaria Estadual de Cultura e Turismo, o papel de “vender” essa imagem da cidade carnavalesca e alegre, destinando recursos para a promoção de artistas baianos da música, em detrimento do escasso investimento em outras linguagens artísticas.

Nesse contexto, de ampliação do consumo e de trânsito de influências socioculturais, emergiram blocos afros e grupos e ritmos musicais locais, que gradativamente vão ocupar o mercado fonográfico e radiofônico local, até então dominado por artistas estrangeiros ou nacionais ligados às grandes produtoras e gravadoras. A música produzida nas periferias da cidade, especialmente a percussiva, passou a ser objeto de interesse para públicos de outras classes sociais (GUERREIRO; MOURA, 2004), ao mesmo tempo em que se formou uma rede de projetos sociais e associações culturais que aposta na formação de crianças, adolescentes e jovens, por meio da arte.

Nos últimos anos, diferentes autores (LAWRENCE; PHILLIPS, 2009; MIGUEZ, 2009; NEWBIGIN, 2010) têm apontado para o crescimento de um setor antes pouco significativo em termos de participação das economias nacionais, que é o da cultura. “Para além de seu valor simbólico e intangível, o setor cultural é constituído de diversas atividades econômicas, que possuem cadeias produtivas próprias e influenciam nos gastos e receitas públicas e privadas” (FGV, 2015).

Termos como economia da cultura, cidade criativa, indústria criativa, profissões criativas e, principalmente, economia criativa ganharam maior visibilidade a partir dos anos de 1990, inclusive como contraposição à consolidada noção de indústrias culturais, marcada por um estigma negativo, que a associa aos movimentos de massificação e mercantilização dos bens culturais (LAWRENCE; PHILLIPS, 2009; MIGUEZ, 2009).

Além da multiplicação de formas de comercialização e difusão da cultura, ocorrem também processos de “culturalização da mercadoria”, ou seja, a crescente agregação de conteúdos simbólicos (marcas, conhecimentos, signos) a bens e serviços não apenas no setor industrial. A chamada economia criativa,24 por exemplo, incluiria, além das artes (visuais,

24 Como trajetória conceitual, a Economia Criativa deriva de temas relacionados a: (1) indústrias criativas convergência entre indústrias de mídia e informação e o setor cultural e das artes; (2) economia da cultura – tentativa de monetização de produtos, bens e serviços culturais; (3) culturalização da economia – quando a

cênicas e performáticas, fotografia, cinema, música), outros segmentos do patrimônio material e imaterial, como museus, centros culturais, livrarias, publicidade, mídia impressa, games, design e arquitetura, que constituem um campo amplo, mas que têm em comum o papel do trabalho da criatividade e da valorização dos insumos simbólicos nos processos de produção, difusão e consumo.

As profissões artísticas e criativas estariam passando por um processo significativo de transformação em termos de visibilidade e de reconfiguração simbólica e social enquanto atividade laboral (ALMEIDA, M., 2012; FERREIRA; RAIMUNDO, 2014). O imaginário construído em torno das artes, muitas vezes, mobiliza desejos e cria expectativas entre jovens, que enxergam no campo artístico uma possibilidade de inserção social e profissional.

Para Ferreira e Raimundo (2014),25 a atratividade de muitas profissões criativas estaria ligada a processos contemporâneos, como a mediatização, a idealização, a profissionalização, a pedagogização e a criativização, que incidiriam sobre elas.

A mediatização – por meio de programas de TV e mídias especializadas (impressas e digitais) que transformam suas atividades e seus atores em objeto de grande visibilidade – também está associada à idealização dessas profissões, que promovem

[...] a construção de uma aura simbólica que as associa sistematicamente a determinados valores expressivos do trabalho tais como criatividade, autonomia, autenticidade, prazer e autoexpressão, assim como a estilos de vida caraterizados pelo glamour, celebridade, fama, ou cosmopolitanismo. (FERREIRA; RAIMUNDO, 2014, p. 5-6).

Essas profissões, antes marcadas pelo autodidatismo ou pela aprendizagem em espaços não formais, também estariam passando por um processo intenso de formalização, tanto dos seus processos educativos (pedagogização), com a estruturação de cursos técnicos e de graduação ou de diversas atividades mais práticas como workshops, quanto do reconhecimento do seu estatuto profissional pelos consumidores e pelo Estado (FERREIRA; RAIMUNDO, 2014).

A última dimensão explorada por Ferreira e Raimundo (2014) presente nessas profissões, a “criativização”, embora já constituinte do trabalho artístico, adquire novas feições atualmente. Ela constitui um “processo de deslocamento de um discurso maioritariamente técnico e prático enformando as práticas dos profissionais, para um discurso

cultura agrega valor a outro setor econômico, contribuindo para sua qualificação, a exemplo do turismo cultural (MARINHO, 2013).

25Ferreira (2015) coordenou o projeto de pesquisa “Tornando Profissões de Sonho Realidade: transições para novos mundos profissionais atrativos aos jovens”, em Portugal, entre os anos de 2012 e 2105, investigando profissões criativas e esportivas (DJs, modelos, chefs de cozinha, jogadores de futebol).

de inovação e de autoria, com a subsequente expansão e multiplicação de formas de fazer diferente destas mesmas práticas” (FERREIRA; RAIMUNDO, 2014, p. 7).

Da mesma forma que a economia criativa se alimenta de muitas das atividades nucleares do campo das artes, diversos outros campos profissionais têm vivenciado processos de “criativização” (ALMEIDA; PAIS, 2012), constituindo uma relação dialógica de trocas e mútuas afetações.

Nesse cenário, apesar de a investigação realizada ter focado em apenas quatro setores de formação (música, dança, vídeo e fotografia), estes dialogam com um entorno formado por outras linguagens, fazendo com que muitos sujeitos ultrapassem as fronteiras das suas áreas de formação inicial. O turismo, a publicidade e o setor de produção de eventos (festas, solenidades, shows) são apenas alguns exemplos de campos nos quais os jovens pesquisados já atuaram.

A dimensão assumida pelas atividades artísticas e culturais na composição da economia brasileira e baiana não são ainda muito precisas.26 No que se refere à realidade da Bahia, Lima e Gottschall (2014) tomaram como referência o Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2007-2010 (IBGE, 2015b) e o Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2011a) para mapear o universo de ocupações e de trabalho na economia criativa baiana, que respondem por 0,99% do total de ocupados do estado.

Essas informações, quando apresentadas de forma agregada, oferecem limites à compreensão da realidade, já que a multiplicidade de ocupações existentes num setor ou no interior de uma mesma profissão não permite conhecer de forma mais aprofundada a situação de Salvador. Ainda assim, algumas informações estão sintonizadas com tendências nacionais e internacionais, como o perfil etário predominante jovem dos trabalhadores do setor, já que 58,70% têm entre 15 e 34 anos de idade (ou 42,42%, dos 15 aos 29 anos), os níveis de escolaridade relativamente elevados, com 45,01% com ensino médio completo e superior incompleto e 19,31% com ensino superior completo, e as grandes variações em termos de renumeração mensal, que oscilaram entre 1,2 salários mínimos para artes visuais e fotografia, 2,9 para dança e coreografia e 4,9 para artes cênicas e cinema. Outras informações apontam para algumas especificidades da realidade da Bahia, como o elevado percentual de 62,25%

26 O último relatório do Mapeamento da indústria criativa no Brasil, de 2014 (FIRJAN, 2014) apontava um crescimento de 69,1% no número de empreendimentos criativos entre os anos de 2004 e 2013. Tomando como base a massa salarial do setor, estima-se que seja gerado um PIB de cerca de R$ 126 bilhões, cerca de 2,6% do PIB total (FIRJAN, 2014). No que se refere à remuneração, o rendimento médio dos profissionais do setor chegou à R$ 5.422,00, em 2013, contra R$ 2.703,00 do trabalhador brasileiro.

dos trabalhadores com carteira assinada e o predomínio de 63,38% de trabalhadores do sexo masculino (LIMA; GOTTSCHALL, 2014).

Assim, mesmo com a crescente participação do setor da cultura na economia baiana e nacional, a inserção socioprofissional de jovens é desafiada por uma série de indicadores de desigualdade social e das limitações em termos de políticas culturais e de organização do mercado de trabalho para as artes.