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4 AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA SOCIALIZAÇÃO ARTÍSTICA

4.3 SOCIALIZAÇÃO NOS ESPAÇOS DO BAIRRO E DA IGREJA

As experiências de socialização familiar não se dão em contextos descolados do local de moradia e das vivências transcorridas no bairro, na igreja e em outros espaços contíguos. A presença e as formas de uso do espaço público, a oferta de equipamentos de lazer e cultura, a atuação de grupos políticos, religiosos e culturais, bem como a proximidade ou a distância de outras áreas da cidade criam possibilidades diversas de vivenciar o cotidiano e as relações com as artes.

Nasce-se e vive-se num bairro, embora raramente a vida se desenvolva confinada nos limites desse espaço. Como salienta Alexandre Almeida (2011, p. 2),

[...] o bairro não é apenas uma demarcação territorial que divide a cidade – servindo para delimitar os espaços urbanos e o controle administrativo dos serviços públicos e municipais – mas, antes de tudo, o bairro é a própria constituição de uma cidade, onde os moradores que nele habitam se identificam, se sociabilizam, criam laços afetivos e sentimentos de pertencimento. No bairro se percebem rituais, práticas habituais, hábitos, e tradições.

Nos bairros populares de Salvador, as experiências de vida são muitas vezes restringidas pela violência e dificuldades materiais que se expressam nas limitações de mobilidade, nas barreiras simbólicas e materiais (geográficas e financeiras) ao acesso mais democrático a serviços e equipamentos culturais. Como a maioria das grandes cidades brasileiras, as zonas centrais tendem a concentrar a maior parte da oferta de instituições culturais e de formação (teatros, museus, galerias, escolas de arte70 etc.).

Especialmente na adolescência, emerge a possibilidade de estender os círculos de convivência para além de contextos mais normatizados como os da família e da igreja, e de que os deslocamentos para outros espaços da cidade sejam ampliados e que levem à incorporação de um número cada vez maior de referências nas experiências socializadoras e de sociabilidade. No entanto, numa cidade econômica e espacialmente segregada como Salvador, as experiências vividas tendem a ser também bastante desiguais.

Entre os entrevistados, Larissa (23, FOT) foi a jovem que viveu mais distante geograficamente do centro de Salvador. Desde que nasceu, mora em Itinga, um bairro bastante populoso e estigmatizado pela violência, que faz fronteira com Salvador. “O meu bairro, tipo assim, ele não era muito explorado, era meio deserto, não tinha muitas coisas, então eu só tinha uma vizinha, que ia para minha casa brincar.” De família evangélica, pôde

70 As três instituições de referência para a pesquisa (Kabum, EDF e CEEP) estão localizadas em regiões centrais da cidade. As duas primeiras estavam instaladas em prédios contíguos, enquanto a escola de música não dista mais do que dois quilômetros das outras.

experimentar participar de algumas atividades culturais na igreja, como dança, canto e violão. Apesar dessa experiência restrita de socialização em Itinga, ela pôde viver outras experiências mediadas pela família na capital. “Eu moro lá, mas eu não sei de nada. Eu sei mais coisas de Salvador do que de lá. Eu não participo de coisa lá não. Eu vivo mais aqui em Salvador.”

Outras duas jovens, Carina (26, FOT) e Maria (27, VID), nasceram e vivem no Subúrbio Ferroviário, tregião ambém bastante distante do Centro de Salvador. Apesar da condição socioeconômica mais limitada, Maria pôde desfrutar mais da vida social dos bairros em que viveu (Mapele, Lobato e Paripe), mesmo reconhecendo e se inquietando com a limitada oferta de atividades culturais e de lazer, como pontua:

Onde eu moro é muito fraco. Lá tem uma igreja que o pastor até falou comigo: ‘Maria, quando você quiser fazer alguma atividade, pode fazer.’ Eu fico desesperada, porque é fraco demais. E aí eu vejo um monte de menino que deveria estar fazendo alguma coisa, mas lá é muito fraco. (MARIA, 27, VID).

Durante a adolescência, começou a circular mais pelo bairro, ir à praia com colegas, até que conheceu alguns projetos sociais implantados na região.

Carina (26, FOT) vive na mesma casa onde nasceu, em Plataforma, e até o final da adolescência teve uma vivência social basicamente ligada à igreja, aos parentes e vizinhos de rua. “Não tinha muito essa relação de tá saindo, de tá participando das coisas que tavam acontecendo no bairro... Existia, mas eu não conhecia, não participava.” No segundo ano do ensino médio, foi estudar em um colégio do Centro da cidade e logo depois ingressou na Kabum, o que considerou uma grande abertura em termos de conhecimento da própria cidade. A Liberdade, conhecida como o bairro de maior população negra de Salvador, também é marcada pela tradição de manifestações culturais, sendo berço de diversas escolas de samba, grupos de samba junino e de alguns dos principais blocos afros da cidade, como o Ilê Aiyê. Ismael (30, MUS), Diego (29, MUS) e Iara (25, DAN) viveram na região e no seu entorno e reconhecem o papel do bairro para sua formação enquanto músicos, como sinalizado: “A questão cultural, musical ali é forte. Tem toda a dimensão ali… Você vê, a Liberdade tem o Ilê Aiyê, tem outros grupos culturais e blocos, e diversos movimentos. Tem algumas escolas que têm a questão da fanfarra, que é forte também.” (DIEGO, 29, MUS).

Diego (29, MUS), mesmo não participando diretamente de atividades formais de aprendizagem nas práticas musicais do bairro, destaca o clima que reverberava. Sua iniciação musical se deu sobretudo na relação com colegas de rua. Em seu discurso predomina a ideia de que seu encontro com a música foi marcado pela casualidade e pela despretensão presentes nas relações de sociabilidade. Na adolescência recorda que foi influenciado pelo que ele

chama de “cultura de massa”, particularmente o forró universitário, que fazia sucesso na época. Começou a assistir alguns shows de vizinhos que tocavam em bares e casas de espetáculo. Assim, ele e alguns colegas se animaram com a possibilidade de tocar em uma banda e criaram seu próprio conjunto, aprendendo informalmente nas trocas de experiências e utilizando revistas especializadas que traziam músicas cifradas.

O outro músico, mesmo criado e musicalmente formado no interior de igrejas evangélicas, também reconhece a importância de ter vivido na Liberdade: “É um bairro musical muito forte, muito forte tanto no sentido religioso cristão, católico, protestante, quanto do candomblé, do Ilê Aiyê que é do Curuzu, que é muito próximo.” (ISMAEL, 30, MUS).71 Sua iniciação musical, apesar de fortemente influenciada pela sua congregação religiosa, que investia na formação de crianças e jovens, extrapolou o espaço da igreja, trocando informações e tocando com colegas diferentes gêneros musicais, como rock, MPB, soul e sertanejo.

Iara (25, DAN), que vive na Liberdade desde os oito anos de idade, mesmo considerando que teve uma infância relativamente reclusa, pôde participar de cursos de dança afro, de desfiles carnavalescos promovidos por blocos afros, como o Muzenza, e ainda formar um grupo de pagode com as primas.

As experiências vivenciadas no bairro, mesmo para quem não participou tão diretamente das práticas artísticas, parecem contribuir para a criação de um ambiente de familiarização e de presença difusa de referências culturais, além de salientar a força que a matriz afro-brasileira tem na vida cultural da cidade.

Lia (26, DAN) e Sidinei (30, DAN), que viveram em bairros predominantemente habitados pela classe média, trazem menos marcas de vivência nas ruas. Os dois também não tiveram experiências religiosas mais intensas, mesmo sendo de famílias originalmente católicas. Ela cresceu em Nazaré, bairro central e bastante movimentado pelo comércio, escolas e rotas de ônibus; já ele passou a infância e adolescência no Rio Vermelho, embora também transitasse pela Chapada, bairro popular onde sua mãe vivia. Essa dupla inserção e sua origem social muitas vezes produziam contrastes: “Eu já me achava estranho naquele lugar, porque a classe social era diferente, eu percebia que havia uma diferença. Talvez eu que me colocasse nessa diferença também. Aí surgia um grupo naquele momento.” Apesar

71 Reis (2012), em sua tese intitulada Sonhos, incertezas e realizações: as trajetórias de músicos e dançarinos

afro-brasileiros no Brasil e na França, por exemplo, destaca o papel que a religiosidade afro-brasileira teve na formação dos percussionistas entrevistados, pela vivência com o ambiente festivo e musical dos terreiros de bairros populares.

dessas limitações em termos de socialização, já que se sentia pouco integrado ao seu entorno social, Sidinei (30, DAN) pôde desfrutar de algumas vantagens de viver num bairro de classe média, que ofertava boas escolas públicas e uma biblioteca.

No Nordeste de Amaralina, bairro onde Murilo (27, VID) cresceu, a música era a linguagem artística dominante no cotidiano. Ele e os colegas, algumas vezes, reuniam-se para tocar samba, como atividade lúdica e despretensiosa:

Essa arte, o samba, que é uma arte da favela, não era uma opção de vida. Quem tocava era porque gostava de tocar, não existia isso de ‘vou fazer música, porque sou músico’, isso como uma possibilidade de ganhar a vida. O pessoal dizia: ‘Não, vou fazer isso e vou trabalhar. Acordar 5 da manhã e vou ser ajudante de obra.’ Porque a maioria é assim, até hoje. No bairro, a maioria na minha rua são músicos, bons músicos, tocam muito, mas... (MURILO, 27, VID).

Além disso, assim como o bairro da Liberdade, o Nordeste é conhecido pela força da cultura de rua, de grupos de samba e pagode, além de outros ritmos. “O reggae era muito forte e é muito forte no bairro. Eu escutava muito Bob Marley, Alpha Blondy, Jimmy Cliff, esse pessoal aí. Samba, ouvia muito Cartola, tinha uma referência de samba muito grande, Adoniran e tal.” (MURILO, 27, VID).

A música também é uma linguagem amplamente compartilhada e tem papel fundamental nas sociabilidades juvenis. Ela faz parte da memória de quase todos os entrevistados como parte das vivências juvenis e das relações de sociabilidade, possuindo uma força semiótica ímpar, ao articular ritmo, corpo, poesia e identidades em torno de processos de fruição e produção culturais (ARROYO, 2013).

As instituições religiosas têm ocupado um espaço merecedor de destaque nos processos de formação artística contemporânea, particularmente da juventude mais pobre que vive na periferia das grandes cidades. Diferentes vertentes de religiões cristãs católicas e, particularmente, protestantes têm investido maciçamente na música como instrumento de catequese de crianças e jovens (JUNGBLUT, 2007).

No processo contemporâneo de ressignificação e reapropriação dos signos mundanos pelas instituições religiosas, é possível encontrar expressões musicais diversas e inusitadas como o funk, hip hop, reggae ou forró. Os chamados “ministérios” – organizações artísticas criadas no interior das igrejas e formadas eminentemente por jovens –, conquanto tenham objetivos claros de evangelização, têm se tornado importantes espaços de iniciação não apenas na música, mas também em balé e teatro (FARIA; SILVA; CARNEIRO, 2012).

Larissa (23, FOT) e Ismael (30, MUS), ambos evangélicos, viveram experiências de iniciação artística no interior de igreja. Ela desde cedo integrou grupos de dança, teatro e coral

na Igreja Batista, e também aprendeu a tocar violão aos treze anos de idade. Ismael pôde participar por mais de quinze anos de grupos e atividades diversas de musicalização e de construção de referências musicais. “Na nossa igreja também, assim, especificamente, iam muitas bandas, e a gente acabava vendo aquelas bandas, e aquela rotatividade de pessoas, aquela musicalidade, então a gente gostava muito disso.” (ISMAEL, 30, MUS).

Carina (26, FOT) também pôde participar de apresentações musicais e de teatro na igreja, mas também reconhece que sua filiação religiosa, em alguns momentos, operou como elemento limitador de acesso a outras iniciativas e eventos culturais do bairro.

Morar próximo ao Centro da cidade, como nos casos de Lia (26, DAN) e Iara (27, DAN), permitiu acessar diferentes instituições formadoras, como o Sesc e o Balé Folclórico. Em outros casos, foram as igrejas que contribuíram para isso, já que gratuitamente ofereciam uma estrutura (professores, instrumentos, espaços para prática e apresentação) que dificilmente encontrariam em outros espaços do bairro.

A cultura tem sido uma força mobilizadora de apropriação da cidade. Todos os jovens entrevistados, de algum modo, puderam atravessar as fronteiras das suas comunidades de origem e ampliar seus capitais culturais por meio do acesso a diferentes circuitos de produção cultural da cidade.

Mediados pelas famílias, como já assinalado na seção anterior, ou por projetos sociais e pelas escolas profissionalizantes, os jovens artistas adquiriram outro status em seus ambientes de origem. Alguns, como Maria (27, VID) e Carina (26, FOT), conseguiram converter esses ganhos em implicações diretas com suas comunidades de origem, envolvendo-se em projetos socioculturais, como as ações desenvolvidas pelo Coletivo Cutucar e pelo Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio.

Essas experiências de socialização artística conferiram aos jovens uma condição de transformação de seus universos de referência, que mesmo sem produzir mudanças significativas em termos de mobilidade socioeconômica, geraram mudanças pessoais – com a ampliação cultural e o alargamento dos projetos de vida – e sociais, com a aquisição de novos status e de reconhecimento entre seus pares.