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1.1 APORTES TEÓRICOS

1.1.1 Socialização plural e experiência social

Em sociedades multiculturais como a brasileira, operam numerosos sistemas de valores, e quanto mais diferenciados em termos de valores, e com elevados graus de divisão do trabalho, mais os processos de socialização empreendidos pelas famílias, igrejas, instituições culturais, educacionais e profissionais tendem a não obedecer a sequências cronológicas e funcionais rígidas, podendo ser distintos ou mesmo contraditórios.

Em tal contexto, as sociedades têm produzido crescentes processos estruturais de singularização em suas instituições (na justiça, nas formas de educação etc.), na produção industrial (segmentada e adequada a consumidores diversificados), nas formas de sociabilidade e de construções identitárias (LAHIRE, 2002; MARTUCCELLI, 2007a, 2007b). Para Martuccelli (2010, p. 17, tradução nossa), “[...] a socialização aparece como um formidável mecanismo de fragmentação – cada indivíduo é o fruto de uma série cada vez mais contingente de diferentes experiências de socialização”.

Para Lahire (2002, p. 36),

[...] um ator plural é, portanto, o produto da experiência – amiúde precoce – de socialização em contextos sociais múltiplos e heterogéneos. No curso de sua trajectória ou simultaneamente no curso de um mesmo período de tempo, participou de universos sociais variados, ocupando aí posições diferentes.

Nos processos de socialização artística e profissional encontramos jovens inseridos em diferentes campos (música, dança, audiovisual, fotografia), cujas fronteiras muitas vezes se interpenetram, assim como os limites traçados entre arte e política, cultura popular e erudita, criação e negócios.

Os habitus8 construídos oferecem coordenadas para a orientação de condutas, permitindo a seleção e o ajuste entre ações, ambientes e pessoas. No entanto, o modelo de ajuste “mágico” entre habitus e situações é cada vez menos uniforme. Lahire (2002) defende que a existência de uma multiplicidade de dinâmicas socializadoras torna os esquemas disposicionais e as disposições neles contidas algo dinâmico e processual.

8 O conceito de habitus, um dos mais importantes das teorias bourdiesianas, se refere ao conjunto de disposições incorporadas que atua como princípio gerador de condutas (BOURDIEU, 2007).

Os esquemas disposicionais não constituem necessariamente um todo coerente, e quanto mais contraditórios são, mais os indivíduos são exigidos a desenvolverem processos de reflexividade e a exercitar seleções e escolhas. No caso dos jovens participantes da investigação, a origem popular comum é apenas um dos múltiplos fatores (filiação religiosa, instituições escolares frequentadas, local de moradia) que produziram composições complexas e plurais de referências socializadoras.

O prolongado e infindável trabalho que se dá no jogo entre a decantação de disposições construídas e os ideais projetados é que permitiria aos indivíduos “fabricarem-se como sujeitos”. As configurações de sujeitos possíveis seriam, segundo Araújo e Martuccelli (2010), contingentes, mas não determinadas, o que implica dizer que o fato de serem modificáveis não as tornaria inteiramente voláteis.

A experiência social9 (DUBET, 1996) oferece insumos para orientação no mundo e se baseia num trabalho interpretativo de situações, e ajuda a estabelecer contextos de possibilidades e impossibilidades. O autor sinaliza que

[...] contra as imagens demasiado claras que opõem a cultura toda-poderosa à razão autônoma, convém antes sublinhar que existe na experiência social alguma coisa de inacabado e de opaco, porque não há adequação absoluta da subjetividade do actor e da objetividade do sistema. (DUBET, 1996, p. 96).

Nesse sentido, a socialização nunca se dá completamente, já que nenhum indivíduo é capaz de aderir totalmente a um único sistema de normas. Estes são cada vez mais plurais, o que muitas vezes produz nos indivíduos experiências de distanciamento, mal-estar e reflexividade, o que, para Dubet (1996), faria com que a experiência social seja sempre vivida como “problema”.

Hoje, haveria uma maior disponibilidade – e, por vezes, necessidade – de se submeter a experiências sociais diversas, ao mesmo tempo em que os indivíduos são “obrigados” a construírem suas próprias ações em contextos de menor rigidez e poder dos papéis sociais. Os indivíduos, embora permaneçam ligados a contextos específicos e submetidos a condições sociais e culturais também particulares, são eles próprios que forjam suas experiências.

Para compreender a construção de tais experiências, Ferreira (2003) propõe uma conjugação entre “contextos de vida” (quadros simbólicos que configuram as subjetividades e biografias) e “contextos estruturais” (condições estruturais, institucionais, organizacionais

9 Wautier (2003, p. 188) define que “a experiência social é a atividade, o trabalho pelo qual o indivíduo pode construir uma identidade social, quando articula as diversas lógicas de ação nas quais ele está engajado”.

materiais e/ou ideológicas)10 que permitem situar os sujeitos num quadro que conjugue a dimensão espaço-temporal e estrutural (que define as potenciais trajetórias).

Os contextos estruturais “dirigem, mas não determinam a ação” (PAIS, 1993, p. 521), já que apenas alguns elementos presentes nas situações são acionados, além de sofrerem influência das interações mais imediatas.

Nesse caso, a tarefa do investigador consiste na

[...] identificação e selecção dos elementos da realidade social considerados pertinentes para a compreensão sociológica do objecto de estudo. Tal implica uma operação de retalhe analítico da realidade social, num processo de construção sociológica que permite descobrir ‘aquilo que os respectivos autores [da acção social] não se propunham a directamente comunicar ou, até, se proporiam ocultar’. Nesta óptica, os contextos estruturais estabelecem o enquadramento que, objectivamente, norteia as potenciais rotas das trajectórias. (FERREIRA, 2003, p. 68).

Assim como Ferreira (2003, p. 70) indica neste estudo, “os contextos subjetivos são tomados como ‘matéria informante’ dos contextos estruturais, sem descurar a análise destes últimos enquanto ‘matéria formante’ dos primeiros”.11

Seguindo essa trilha, compreendo que o exercício de construir um corpus que permita manter o vínculo entre o indivíduo e as dimensões estruturais tem encontrado apoio tanto na noção de socialização plural (LAHIRE, 2002, 2004) quanto numa sociologia à escala dos indivíduos, por entender que a sociedade não oferece mais um programa institucional único e coerente, mas sim múltiplos programas de ação, que favorecem a emergência de mais situações inéditas, que exigem reflexividade para se orientar no mundo social.