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4 AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA SOCIALIZAÇÃO ARTÍSTICA

4.4 A SOCIALIZAÇÃO EM PROJETOS SOCIAIS

A experiência de participar de projetos sociais nos bairros periféricos de muitas cidades brasileiras tem desempenhado importante papel na ampliação de repertórios

socioculturais, através da mediação do acesso às artes e a espaços culturais mais amplos, em concomitância com a experiência escolar (NOVAES, 2006; SPOSITO, 2008).

Se a escola formal muitas vezes apresenta limites para promover a formação artística de seus estudantes, em alguns contextos, como o de Salvador, os projetos sociais podem ter papel decisivo nos processos de iniciação artística de adolescentes e jovens. Em uma investigação realizada com dançarinos(as) e percussionistas baianos que atuavam em Salvador e/ou na França, entre os anos de 2010 e 2012, Reis (2012) identificou que praticamente todos os sujeitos estudados foram formados em projetos mantidos por ONGs – em sua maioria ligadas a blocos afros – ou em grupos culturais (folclóricos e bandas), o que chama atenção para o papel que tais instituições tiveram para a formação artística.

Hoje, as linguagens artísticas tornaram-se quase um “lugar comum” nas propostas e práticas de projetos sociais voltados para a juventude. A identificação acrítica entre os termos juventude, projeto social e arte muitas vezes contribui para a banalização dessa complexa relação, ora reduzindo a arte a uma função instrumental, ora aproximando-a de lenitivo para os mais diversos problemas que afligem este grupo social.

Diante das lacunas nas ações públicas de formação nas áreas da educação e da cultura e das diversas expressões das desigualdades sociais, as organizações não governamentais (ONGs) passaram a ocupar um lugar importante na oferta de atividades educativas para jovens de classes populares, desde o final da década de 1980, criando uma rede de formação paralela à escola, que é muito diversa em termos de infraestrutura, qualificação dos educadores, duração e objetivos. As propostas vão desde projetos em que a arte é utilizada como “passatempo”, estratégia pedagógica ou recurso de sensibilização, de ampliação dos sentidos estéticos e de promoção do autoconhecimento (FERNANDES; CUNHA; FERREIRA, 2004) até cursos com pretensões explicitamente profissionalizantes, como é o caso da Kabum.

A partir da década de 1990, as ONGs estreitaram relações com o Estado, envolvendo- se em ações de formação e qualificação profissional, muitas vezes articuladas a programas governamentais como o Capacitação Solidária, o Consórcio Social da Juventude e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem).72

72 O programa Capacitação Solidária foi criado em 1996, pelo Governo Federal, com o objetivo de ofertar cursos de formação e capacitação para jovens de 14 a 21 anos, em situação de pobreza, nas periferias das maiores cidades brasileiras. A execução dos cursos era produto de parcerias com organizações da sociedade civil, empresas e agências internacionais de desenvolvimento. Os Consórcios Sociais da Juventude foram promovidos pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e também tinham o objetivo de promover a qualificação social e profissional de jovens. Uma peculiaridade do programa era a articulação em rede, já que ele era organizado por conjuntos de no mínimo dez entidades, movimentos sociais ou organizações da

Segundo Sposito (2008, p. 90), a juventude das classes populares tem-se tornado alvo de um duplo processo de formação, pois “de um lado, observa-se a expansão da escolaridade em condições precárias; de outro, uma intensa disseminação desse tipo de ação não escolar, para os mesmos jovens que vão para uma escola degradada”. Raramente os projetos conseguem estabelecer relações mais estreitas com a escola, ainda que muitos deles exijam como contrapartida para a participação de suas atividades a obrigatoriedade da frequência à escola.

Dentre os jovens pesquisados, até o ingresso nos cursos de formação profissionalizante em artes, Ismael (30, MUS), Larissa (23, FOT), Carina (26, FOT) e Murilo (27, VID) não tiveram qualquer experiência com projetos sociais, mesmo vivendo em bairros com oferta de iniciativas ligadas ao esporte ou às artes.

Diego (29, MUS) nunca integrou regularmente um projeto social, mas teve experiências marcantes na sua formação advindas de iniciativas voluntárias. A primeira foi com um professor que ministrava aulas para jovens do bairro por preços simbólicos, com quem aprendeu os primeiros fundamentos de teoria musical. Algum tempo depois, participou de algumas atividades em um curso livre oferecido pelo governo estadual, dentro de um programa de incentivo às filarmônicas.

Já os outros entrevistados tiveram experiências duradoras e decisivas no interior de projetos sociais. O ingresso de cada um se deu em diferentes momentos da vida, assim como vivenciaram propostas formativas diversas em termos de concepções pedagógicas, qualificação dos educadores e duração.

A participação em projetos sociais, seja na condição de público-alvo das ações formativas, do engajamento voluntário ou, ainda, como trabalhadores, muitas vezes permite que os jovens construam um status diferenciado nas comunidades e grupos que integram. Tais vivências possibilitam ganhos significativos em termos de construção de identidades e de habilidades artísticas e políticas, de acesso a novas redes sociais e espaços da cidade, de inserção no debate sobre direitos sociais etc. (SILVA SOBRINHO, 2012).

Maria (27, VID) é uma das jovens cuja inserção em projetos sociais produziu transformações significativas em sua trajetória. Aos 13 anos começou a fazer aulas de dança

juventude legalmente constituídos. Os Consórcios eram organizados em torno de três eixos: geração de postos de trabalho formais e de renda; preparação para o primeiro emprego; e articulação com a sociedade civil. Por fim, o ProJovem foi criado em 2005, com objetivos gerais e públicos semelhantes aos anteriores. “Em 2007, o ProJovem se ampliou e diversificou em quatro modalidades baseadas na unificação de diferentes programas e projetos sociais: o ProJovem Trabalhador; o ProJovem Campo; o ProJovem Adolescente; e o ProJovem Urbano, que mantém as principais diretrizes do programa” (LARANJEIRA et al, 2012, p. 20), que garantia a certificação escolar de conclusão do ensino fundamental.

numa associação, em Paripe, bairro onde mora desde os 12 anos de idade. Depois, aos 15, ingressou no seu primeiro projeto social, o Agente de Desenvolvimento Comunitário, ligado a uma fundação estadual, que formava jovens para atuar como mobilizadores e multiplicadores de ações socioculturais com linguagens como poesia, teatro e fotografia, além de sensibilizá- los para temáticas como sexualidade e identidades. “Era um projeto para trabalhar na comunidade. E a partir daí que tudo despertou, que veio meu interesse pela arte, tudo. Eu era meio desligada, odiava ler, essas coisas” (MARIA, 27, VID).

Foi através do projeto que pôde ampliar significativamente a sua relação com a vida cultural da cidade, conhecer o circuito de arte, especialmente o gratuito ou de baixo custo. Ao mesmo tempo, se processava uma mudança interior, no sentido de ressignificar sua relação com seu próprio corpo, sua condição feminina e racial.

Aos 17 anos, Maria (27, VID) pôde expandir ainda mais sua formação artística, dessa vez participando de uma oficina de vídeo ofertada pela Casa Brasil, um projeto localizado num bairro vizinho. Foram os educadores desse projeto que a estimularam a fazer a seleção para a Kabum.

Depois disso, desde seu ingresso na Kabum até hoje, Maria (27, VID) construiu uma relação estreita com a Cipó, ONG que mantinha a escola. Após a conclusão do curso de vídeo, a maior parte das suas experiências profissionais continuou ligada à instituição, que atuou como contratante ou mediadora para outros trabalhos, reforçando a condição de suporte decisivo que as organizações do terceiro setor tiveram na formação e inserção profissional e na construção de sua rede de contatos.

O papel formativo dos projetos sociais também foi decisivo na vida dos três jovens da área de dança, permitindo o acesso a experiências de iniciação artística que são relativamente limitadas para uma parte expressiva da população. Lia (26, DAN) foi a jovem que mais precocemente iniciou suas experiências de formação. Aos 6 anos de idade ingressou em um projeto voltado para a dança, mantido pelo governo estadual, por meio da Sudesb, instalado no mesmo bairro onde morava. Naquele momento já realizava pequenas apresentações em espaços públicos. Dois anos depois já estava integrando as atividades de formação do Balé Folclórico Júnior, voltado para as linguagens do balé e da dança afro, por indicação de uma tia, que fora dançarina da instituição.

Aos 15 anos, ingressou em outro projeto, o Balé da Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac), que tinha uma proposta mais estruturada de manutenção de um corpo permanente de dançarinos, oferecendo uma bolsa mensal e vale-transporte para os integrantes. Os três projetos tinham em comum propostas educativas focadas mais diretamente na

performance do que em processos de formação cultural e política, o que caracteriza muitas ações socioeducativas voltadas para crianças e adolescentes. Aos 18 anos, quando deixou de fazer parte da companhia ligada à Fundac, Lia (26, DAN) contava com aproximadamente 12 anos de educação e prática em dança, construindo um expressivo capital corporal73 em termos de técnicas, algo que normalmente só acontece com públicos das camadas médias ou altas, que podem acessar as escolas particulares de dança e, sobretudo, de balé.

Iara (25, DAN), aos 9 anos de idade, começou a participar de uma oficina de dança afro, num centro cultural da Liberdade. O projeto também era mantido pelo governo estadual e oferecia, ainda, atividades de capoeira e teatro. Durante essa experiência, seu professor, Raimundo, promoveu sua aproximação com o bloco Muzenza, no qual dançou por três anos no Carnaval.

Por volta dos 13 anos, migrou para outro projeto, localizado no Sesc, no qual permaneceu por mais quatro anos. A instituição possuía uma proposta mais estruturada, que oferecia não apenas aulas de balé e afro, e também mantinha um grupo profissional de dança folclórica. Também promovia a montagem e a apresentação de espetáculos em espaços púbicos, oferecendo uma bolsa mensal aos jovens dançarinos, além de ter possibilitado que conhecesse e estudasse com importantes profissionais da dança afro do estado. Pôde integrar as aulas do grupo folclórico, composto só por adultos, que ampliaram seu universo de referências, aproximando-a da Escola de Dança da Funceb.

O último dos jovens, Sidinei (29, DAN), ainda durante sua participação em um projeto de formação artística no contraturno escolar, foi estimulado por um dos educadores a conhecer o Liceu de Artes e Ofícios, onde ingressou por volta dos 15 anos de idade. Na instituição, além de receber uma bolsa mensal, pôde contar com uma estrutura adequada e ampliar significativamente seu repertório artístico.

As pessoas tinham roupa de dança, tinham tudo isso, e eu cheguei naquele lugar e não sabia. Quando eu entro no Liceu de Artes e Ofícios eu começo a entender alguns princípios das danças populares brasileiras e da dança moderna, especificamente a dança afro-brasileira. (SIDINEI, 29, DAN).

Matriculado apenas no curso de iniciação à dança, também teve acesso a outras oficinas. “Além de ter cursos específicos de iniciação em cada linguagem, tinham integrações. Então, nosso queridíssimo maestro Sérgio Souto, temos uma das maiores

73 Capital corporal se refere a um tipo de capital que inclui a aprendizagem e incorporação de conhecimentos e técnicas corpóreas compreendidas com legitimas em determinado campo, como o de determinados esportes ou áreas da dança (BOURDIEU, 1983b).

educadoras musicais, que é Kitty Canário. E Marilza Oliveira, que eu digo que é uma mãe para mim atualmente.”

Ao sair do Liceu, começou a desenvolver voluntariamente oficinas de dança, numa associação do bairro do Engenho Velho da Federação. Na sequência, pôde fazer algumas aulas gratuitas na Escola de Dança da UFBA, com João, um professor que viria a ser uma das suas principais referências.

Aí fiz aula com ele e ele me apresentou e ficou mais do meu lado. Eu digo que ele é o meu pai nesse sentido, porque a partir daquele momento ele começou a introduzir umas questões mais técnicas, começou a propor leituras, questões mais teóricas sobre a dança, do conhecimento de corpo mais amplo... Conhecimento semiótico... que eu não entendia merda de nada naquele momento. (SIDINEI, 29, DAN).

A partir daí passou a ser colaborador desse educador em oficinas que eram realizadas em outra escola pública. Ambas as experiências como educador eram vistas por Sidinei (29, DAN) também como espaços importantes de aprendizagem e desenvolvimento artístico.

Entre os jovens que puderam ter experiências mais prolongadas em projetos sociais, como Maria (27, VID) e os jovens da área de dança, estas iniciativas aparecem como um suporte essencial na construção de habilidades artísticas, que dificilmente seriam possíveis sem elas. Foram decisivas para que pudessem construir redes sociais e um background essencial para ingressarem nos cursos profissionalizantes e superiores.

No caso da dança, o campo de formação para crianças e adolescentes é dominado por escolas privadas, predominantemente focadas no balé clássico, que tendem a atender determinados segmentos populacionais mais privilegiados economicamente. No caso da área de audiovisual, o custo dos equipamentos e a existência de profissionais qualificados nessa linguagem permitiram a Maria (27, VID), a entrevistada que vivia em condições socioeconômicas mais difíceis, experimentar uma iniciação rica não apenas na área de vídeo, mas também de ampliação significativa do seu repertório cultural e de perspectivas de futuro. Segundo ela, essa mudança ficava evidente quando reencontrava os colegas do bairro com quem viveu a adolescência, que estavam casados ou com filhos e trabalhando em atividades menos qualificadas e ouvia: “Da galera, Maria foi a única que tomou um rumo.”

A despeito dos efeitos positivos, a presença de projetos em territórios quase sempre marcados por maiores limitações estruturais também gera alguns “efeitos colaterais”, como a produção de tensões entre os chamados “jovens de projeto” (NOVAES, 2006) e os que não estão engajados. Além disso, muitas iniciativas são criadas em condições precárias em termos de estrutura e qualificação dos recursos humanos, replicando a ideia de “projetos pobres para pobres” (SPOSITO, 2007), o que pode resultar numa limitada experiência de formação ou

capacitação profissional para os jovens ou a incorporação deles como mão de obra mal remunerada (NOVAES, 2006; SILVA SOBRINHO, 2012).

Murilo (27, VID) teve uma breve experiência de trabalho em uma ONG e teceu algumas críticas à forma como era remunerado.

Você via que a realidade da remuneração era outra e que o trabalho era o mesmo, eu comecei a me questionar: ‘Não, não tá certo isso aí’. A gente tá prestando um trabalho profissional, de profissional, e tá ganhando como uma experiência, como um aprendiz, eu acho que tem algo errado nessa lógica de teoria e prática.

Além disso, percebia que até mesmo entre formadores existiam concepções que reforçavam a condição de estigma que acompanha o público-alvo de muitos projetos. “É um pouco meio que estereotipado, até por umas falas meio soltas, despretensiosas, mas com essa carga de estereótipo, tipo ‘são jovens favelados, que não têm oportunidade de vida, de crescimento, estado de vulnerabilidade social etc’.” (MURILO, 27, VID).