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4 AS MÚLTIPLAS DIMENSÕES DA SOCIALIZAÇÃO ARTÍSTICA

4.1 DOM, TALENTO E SOCIALIZAÇÃO

Uma visão bastante corrente no senso comum compreende que as habilidades artísticas seriam reservadas a alguns poucos indivíduos privilegiados que teriam um “dom”, uma sensibilidade estética e uma capacidade inata para a música, a dança, a pintura etc.

Na filosofia também há uma tradição que defende a existência de um dom inato entre os artistas. Vasari, no Renascimento Italiano, Hegel e Kant, na tradição alemã pré-romântica, são os maiores expoentes da construção do ideal de um “gênio criador” inato. Mesmo não desprezando o papel do labor e da disciplina para o desenvolvimento da criação artística, entendem que o “gênio” é uma propriedade intrínseca a determinados indivíduos. No período do Romantismo e depois, com Baudelaire e Nietzsche, este “dom”, mesmo sendo visto como um “olhar original” sobre o mundo, também ganha um acento trágico, uma espécie de herança maldita ou desassossego que acompanharia o artista (MARTINO, 2013).

T.S. Eliot é um pioneiro na desconstrução da noção de dom inato, ao defender que a criação artística – particularmente a do poeta – seria produto não mais da eleição ou da inspiração individual, mas sim do “engenho”, do trabalho, do esforço e da concentração (MARTINO, 2013).

A capacidade de atribuir valores e qualidades às propriedades materiais do mundo provocadas por estímulos sensíveis, ou seja, a sensibilidade estética, é uma faculdade de percepção sensorial presente em qualquer indivíduo ou sociedade. No entanto, mesmo reconhecendo o caráter universal dessa “faculdade”, ela seria construída de forma distinta por indivíduos inseridos em diferentes contextos socioculturais (GOLDSTEIN, 2008).63

Ao estudar narrativas de atletas, Damo (2008) nota que, de modo geral, os processos de aprendizagem são encobertos ou difusos pela ideia de um gênio inato. De forma semelhante, Ferreira (1995, p. 103) sinaliza que

[...] ao fazer do criador e do seu respectivo talento o princípio primeiro e último do valor e sentido estético das suas obras, subjetiva, intimiza, personaliza e naturaliza ao extremo todos os constrangimentos e mecanismos de ordem social que envolvem no decorrer da sua carreira.

63 Goldstein (2008, p. 2) sugere que o estudo das artes pelas ciências sociais é um campo ao mesmo tempo fértil – por desestabilizar uma série de “lugares comuns” sobre o tema, como o do talento inato do artista, da sensibilidade superior de determinados grupos – e espinhoso, “porque os cientistas sociais correm o risco de cair em explicações deterministas e exteriores, que negligenciam as especificidades do mundo da arte”.

Hoje, no campo das ciências sociais há um claro entendimento de que as chamadas “vocações” artísticas são produtos de processos específicos de socialização e aprendizagens estéticas, que se dão em espaços como a comunidade, a família, a escola e o trabalho. Para Ferreira (1995, p. 103), uma leitura sociológica sobre as artes tem como papel “desestruturar, denunciar e explicar todo o sistema integrado de mitos e estereótipos que, de algum tempo a esta parte, tem vindo a proteger essas entidades, pretensamente intocáveis na sua imaculada aura de singularidade e essencialidade ontológica”.

Ainda assim, as crenças sobre a existência e a força do dom persistem também entre artistas. Durante as entrevistas com os jovens participantes da investigação, a diversidade de concepções ficou explícita. Entre alguns, há visão mais próxima da crença de que haja algo de diferente nos artistas, mesmo sendo difícil explicá-lo. Outros sujeitos da pesquisa tenderam a relativizar bastante essa ideia, apontando de forma mais direta o papel das socializações e das oportunidades de aprendizagem como essenciais para a construção das habilidades artísticas.

Entre os jovens que acreditam de forma mais clara na existência do dom artístico, foi recorrente a busca de justificativas nas vivências mais remotas com as artes. Enquanto refletia sobre suas primeiras experiências fotográficas, Larissa recordou que sempre teve uma forma especial de fazer seus registros:

Eu tirava muita foto, assim, com um olhar diferente. Eu via uma planta bonita e aí eu enquadrava ela direitinho, via a luz e tirava a foto. Coisas, assim, que eu achava bonitas, que eu achava que era fotográfico, daria uma bela foto, sei lá, de coisas que os outros olham e não veem. (LARISSA, 23, FOT).

Maria (27, VID) também recorda que suas experiências artísticas mais precoces apontavam para um sentido mais profundo na sua relação com as artes, que foi se confirmando nos anos seguintes: “Assim, pequena eu gostava de dança, de cantar. Aí, com o passar do tempo, eu fui vendo que eu tinha de gostar mesmo de arte.”

Sidinei (29, DAN) avança um pouco mais na busca por uma explicação para a origem desse dom, construindo uma visão poética sobre sua relação com as artes:

Eu costumo dizer, de brincadeira... Eu fiz até uma brincadeira aqui na UFBA quando eu entrei: eu disse que o espermatozoide de meu pai, junto com o óvulo de minha mãe, já tinha questões artísticas ali, então quando eles se encontraram eu acho que já houve uma combustão de interesses artísticos. Eu digo que antecede Sidinei enquanto consciência. Mas, quando criança, eu já gostava de produzir os meus brinquedos. Eu acho que aí já era um lugar de criação. Já era um campo artístico. [...] Eu não consigo me ver sem essas áreas [artes]. Eu acho que sou muito artístico em um sentido, não só de dança, mas eu tenho um ‘quê’ de dramaturgia teatral, eu tenho um ‘quê’ de música. Eu gosto muito de cantar, eu gosto muito de batucar, eu gosto muito de fazer música, de compor.

Tanto Sidinei quanto Maria acreditam que o “dom artístico” não seja um talento absoluto, mas sim uma forma específica de ver o mundo: “Eu acredito que tem que ter um olhar, não é? Tem que ter um olhar. Apesar de que se você for muito bom tecnicamente, você vai conseguir trabalhar em qualquer coisa. Mas eu acho que tem que ter um olhar, tem que ter esse dom.” (MARIA, 27, VID). A distinção entre técnica e arte também é utilizada por Sidinei para explicitar sua visão sobre o fazer artístico:

Ele [o artista] não é apenas técnico, tem outro lugar que eu também não sei explicar o que é. Então, por mais aulas que se faça, por mais instrumentos que se tenha, na própria formação, o artista tem uma coisa que está para além da técnica. A gente entendendo o lugar muito técnico, ele [o trabalho] pode sair incrível, mas é visível, é perceptível para o espectador quando se tem esse outro lugar, do artista, que tem o dom. É muito visível, porque se a coisa fica muito técnica, ela vai, por exemplo, no caso da dança, ela pode parecer esporte. E se for o caso da elaboração, por exemplo, de um teatro, o cara pode ser um locutor, um dublador.

(SIDINEI, 29, DAN).

O sentimento em relação ao talento opera como um importante suporte imaginário,64 que pode impulsioná-los a persistir no setor, mesmo diante de diversas provas e condições adversas. Num contexto repleto de dificuldades, em que os postos de trabalho mais seguros estão alocados em grupos com propostas mais “comerciais” ou que restringem a liberdade criadora do artista, Sidinei e Iara lutam pela manutenção de uma companhia de dança independente. Assim como o Mozart, retratado por Elias (1995), que abandonara o conforto da corte para apostar no seu trabalho autoral, a necessidade de criar e a crença no valor dos seus processos criativos e espetáculos são um importante suporte para a persistência no setor.

Ismael (28, MUS) questiona a noção de “dom”, preferindo outra, a de vocação, que teria um sentido menos determinista e dependente da formação, mas que ao mesmo tempo implica uma ligação profunda com a arte:

Eu costumo dizer que eu não tenho um dom. Eu gosto de dizer que eu tenho vocação. E eu acredito que quando você tem vocação, você até pode não ser tão hábil, tão virtuose, tão talentoso, mas aquela paixão te consome de uma tal forma, que você acaba se esmerando e chegando em um nível excelente. [...] Foi uma coisa que fez parte da minha formação, então eu não consigo viver desassociado dela. Eu já tentei, mas não consegui.

Ou seja, a ideia de vocação remeteria mais ao campo do interesse, não a uma motivação qualquer, mas a algo como um “chamado”. Menger (2012) entende que as

64 Muitas vezes, a materialidade dos suportes pode ser menos decisiva do que o significado que possuem para os indivíduos, como é o caso dos suportes imaginários, que seriam construções simbólicas compostas por projeções construídas em torno de casos de sucesso, ídolos ou crenças no próprio talento.

dificuldades de definir o que seria talento e precisar qual a sua origem são recorrentes, inclusive entre pesquisadores, que muitas vezes tomam a noção como evidente e autoexplicativa. Uma visão comum entende que o “talento é a expressão de habilidades que parecem ser originadas na ‘loteria’ genética, especialmente se elas se manifestam precocemente na vida do artista; este capital genético penetra na educação familiar e no ambiente social que estimulam seu desenvolvimento” (MENGER, 2012, p. 49). “Chamado” e “vocação” são alguns outros termos acionados para tentar responder a essa intrigante e profunda vinculação que artistas estabelecem com sua prática e trabalho, algo menos comum na maioria dos outros setores.

Para Ismael (28, MUS), a vocação não é condição suficiente para a construção de uma carreira artística, podendo conviver com a lógica do aprendizado e do exercício, sem que sejam exatamente conflitantes. Nesse sentido, indivíduos com essa concepção acerca da vocação

[...] tendem a crer que são ao mesmo tempo predestinados e precisam empenhar-se de corpo e alma para que o sucesso pessoal seja alcançado. Eles creem no dom, como um mistério que faz com que alguns sejam predestinados, e também no treinamento, cujo esforço mundano é contrário à ideia de mistério, de sorte, de destino e assim por diante. (DAMO, 2008, p. 141).

Entre os outros jovens, a ideia da existência de talentos inatos tende a ser ainda mais relativizada, embora em graus diferentes. Diego (29, MUS), por exemplo, afirma que já acreditou na existência de um “dom”, mas que, depois de observar experiências de diferentes artistas e ler sobre o tema, passou a questionar a ideia, tentando identificar o papel do ambiente e das experiências de socialização precoces:

Se fosse um tempo atrás eu ia dizer que sim [para a existência de um dom]. Hoje eu fico em dúvida, depois de ver algumas coisas, alguns artigos que questionam isso... As pessoas que se destacam, quando eu vou ver o histórico, tem sempre algo ali... Por exemplo, Davi Moraes. Ele, quando bebê, o pai botava no estúdio, e ele estava ouvindo. Armandinho também. Aí você vai ver que, por exemplo, o cara que está agora se destacando em Salvador, o Felipe Guedes,65 é um cara que nasceu ali, dentro do terreiro, tocando tambor, podendo acessar tudo que é instrumento.

(DIEGO, 29, MUS).

Em outras áreas como o vídeo e a fotografia, cujas práticas raramente estão presentes no cotidiano infantil, a construção de uma percepção sobre a existência de habilidades específicas inatas para tais linguagens artísticas é menos simples. Murilo (27, VID)

65 Felipe Guedes é um jovem músico e arranjador de Salvador apontado como um dos mais precoces e virtuosos de sua geração.

demonstrou maior desconfiança em relação à noção do dom, reconhecendo de forma clara o papel dos processos de aprendizagem:

Essa coisa do ócio, sem pensar na criação, eu acho que esse indivíduo genial que surge já superartista, eu não acredito muito nessa pessoa. Eu mesmo não fui essa pessoa. Por exemplo, logo que eu comecei, em 2006, ninguém me descreveria com um artista, um cineasta, como roteirista. Porque aquilo ali não fazia parte do meu circuito de vivência. As pessoas que conviviam comigo no Nordeste de Amaralina não tinham pretensões dessas profissões, talvez alguns nem soubessem da existência de tais profissões, que poderiam viver trabalhando com isso. Isso é uma coisa muito atribuída à classe média, classe média alta.

O seu ingresso “quase casual” no campo do audiovisual e o contexto em que viveu parecem fortalecer sua crença no papel do contexto e das oportunidades para a constituição das habilidades. Mesmo reconhecendo algumas aptidões excepcionais em algumas pessoas, Murilo (27, VID) afirma o papel da aprendizagem, do ensaio-erro e do exercício diário:

Essa predisposição pra arte, eu não acredito que venha de um espaço mais subjetivo, por assim dizer. O cara nasce com um dom genial pra arte. Algumas pessoas nascem com um dom fora do comum, mas esse treino, essa vontade que você tem todo dia de tá produzindo, de tá fazendo as coisas, de tá aprendendo, de tá errando, de tá vendo as coisas, de tá analisando. Eu acho que aí que nasce o processo artístico mesmo.

Sua forma de pensar parece convergir com as concepções que Eugenio (2012) constrói acerca dos processos de produção artística contemporâneos. Segundo a autora, hoje emerge

[...] o entendimento da criação como vivência em conjunto, como geração não de significado, mas de direção, de canalização e foco. Ou seja, como copresença permanente entre pensar e fazer, como tarefa de ‘trabalhar com o que se tem’, operacionalizar conexões insuspeitas. (EUGENIO, 2012, p. 213).

As referências artísticas e profissionais que os jovens encontram como espelho e como suporte parecem ser cada vez mais “horizontais”, construídas no dia a dia, entre seus pares, companheiros de estudo, de trabalho e das relações de sociabilidade mais amplas e gratuitas.

Além disso, hoje, a formação do artista envolve não apenas o exercício de construção de uma determinada sensibilidade estética e o desenvolvimento de técnicas de expressão, mas também compreender o lugar da arte na contemporaneidade, incluindo suas relações com mercados, políticas públicas, instituições educacionais, públicos, consumidores, críticos, dentre outros agentes.

Nesse sentido, para se compreender a constituição de sujeitos como artistas é necessário desvelar a complexidade e multidimensionalidade de agentes e instituições envolvidas, as configurações sócio-históricas do campo e os processos de legitimação do criador e de suas produções.

As experiências de socialização artística de cada jovem – seja nos grupos familiares, nos bairros onde viveram suas infâncias e adolescências, nos projetos sociais e nas escolas – mostram o papel diferencial que desempenham, não apenas como conformadoras de trajetórias, mas também como produtoras permanentes de novas habilidades e desejos.