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2 DELINEANDO OS CONTEXTOS ESTRUTURAIS

2.4 O CAMPO DA FORMAÇÃO E SUAS POSSIBILIDADES

Se no fim do século XIX a Academia cedeu ao mercado e aos críticos especializados a tarefa de chancelar o ingresso nos campos artísticos, há algumas décadas as escolas voltaram a desempenhar um papel importante nos processos de formação e de mediação para o mercado cultural (GREFFE, 2013; FERREIRA, 2003).

O papel das escolas nesses processos é diferente, a depender das interações entre os perfis dos discentes e docentes, das propostas pedagógicas, da mediação feita para o mundo do trabalho e dos processos de validação e certificação de habilidades técnicas e relacionais dos estudantes.

O mercado de trabalho e as instituições formadoras ocupam espaço privilegiado nos processos de construção das habilidades e carreiras profissionais. Segundo Ferreira (2003, p. 57),

[...] a estruturação de uma carreira artística corresponde, genericamente, ao processo de reconhecimento e legitimação social subjacente à solidificação do estatuto de artista, processo em que o aspirante vai acionando estratégias e acumulando recursos que concorrem para esse fim.

A formação artística de jovens tem uma trajetória extensa na Bahia, que começa com o pioneirismo na oferta de formação artística de nível superior40 até chegar ao movimento de expansão significativa dos projetos sociais com enfoque artístico, nas décadas de 1980 e 1990.

As Escolas de Música, de Dança e de Teatro da UFBA foram criadas na década de 1950, atraindo profissionais de referência internacional como Hans-Joachim Koellreutter, na música, Yanka Rudzka, na dança, e Martim Gonçalves, no teatro, que contribuíram para criar um cenário rico para a formação, a produção e a reflexão sobre a cultura baiana.

No campo da dança, a Escola de Dança da UFBA, desde a sua criação, em 1956, ainda que formada por profissionais europeus, conseguiu construir uma proposta de formação com relativo espaço para dialogar com a riqueza da matriz cultural da Bahia e com tendências artísticas mais abertas à liberdade de criação. Para Araújo (2010, p. 1),

[...] isso se deu em função de sua estética vanguardista, que transformou a proposta da primeira escola de dança de nível superior do Brasil em grande diferencial: ter como influência e foco criativo a estética expressionista alemã, deixando em segundo plano a vertente clássica do balé.

O setor do audiovisual, apesar de não contar com um espaço formal de educação, viveu, especialmente na década de 1960, um expressivo ciclo de produções, com filmes como Tocaia no Asfalto, Barravento e Deus e o Diabo na Terra do Sol, criando um cinema que, ao mesmo tempo, abordava temáticas regionais e dialogava com vanguardas mundiais da área. A Bahia também começa a granjear cineastas de outros estados e países, atraídos pelo exotismo e pela singularidade do estado como cenário, a exemplo de Anselmo Duarte e o seu premiado O Pagador de Promessas, e Nelson Pereira dos Santos, que filmou Mandacaru Vermelho (SETARO, 2014).

A Escola de Teatro da UFBA colaborou decisivamente para formar uma geração de profissionais de dramaturgia, que também contribuiu com essa primeira safra de produções cinematográficas locais e com outros cineastas brasileiros, a exemplo de Geraldo Del Rey, Othon Bastos e Antônio Pitanga (SETARO, 2014).

Nas décadas de 1960 e 1970, a cidade se apresenta no imaginário nacional como grande polo de criatividade artística, tendo como elementos emblemáticos o cineasta Glauber Rocha e o Cinema Novo, e músicos como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Tom Zé, protagonistas do movimento da Tropicália, e os Novos Baianos (GUERREIRO; MOURA, 2004).

Mesmo com essa efervescência cultural na cidade e com a importância da UFBA para a constituição desse cenário, o ensino superior na Bahia e no Brasil era bastante elitizado até meados dos anos 2000. A partir daí, há um processo significativo de expansão,41 que promoveu um maior acesso de segmentos populacionais antes subrepresentados em sua diversidade territorial, racial e socioeconômica.

Desde o início da década de 1990 tem havido um significativo aumento da criação de cursos de graduação em artes no país. Segundo Arruda (2014), entre 1991 e 1999 praticamente dobra o número de matrículas em cursos de Dança e Música em universidades brasileiras, sobretudo naquelas de natureza pública.42

Em Salvador, os cursos superiores em artes sempre foram oferecidos majoritariamente por instituições públicas, e em especial pela UFBA.43 Hoje, a universidade dispõe de vagas para os cursos de Bacharelado Interdisciplinar em Artes (BI – Artes); Artes Cênicas – Direção Teatral; Artes Cênicas – Interpretação Teatral; Licenciatura em Teatro; Artes Plásticas; Design; Licenciatura em Desenho e Plástica; Curso Superior de Decoração; Canto; Composição e Regência; Instrumento; Licenciatura em Música; Música Popular; Bacharelado e Licenciatura em Dança.

Instituições como a Universidade Católica do Salvador (Ucsal) oferecem o curso de Licenciatura em Música, com habilitação em piano e violão. O Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge) oferecia os cursos superiores em tecnologia nas áreas de Fotografia e Produção Audiovisual e a Faculdade de Ciências e Tecnologia (FTC), em Cinema e Vídeo.

No campo da Pós-Graduação, a UFBA oferta de cursos de Mestrado Profissional em Artes (Profartes), mestrado acadêmico em Artes Visuais, Dança, Música e Artes Cênicas, e

41 De 2000 a 2010, o número de matrículas no ensino superior brasileiro saiu de 2.864.046 para 6.193.779, um crescimento de 116,3% (MARQUES; CEPÊDA, 2012). De 2010 a 2013, a progressão persiste, ultrapassando os 7 milhões de matrículas, sendo 76,9% concentrados em instituições privadas (INEP, 2014). Na Bahia, as matrículas no ensino superior saltam de 89.000, em 2000, para 289.000 matrículas, em 2013, um aumento de 224,7% (SEMESP, 2015).

42 Num período posterior, Arruda (2012, 2014), analisando dados do INEP, identificou que entre 2001 e 2012, a quantidade de cursos de licenciaturas em artes cresceu 246,9%, saindo de 113 para 392, acompanhada do aumento do número de matrículas de 13.885 para 30.671, um incremento global de 121%. No mesmo período, o número de cursos de bacharelado em artes cresceu 243,8%, saindo de 137 para 334. Somados os números de cursos de bacharelado e de formação de professores, nas instituições públicas o incremento foi de 384,2%, contra 183,8% nas particulares, destacando o papel das políticas públicas de educação superior para o fortalecimento da ampliação e fortalecimento das ações de formação artística.

43 Outras universidades públicas localizadas nas proximidades de Salvador recentemente criaram cursos na área artística. A Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), em 2010, inaugurou seu curso de Licenciatura em Música. A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) oferece Bacharelado em Cinema e Audiovisual, Licenciatura em Artes e o Bacharelado Interdisciplinar em Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas. Em localidades mais distantes da capital, a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) oferece os cursos de Licenciatura em Teatro e em Dança, em Jequié, e um Bacharelado em Cinema e Audiovisual, em Vitória da Conquista.

doutorado nestas duas últimas áreas.44 Estes cursos, somados aos de graduação, permitiram (e permitem) a formação de um grupo de profissionais que desenvolvem as funções de docentes, pesquisadores e críticos que são fundamentais para a constituição da reprodução, da reflexão e da crítica no campo artístico.

Assim, mesmo com a expansão de vagas no ensino superior, a experiência de integrar projetos socioartísticos e cursos técnicos ainda é importante não apenas para a qualificação profissional, como também para promover a preparação de jovens estudantes para o ingresso nas graduações em artes, que comumente requerem a submissão a provas de habilidades em seus processos seletivos.

Diferentes ONGs, instituições religiosas e culturais de Salvador têm ofertado cursos e projetos em diversas áreas artísticas. Na área musical, a Associação Pracatum Ação Social (APAS) possui um programa que forma jovens nas áreas de gravação digital, técnico de palco e rádio, DJ, sonorização, performance vocal e percussão. O Grupo Cultural Bagunçaço também oferece cursos de música e audiovisual. Muitos blocos afros e percussivos oferecem formações, como a Escola Olodum (cursos de percussão de samba-reggae, canto e coral), a Didá – Banda Feminina (cursos de percussão para adolescentes e jovens do sexo feminino), o Ilê Aiyê (com a Banda Erê). Os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojibá) formam a iniciativa mais abrangente, ofertando cursos para crianças e jovens em diferentes áreas como coral, regência, teoria musical, oficinas de arranjos e composição, oficinas de lutheria, em diversos núcleos espalhados pela capital e pelo interior do estado.

Assim como a música, a dança ocupa um lugar de destaque em projetos sociais como o projeto Axé e diversos blocos afros, ofertando, especialmente, formação em dança afro- brasileira para crianças, adolescentes e jovens. Outros espaços, como as diversas academias de balé e um amplo circuito de grupos e associações que englobam grupos religiosos, de valsa, de quadrilhas juninas e de street dance também contribuem para o desenvolvimento de espaços de aprendizagem e de expressão da dança.

No setor do audiovisual e da fotografia as oportunidades de formação são mais restritas. A ONG Cipó – Comunicação Interativa, desde 1999, desenvolve projetos na área de comunicação e multimídia com jovens de classes populares, assim como o Projeto Rede TV Jovem, ligado à organização Ação Pela Cidadania, desde 2007, oferece cursos para jovens

44 O curso de Pós-Graduação em Artes Cênicas é o único do Norte/Nordeste brasileiro e tem o conceito mais elevado entre todos os sete cursos do país (CAPES, 2013), enquanto o Mestrado em Dança ainda é o único do país.

estudantes de baixa renda nas áreas de audiovisual, computação gráfica, web design, comunicação em rádio e interpretação para TV e cinema.

No campo da educação profissional, em Salvador, também nasceram os primeiros cursos técnicos em dança e música do país, respectivamente com a criação da Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), inaugurada em 1984, e do Colégio Estadual Deputado Manoel Novaes, em 1992. Mais de uma década depois, o Centro de Educação Profissional em Artes e Design (CEEP) iniciou suas atividades, em 2004, em parceria com a ONG Pracatum, oferecendo cursos em diversas áreas ligadas às artes.

Para um público com fluxo escolar mais irregular e/ou em condição de maior vulnerabilidade social, no final da década de 2000 também houve uma expansão de iniciativas, como a criação do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem), o Programa de Integração da Educação Profissional Técnica de Nível Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja), o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e o Trilhas das Artes. Cada um dos programas possui escopo próprio em termos de duração, estrutura e nível de certificação, produzindo experiências muito diferenciadas em termos de qualidade e profissionalização efetiva.

Em Salvador, o Trilha das Artes foi criado pelo governo estadual nos moldes do Projovem, e a Funceb, em pareceria com o Pronatec, tem oferecido cursos de curta duração, sobretudo nos campos de organização e apoio técnico às atividades culturais, com habilitações como assistente de coreógrafo, brincante de rua, assistente de produção cultural, agente cultural, fotógrafo, auxiliar de costura cênica, auxiliar de cenotecnia, iluminador cênico, harmonia, edição e operação de som. Estas iniciativas atendem a públicos diversificados em termos de formação, atuação e localização geográfica, ampliando as possibilidades de qualificação profissional para compor a cadeia produtiva do setor cultural.

Nesse sentido, os cursos livres, profissionalizantes e superiores são parte fundamental dos contextos institucionais que, articulados a contextos estruturais e a contextos de vida, atuaram na construção das trajetórias dos jovens artistas aqui investigadas. As instituições que oferecem educação profissional, que foram o ponto de partida para o desenvolvimento desta investigação, merecem uma atenção maior, a fim de compreender seu papel diferencial na constituição dos percursos profissionais dos jovens entrevistados.

As três escolas selecionadas estão ligadas a setores artísticos que possuem características e tradições de formação próprias. Além disso, cada instituição se singulariza na medida em que possui seus próprios históricos, estatutos político-legais, perfis discentes e

propostas pedagógicas, que, quando articulados, implicam a construção de ambientes de formação também distintos, como mostrado na seção seguinte.