• Nenhum resultado encontrado

2.3 A FORMAÇÃO GUERREIRA DO HOMEM DO CONTESTADO

2.3.1 Da Guarda Nacional ao Coronelismo

Com suas atribuições e responsabilidades determinadas pela Constituição Imperial de 1824, nem sempre o Exército demonstrava a desejada unidade, vivendo constantes momentos de crises internas, com insubordinações nas guarnições, devido, principalmente, à numerosa infiltração estrangeira nos quartéis da capital do Império e nas capitais das províncias. Na vigência da Regência Permanente do Império, o Ministro da Justiça, padre Diogo Antonio Feijó, a 18 de agosto de 1831, assinou a lei de criação da Guarda Nacional do Império, ao mesmo tempo em que extinguiu as milícias, ordenanças e guardas municipais. A Guarda Nacional foi instituída para defender a Constituição, a liberdade, a independência e integridade do Império, e mais, para manter a obediência às leis, conservar ou restabelecer a ordem e a tranqüilidade pública, e para auxiliar o Exército de Linha na defesa das praças, fronteiras e costas do Brasil.

A corporação, que passou a ser organizada em todo o território nacional, era composta por Batalhões, cada qual formado por seis a oito Companhias e, estas, constituídas por 100 a 500 homens. Seus oficiais tinham as mesmas patentes dos oficiais do Exército, exceto a de general. Para os escalões dos batalhões eram nomeados pelo governo imperial: o tenente-coronel comandante (chamado simplesmente de "coronel"), um major, tenentes, alferes e sargentos; para as companhias: um capitão comandante, tenente, alferes, sargentos e cabos. Esta corporação civil era uma milícia paramilitar, à paisana, à qual poderiam se inscrever como "guardas nacionais" todos os homens válidos e maiores de idade do Brasil.

Como para este tipo de coronelato eram nomeados os grandes senhores de engenho (no Leste e Nordeste do Brasil) e os fazendeiros mais poderosos (caso do Sul), os oficiais eram os próprios capatazes das suas fazendas e pessoas de importância ou aliados políticos e, os soldados, eram escolhidos entre os agregados, peões e capangas dos fazendeiros, mais pessoas simples que moravam em vilas e pequenas fazendas, de confiança dos coronéis e capitães (fazendeiros de

menor importância, comandantes de companhias e de esquadrões). A todos, era proporcionado acesso a armas e munições, e treinamento militar.

O Padre Diogo Antônio Feijó não imaginava que a nova corporação logo se tornaria uma grande predileção da classe rural de fazendeiros, os quais muitas vezes se envolviam em amargas rivalidades na disputa por títulos e posições, tendo em vista os privilégios e imunidades a eles inerentes. Surgiu assim no país o "coronelismo", ampliando o já então existente poder político dos fazendeiros, senhores de latifúndios, que passaram a exercer também o poder paramilitar e militar nas províncias brasileiras.

Logo após a criação da Guarda Nacional, em 1831, a Regência confiou ao então Major Luís Alves de Lima e Silva a tarefa de organizar um forte “Batalhão de Oficiais” entre os soldados imperiais permanentes, que fossem cegamente leais à Regência, o que fez com sucesso, pois nos anos seguintes veio a reprimir as principais revoltas provinciais, lideradas por forças extremistas em diversas partes do Império, tendo, inclusive, combatido unidades da Guarda Nacional, quando estas se rebelaram ou aderiram a rebeldes, contra o poder central.

Durante quase um século, em cada um dos nossos municípios existia um regimento da Guarda Nacional. O posto de “coronel” era geralmente concedido ao chefe político da comuna. Ele e os outros oficiais, uma vez inteirados das respectivas nomeações, tratavam logo de obter as patentes, pagando-lhes os emolumentos e averbações para que pudessem elas produzir logo os seus efeitos legais. Um destes era da mais alta importância, pois os oficiais da Guarda Nacional não podiam, quando presos e sujeitos a processo criminal, ou quando condenados, ser recolhidos aos cárceres comuns, ficando apenas sob custódia na chamada “sala livre” da cadeia pública da localidade a que pertenciam. Todo oficial possuía o uniforme com as insígnias do posto para que fora designado. Com esse traje militar, marchavam eles para as ações bélicas, assim também tomando parte nas solenidades religiosas e profanas da sua terra natal.

Eram, de ordinário, os mais opulentos fazendeiros ou os comerciantes e industriais mais abastados, os que exerciam, em cada município, o comando-em-chefe da Guarda nacional, ao mesmo tempo que a direção política, quase ditatorial senão patriarcal, que lhes confiava o governo provincial (LEAL, 1975, p. 213-214).

A necessidade de se criarem esquadrões da Guarda Nacional para servir ao Governo Imperial, na então ainda despovoada Região do Contestado, surgiu já em 1838, quando as forças da Revolução Farroupilha, deflagrada em 1835 no Rio Grande do Sul, chegaram a Lages, invadindo Santa Catarina para instaurar a República Catarinense.

O Imperador D. Pedro II, pela Lei nº 602, de 19 de setembro de 1850, deu nova organização à Guarda Nacional, possibilitando sua expansão através dos presidentes das províncias e - isso muito nos interessa - nas províncias limítrofes com estados estrangeiros, como

as do Sul do Brasil. Assim, nos anos seguintes, criaram-se mais batalhões também no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, com companhias e esquadrões de Cavalaria e Infantaria.

A “Tríplice Aliança”, firmada por Brasil, Argentina e Uruguai, exigiu a incorporação das guardas nacionais provinciais aos corpos de “Voluntários da Pátria” - para atuarem na Guerra do Paraguai - a partir de 1865. Fazendeiros catarinenses e paranaenses, ao lado de caudilhos e estancieiros gaúchos, conduziram milhares de homens ao campo de batalha, proporcionando-lhes não mais somente o treinamento para a guerra, mas a participação sangrenta em ferozes combates corpo-a-corpo. Entre os alistados, também estavam centenas de camponeses e sertanejos recrutados "na marra" nas vilas e fazendas da Região do Contestado.

Na Guerra do Paraguai, principalmente no início, quando o Império somente dispunha de 12.000 homens, inexorável a constatação de que a Guarda Nacional foi muito significativa para a composição das forças militares acionadas pelo Brasil, contra a geopolítica armada do Paraguai. Não só em número mas em qualidade também. Dos batalhões da Guarda Nacional muito de heroísmo e muito de sangue na convulsão continental daquela guerra (MARTORANO, in: O Estado [s.d.].).

Encerrado o genocídio praticado pelos brasileiros no Paraguai, os "voluntários" sobreviventes das guardas nacionais regressaram às suas casas, retomando as atividades cotidianas nas fazendas do Contestado. Daí até a Guerra do Contestado (1913-1916), os esquadrões do Paraná e de Santa Catarina eram esporadicamente chamados a intervir em entreveros locais. Neste período, o coronelismo acentuou-se na Região do Contestado, onde inúmeras já eram as fazendas, tanto as maiores, oriundas das antigas sesmarias, como as menores, que surgiram após a Lei das Terras, de 1850.

A Guarda Nacional desfigurou-se mais tarde, aristocratizou-se. Passou a servir aos interesses eleitorais das facções dominantes, prestando-se a medidas de compressão contra oposicionistas. Não tardou que recebesse a hostilidade dos políticos liberais. E, ainda do Império, depois da reforma de 1873, tornou-se quase puramente honorífica - um vistoso corpo de oficiais sem soldados. Conservou-se apenas como um fator de prestígio político, ser oficial da Guarda Nacional. Mas, limitadas a uma revista anual, as unidades da G.N. haviam perdido até mesmo a função eleitoreira. A República, finalmente, completou o estiolamento da organização, mantendo apenas os coronelatos de mentira que glorificavam alguns chefes municipais (FRANCO, in: Correio do Povo, 18 ago. 1981).

Com a Proclamação da República, em 1889, a Guarda Nacional foi mantida e melhor organizada, passando para os Estados as indicações de nomes para o oficialato, nomeações que se davam através de “cartas-patentes” da presidência. Durante a litigiosa questão de limites, os governos estaduais do Paraná e de Santa Catarina procuravam nomear e promover fazendeiros

que se manifestassem mais simpáticos e favoráveis, respectivamente, às suas causas, cada qual, assim, atraindo para si o apoio e a adesão das pessoas mais influentes do Território Contestado.

No Contestado, todo o poder era concentrado nos poderosos fazendeiros-coronéis, que administravam suas terras e influenciavam a política administrativa e até decidiam eleições nas vilas próximas. O sistema ditatorial resultou do próprio ambiente e das condições daquele tempo: falta de autoridade legal, isolamento dos centros urbanos civilizados e ausência de policiamento. O dono-da-fazenda, automaticamente, era juiz, delegado, chefe e legislador, recebendo respeito de todos os subordinados.

A Guarda Nacional sobreviveu ao advento da República. Patentes de oficial obtidas pelos pretendentes a postos na quase simbólica hierarquia da tropa armada. No fastígio do coronelismo os detentores do poder político, latifundiários quase sempre ou grandes comerciantes, na emulação procuravam ostentar seus postos - desde tenentes até coronéis. Cabia-lhes, individualmente, aliciar, instruir, manter e comandar suas próprias forças. Era a réplica ao caudilhismo. Canalização legal da convergência da vontade de dominação para os propósitos do próprio governo.

Poderosos Senhores, valendo-se da submissão de numerosos familiares, quando não de muitos sobre quem exerciam proteção, ligados a suas fazendas. Mas uma coisa os distinguia. A total disciplina e imediata resposta a qualquer apelo dos Governos. Força sempre legalista. Anteparo aos “bochinchos” dos caudilhos, que de quando em quando insurrectos, nas estrepolias de seus cavaleiros, testavam a estabilidade dos Governos republicanos.

Mas muito pouco se fazia além do papel. Mais títulos para os oficiais do que ideal para seus soldados. [...] Dizem uns que ao temor da ressurreição de pruridos monarquistas se deve sua extinção (MARTORANO, in: O Estado [s.d.].

A par do coronelismo, via-se aqui também o “compadresco”, forte ligação afetiva que ligava o pessoal dependente com os donos das fazendas e com os chefes políticos. Quantos mais afilhados e compadres, que caíam nas boas graças e se viam promovidos socialmente, maior era o poder do Coronel. O beija-mão e o pedido de bênção ao padrinho eram ensinados desde cedo às crianças, para saber respeitar a classe dominante. O poder político na Região do Contestado, amarrado às oligarquias estaduais, era disputado entre os coronéis, que se dividiam, pelas raízes históricas, entre farroupilhas e legalistas, entre pica-paus e maragatos, entre defensores do Império e da República, entre catarinenses e paranaenses e, pela natureza política, entre os partidos políticos que disputavam o poder e distribuíam as benesses, antes entre liberais e conservadores, em seguida entre os federalistas e republicanos, e entre republicanos e liberais. A permanente competição entre os chefes alcançava seus subordinados que, algumas vezes, entravam em luta corporal e armada entre si, durante festas religiosas e rodeios.

O fenômeno coronelista não é novo. Novo será sua coloração estadualista e sua emnacipação no agrarismo republicano, mais liberto das peias e das dependências econômicas do patrimonialismo central do Império. O coronel recebe seu nome da

Guarda Nacional, cujo chefe, do regimento municipal, investia-se daquele posto, devendo a nomeação recair sobre pessoa socialmente qualificada, em regra detentora de riqueza, à medida em que se acentua o teor de classe na sociedade. Ao lado do coronel legalmente sagrado prosperou o “coronel tradicional”, também chefe político e também senhor dos meios capazes de sustentar o estilo de vida de sua posição (FAORO, 1976, p. 621).

Nos primeiros anos do século XX a Guarda Nacional ainda estava organizada nos municípios paranaenses de Rio Negro, União da Vitória, Palmas e Guarapuava e, nos catarinenses, em Lages, Curitibanos, Campos Novos e Canoinhas (os únicos municípios então existentes no Território Contestado). Seus batalhões, companhias e esquadrões eram confiados a diversos coronéis e capitães. Neste tempo o tratamento de "coronel" era ser dado a qualquer chefe político ou a qualquer fazendeiro rico, fossem ou não vinculados às guardas nacionais. “O aspecto que logo salta aos olhos é o da liderança, com a figura do 'coronel' ocupando o lugar de maior destaque. Os chefes políticos municipais nem sempre são autênticos coronéis” (LEAL, 1975, p. 21). Aqui, os latifundiários fazendeiros-coronéis e chefes políticos locais exerceram o "mandonismo" por imposição natural do próprio sistema social e cultural:

O coronel-da-roça sempre foi um coronel-da-roça, nem mau nem bom; nem justo nem injusto; visceralmente, político pela própria identificação com as origens. Não foi um dominador do meio e sim um acomodado no complexo do habitat. Surgiu com a autoridade fruto-da-terra, a ela permaneceu moldado como uma luva a uma mão para exercitar, perfeitamente, o coronelato (JAMUNDÁ, 1974, p. 122).

Não raras vezes os esquadrões da Guarda Nacional no Contestado eram formados exclusivamente pelos capatazes, camaradas, peões e agregados das propriedades dos respectivos comandantes. Piquetes civis eram mantidos em permanente forma, prontos para intervir. Assim, a faca, a pistola, a espada, a lança, o facão, a espingarda ou o mosquetão, estavam sempre à mão, mesmo quando o pessoal se dedicava às tarefas peculiares e cotidianas nas fazendas100.

A política eleitoral no município de Lages era comandada pela família Ramos, formando clãs de parentela que desde 1850 começou a influir na vida política do município, da região e mesmo do Estado. Em Lages,

100

A Guarda Nacional foi extinta pelo presidente da República Artur da Silva Bernardes, através do Decreto nº 15.492, de 22 de maio de 1922, mas nenhum decreto conseguiu extinguir de imediato a força do Coronelismo no Contestado. Em eventos bélicos seguintes no Sul, em 1923 (nova revolta rio-grandense), em 1924 (Coluna Prestes), em 1926 (Invasão de Leonel Rocha), em 1930 (Revolução Getulista) e em 1932 (Revolta Constitucionalista), quando a Força Pública de Santa Catarina precisou organizar-se, comissionou os civis, antigos comandantes de companhias e esquadrões da Guarda Nacional, para ocuparem os postos de oficiais. Hoje, muitas cidades da região têm - e mantêm - ruas, praças e avenidas, denominadas de "Coronel fulano de tal", em homenagem ao coronelismo regional, assim perpetuando na História a estrutura do poder oligárquico do Século XX.

[...] até perto da década de 1950, predominava a grande propriedade rural, as fazendas, que se constituíram na única forma de exploração econômica... Nos seus dominios, o senhor rural – o oligarca, o mandonista, o coronel, o chefe político – exercia poder absoluto sobre as manifestações dos agregados e peões... sua influência ultrapassava as taipas, porteiras e invernadas, cristalizando-se nas vilas, distritos, ou na cidade, dominando o mecanismo eleitoral e o administrativo... A grande família era o pólo deste tipo de poder local (LENZI, 1977, p. 31-32. Apud: CARREIRÃO, 1990, p. 37).

A Região do Contestado, agora incluindo a parte sacada do Território Contestado, do Paraná, anexada a Santa Catarina, permaneceria ainda por muitos anos atrelada ao coronelismo, pois muito devagar foi a transformação da base econômica, de exclusivamente agro-pastoril, para agro-industrial.

Acreditamos que o modo como se desenvolveu a formação do caboclo do Norte Catarinense esteve longe de se constituir na história de homem livre, até porque foi preparado pedagogicamente para ser um trabalhador subalterno. Oprimido pela estrutura desigual e de dominação patrimonialista, que tomou por base os meios de produção detidas nas mãos e poderes dos coronéis, caracterizando assim, uma realidade de trabalho que se definiu historicamente dentro de um contexto voltado para as formas de opressão, dominação e exploração que se faziam sentir diretamente na relação patrão/servo, indiretamente pela inculcação de uma cultura de conformismo, via ação pedagógica (SACHWEH, 2002, p. 74).

O coronelismo, enquanto vigente no interior do Estado, foi um dos sustentáculos das oligarquias catarinenses. Identificou-se permanentemente com a História do Contestado enquanto existiu alguém que fosse, respeitosamente, tratado como “Coronel”. Por vincular-se essencialmente ao meio rural, dentro do mesmo espírito de dominação, o poder político do “Coronel” (da fazenda) começou a ser dividido com o do “Capitão” (da indústria), quando do advento da urbanização e industrialização no Contestado. Em seguida, o coronelismo seria substituído por uma nova forma de expressão de poder político, que deu-lhe continuidade mesmo com a ausência da figura típica do “coronel”: o neocoronelismo, instituição que manteve, nas bases eleitorais, o suporte ao sistema oligárquico.