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1.4 ATIVIDADES ECONÔMICAS NO CONTESTADO

1.4.3 A Vida Campeira nas Fazendas

Vimos que as frentes expansionistas paulistas atingiram os Campos de Curitiba, as margens dos rios Negro e Iguaçu, os Campos de Guarapuava e de Palmas, e os criatórios naturais de muares e bovinos no Rio Grande do Sul. Com a abertura do “Caminho dos Tropeiros”, para ligar os Campos de Viamão, no Rio Grande do Sul, à Sorocaba, em São Paulo, no Século XVIII, esta frente paulista irrompeu no setor Leste do Território Contestado, promovendo a fundação da Vila de Lages que, por sua vez, abriu novas frentes, possibilitando a ocupação de Curitibanos, Campos Novos e outros, fazendo surgir os primeiros “pousos”, “currais” e “registros” e, a seguir, proporcionando o nascimento das primeiras fazendas de criação de gado no Planalto Catarinense.

Não nos alongaremos sobre as tradições gaúchas presentes em Santa Catarina, pois fartíssima é a literatura disponível e variadíssimas são as suas manifestações. Interessa-nos, no

caso, destacar mais as principais características que revelam ser o gaúcho fruto de uma mistura racial branco-índio, portanto, caboclo também.

No Sul, dependendo da área, havia várias denominações para os imóveis rurais, como estância, fazenda, fazendola, cabanha, chácara, granja, quinta, etc. Em Santa Catarina, os latifúndios do Planalto eram conhecidos mais como “fazendas”, daí porque usaremos apenas este termo, mesmo nos referindo às grandes e às pequenas propriedades

Nas sedes das fazendas maiores, posicionadas em ponto estratégico das propriedades, em lugares mais altos, eram construídas as edificações, geralmente de madeira lascada e cobertas com tabuinhas, compreendendo: a casa do fazendeiro, um sobrado bem repartido e com varanda; próxima a esta, a casa do capataz, menor, mas não menos primorosa; a casa dos peões, com as dependências para a peonada; e o galpão, abrigo para homens, animais, feno, equipamentos, etc. e onde os peões se reuniam ao redor do fogo para contar seus causos, sorver o mate amargo, trovar e cantar48.

As “cavalariças”; “estábulos” e “esterqueiras”, sempre distanciadas e dispostos na direção dos ventos dominantes; “depósitos”. Principalmente para lã, grão, ferramentas, correames, etc.; “cozinha”, muitas vezes fora do corpo da casa ou de outro lado do pátio interno; “forno” para o pão, biscoitos e outras necessidades caseiras; “algibe”, que é a cisterna para receber a água da chuva dos telhados da casa; “poço”, artesiano ou não, semi-surgente, os poços comuns, também as caixas d’água e os encanamentos; “ramada”, armação de varas com cobertura de ramos verdes ou capim para abrigo contra o sol; “arvoredo”, sempre evitando-se árvores gigantes, plantando-se a alguma distância do casario; “pátio”, vários são os pátios que ligam as casas entre si.

Horta, galinheiro, pocilgas, canis [...] completam a sede da fazenda e seu casario. [...]. São casas dos posteiros das fazendas, casas de morada em alguns lugares do campo, com mangueira, e por finalidade têm a guarda do gado e as benfeitorias do campo (LAYTANO, 1952, p. 20-21).

As propriedades não eram cercadas, como vieram a ser, depois, com arame farpado. Usava-se muito a cerca de ripas na sede, troncos partidos ou tábuas lascadas para as mangueiras e currais e a cerca de taipa-de-pedra para demarcar alguns setores. Os fazendeiros erguiam outras determinadas instalações que também eram indispensáveis para as atividades cotidianas e com o gado, como as porteiras, tronqueiras e cancelas, as peras, os bretes, os troncos, os palanques, as baias, os banheiros, as estrebarias e os chiqueiros.

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Em nossas viagens de pesquisas, no Uruguai e na Argentina, principalmente, nas províncias de Entre-Rios e Corrientes, tivemos a feliz oportunidade de conhecer muitas estâncias gaúchas típicas do Prata, erguidas com características da arquitetura espanhola, comprovando serem elas, na sua organização interna, mais ou menos idênticas às da Campanha do Rio Grande do Sul e, um pouco diferentes das fazendas das Missões rio-grandenses e dos campos do Planalto Catarinense e Sudoeste do Paraná, onde se evidenciam mais as marcas portuguesas.

No interior das fazendas, havia, ainda, os piquetes próximos às sedes (pastagem com bebedouro, cocho e arvoredo), as invernadas (de bom pasto e boa aguada para a engorda dos animais) e os potreiros, áreas maiores (usados para os rodeios e controles de pastagens e de reprodução do gado).

De modo geral, o estancieiro, criador ou fazendeiro, residiam na sua propriedade, mas, não raro, construíam casas nas vilas para suas famílias. Os empregados de uma fazenda eram contratados conforme o tamanho da fazenda e as necessidades diárias para mantê-la. O capataz era o gerente-geral, ou o administrador, competindo-lhe a direção dos empregados, a distribuição dos serviços, sempre com participação ativa no campo. Os peões tinham o trabalho direto com o gado49. Também eram considerados peões: o caseiro, o galponeiro, o tropeiro, o posteiro, o tropeiro, o cozinheiro, o carpinteiro, o seleiro, o ferreiro e outros artesãos.

Muito conhecidas nas fazendas eram as figuras do arrendatário e do invernador. O arrendatário era quem alugava uma parte da fazenda, ou até toda ela, nesta condição, substituindo a figura do fazendeiro, agindo como se o fosse. O invernador apenas arrendava o campo do fazendeiro para engordar seu próprio gado. Havia ainda o agregado, a quem o dono da fazenda arrendava uma parte das terras, nas extremidades mais distantes, onde ele agia como posteiro e como roceiro, dividindo (geralmente “às meias” ou “às terças”) o produto do cultivo de milho, do feijão, da batata, da mandioca e até da pequena criação de porcos e galinhas.

Alguns elementos da indumentária do gaúcho caíram em desuso, como “as chilenas (esporas grandes), o chiripá (substituía as calças), o nó do lenço, o lenço farroupilha, a bota de garrão de vaca ou potro (com os dedos de fora), as rossilhonas (botas compridas), a ceroula de crivo, o tiradar, etc.”, ao mesmo tempo em que destaca que se conservam: “a bombacha (calça), a pala (abrigo leve e fino), o poncho (abrigo encorpado), a guaiaca (cinto), as botas de couro de bezerro, o chapéus de aba larga e barbicacho, o lenço grande ao pescoço” (LAYTANO, 1952, p. 47). Não podemos deixar de fazer uma referência ao inseparável companheiro do peão. Se o tropeiro não vivia sem o muar, a peonada tinha no cavalo a sua outra-metade:

O gaúcho ama o caválo, que é o seu melhor amigo. Conhece-lhe desde o hénito lastimoso até ao relincho de júbilo. O caválo, fiel e dedicado, acompanha-o sempre,

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O termo genérico que significava as atividades da peonada na lida com o gado, fosse para classificar, apartar, marcar, castrar, descornar, pelechar, curar ou apenas contar os animais, é “rodeio”. Hoje, rodeio significa mais do que a faina diária do peão: é o momento da festa crioula, onde se arma o palco para que a peonada mostre suas qualidades de montaria, de laço e de doma e, entre si, dispute valiosos prêmios.

tanto no campo das pelejas, como na viagem pacífica através dos pagos, ou em perseguição do touro desgarrado e furioso (BRASILIANO, 1935, p. 94).

Especificamente no Centro-Oeste Catarinense, há de se considerar a existência de dois tipos de fazendas: as de criação e as de cultura, se bem que elas mantinham praticamente ambas as atividades, mas a diferenciação se faz sobre a predominância da produção. As propriedades em terras mais de campos, seguiam o modelo rio-grandense, enquanto que aquelas com mais mato do que pastagens e, devido ao maior número de acentuados desníveis, mantinham lavouras como atividade principal, da roça de milho à plantação de fumo.

Não fosse o sal e o açúcar, peças de ferro e aço, louças e quinquilharias, as fazendas teriam total subsistência própria, pois nelas eram produzidos não só os alimentos, como o material para o trabalho. O fornecimento de mercadorias em falta era feito nas vendas, bodegas ou armazéns das vilas próximas.

Encasteladas nos seus campos, as famílias fazendeiras criaram uma economia quase autáqrquica, acentuaram suas relações patriarcais, lutaram sozinhas contra os bugres que invadiam suas terras e incendiavam os paióis. Com o algodão que vinha da região de Sorocaba, e com a lã de seus próprios carneiros, fabricavam o pano de suas roupas. Com a madeira dos capões, construíam suas casas, mobílias, cercas e galpões. Com o ferro em barra, preparavam o instrumental de trabalho. Do couro de suas crias faziam os aperos de seus cavalos, os arreios, lombinhos, xergas, buçais, cintas e botas (MARCONDES, 1977, p. 81).

Destaca-se o fato de as fazendas manterem também rebanhos de ovelhas, destinados ao fornecimento de lã, para satisfazer as necessidades de vestuário, abrigo e peças de arreios. Do gado bovino saía, além do charque (carne seca e salgada), o leite, o queijo, a manteiga e outros derivados, e aproveitavam-se muito bem o couro e os chifres. Os porcos, que forneciam a banha e a carne, eram carneados no verão, após passar a época do pinhão, que era o da engorda.

[...] a carne ou era frita em caldeirões e guardada em latas na banha, ou era transformada em lingüiça (feita com carne picada a mão). Do sangue, faziam o chouriço, e também usavam o “queijo-de-porco”, feito com os miúdos do animal. O toucinho era derretido para fazer banha para o consumo anual. Alguns “lanhos” deste toicinho eram guardados esfumaçados, bem salgados e secos, e eram esporadicamente derretidos para tirar o torresmo (MARCONDES, 1977, p. 81).

Uma atividade pastoril com raízes nas fazendas, que logo se transformou em atividade industrial, foi o charque. Se antes a charqueada era o momento da salga, depois virou sinônimo de estabelecimento produtivo.

O charque é a carne de boi conservada pela ação antisséptica do sal e emprêgo da dessecação. O sistema de charquear é o platino, dividindo-se a carne em pedaços: mantas e quartos. Retirado o couro e a gordura a mais, divide-se a carne, aumentando a superfície, sem ossos, então em oito partes: duas mantas - postas de carne; dois

colchões - volta gorda de uma parte do quarto com a picanha; duas paletas e dois chicos, outra parte do quarto. A carne é pendurada em ganchos para esfriar; dobrada, é posta em tanques de salmoura, em que consiste a salga da carne. Retirada do tanque, é salgada com sal cristalizado numa camada de carne e outra de sal e em pilhas de dois a três metros e depois de doze horas em pilha, ressalga-se da mesma forma do que a primeira vez. No dia seguinte, a “pilha de volta”, em que se muda a posição da salga, e nesse esta fica até que se queira secar ao sol. São estas as principais etapas do preparo do charque. A seca ao sol é feita em varais, seis horas de um lado, outras seis de outro lado, durante vários dias (LAYTANO, 1952, p. 46).

Já o processo industrial em larga escala das charqueadas compreendia, além da inovação tecnológica do uso de caldeiras e máquinas a vapor para a extração do sebo, a especialização da mão-de-obra, como: o desnucador, responsável pelo rápido apunhalamento da rês na nuca; o carneador, que carneava o couro, abria a rês, retirava as vísceras e destacava os quartos, paletas e mantas; o matambreiro, que destacava o couro do peito e a parte do ventre onde estava aderido o matambre; o despostador de quartos e paletas; e, enfim, o próprio charqueador, reponsável pela boa salgação. O preparo dos couros, que eram utilizados para a fabricação de utensílios e também consistia em outra fonte de renda para as fazendas, quando vendidos para artesãos.

O preparo dos couros, logo após a retiradas dos animais, é feito por dois processos: a secagem e a salga. A secagem é feita pelo estaqueamento ao ar livre, ao calor do sol ou à sombra. Uma solução arsenical imunizante conserva o couro empilhado no galpão e evita a punilha. A salga é praticada com o uso do sal. São causas da desvalorização dos couros: as marcas de carrapato e de sarna, os sonais de berne e, em geral, as moléstias da pele, os arranhões de arame farpado, chifradas e bicheiras, a má conservação nos galpões, a má carneação ou tiragem, as cicatrizes das marcas de ferro e fogo, etc. (LAYTANO, 1952, p. 46).