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1.5 ÍNDIOS E NEGROS NA FORMAÇÃO DO HOMEM DO CONTESTADO

1.5.1.1 Os Kaigang

Os antigos Campos de Palmas, cujas terras, ao Sul, alcançavam as barrancas do Rio Uruguai e, a Oeste, a fronteira com a Argentina, reclamadas por Santa Catarina, estavam sob jurisdição da Província de São Paulo até 1853, quando dela foi desmembrada a Província do Paraná, esta que veio a administrar todo o vasto território (tendo o Rio do Peixe como limite a Leste) até o final da “Questão de Limites” com Santa Catarina, em 1917. Esta parte Setentrional e Ocidental do Território Contestado era, historicamente, ocupada pelos Kaigang, cujos domínios alcançavam também os Campos de Guarapuava e, ainda, as regiões Centro, Norte, Nordeste e Noroeste do Rio Grande do Sul.

Uma vez liquidados os povoados Guarani das reduções de Guaíra e de Itatim e, parcialmente, as do Tape e das Missões, e não mais havendo bandeiras de aprisionamento circulando pelo Território Contestado, em direção ao Sul, toda a área do hoje Oeste Catarinense ficou sob controle exclusivo dos arredios Kaigang, que ratificaram e estenderam seus plenos domínios também ao Sul do Rio Pelotas e do Alto Uruguai.

Os guaranis, além de caçadores e pescadores, frutíveros e meladores, eram agrícolas, com alguma plantação de milho, mandioca, batata-doce, abóbora, amendoim e algodão. Caça e pesca, bem como colheita de mel e frutas silvestres, pediam freqüentes mudanças de residência, em busca de novos centros de abastecimento. A agricultura, no

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Não poucos indígenas sobreviventes do etnocídio promovido pelos bugreiros - que na sua maioria também eram caboclos - no Planalto Catarinense, vieram a mesclar-se com o “homem branco” na Região do Contestado. Pelo que conseguimos apurar em nossas pesquisas de campo, esta mistura étnica deu-se do caboclo homem com a mulher índia, fruto de estupros violentos e de relações por elas consentidas quando se sentindo vítimas de inferioridade.

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Os novos mamelucos catarinenses, que denominamos de “geração do caboclo-pardo”, também herdaram traços dos Kaigang e dos Xokleng, tanto características físicas (pele de cor parda, poucos pelos, cabelos pretos, feição mongolóide primitiva e estatura mediana), como também antigas tradições, linguagem, hábitos, crenças, usos e costumes. De 1994 a 1997, pesquisamos as origens e as etnias de diversos grupos de estudantes, na faixa de 18 a 24 anos, escolhidos dentre os calouros nos cursos superiores mantidos pela Universidade do Contestado em Caçador e em Fraiburgo. Sem surpresa, num universo de 200 alunos pesquisados, encontramos 16, que nos declararam ter seus genitores - pais ou mães - ascendência do índio regional em nível de terceira ou quarta geração. Ora, ao mesmo tempo em que nenhum dos entrevistados assumia, antes da pesquisa, esta ascendência, o trabalho nos deu o índice de 12,5%, em pleno final do Século XX.

entanto, exigia permanência mais prolongada num mesmo lugar. Geralmente após uns seis ou sete anos abandonavam os índios a terra cansada, para continuar sua migração periódica, com a derrubada de mais de um eito de mato contíguo. A abundância de caça e pesca e a boa terra para a agricultura fez deles uma nação forte, capaz de expulsar outras tribos de seus territórios ou de absorvê-los, sujeitando-os ao seu domínio. (BRUXEL, 1978, p. 16-17).

A nação Kaigang - descendente dos Guaianá - que era respeitada pelas tribos dos Guarani desde os tempos do Descobrimento e, pelos bandeirantes paulistas escravagistas dos anos 1600, resistiu bravamente às investidas do homem "branco" até a virada do Século XVIII para o Século XIX, impedindo a ocupação e o povoamento do seu território pelos "civilizados", ao contrário do que ocorreu nos Tapes e nas Missões do Rio Grande do Sul, com a destruição das reduções jesuítas.

As frentes expansionistas paulista-curitibanas, após contatos iniciais com os Kaigang em Guarapuava, conseguiram domesticar alguns grupos, como os chefiados pelos caciques Viri e Condá, o primeiro, apaziguado em Guarapuava e, o segundo, que por volta de 1840 estava assentado nos Campos de Palmas-de-Baixo, mais precisamente na Campina do Irani, junto às cabeceiras do Rio Irani. Ambos foram importantes para a pacificação e o aldeamento dos silvícolas, principalmente Condá, que foi usado para o contato com seus irmãos do Rio Grande do Sul.

A tomada dos Campos de Guarapuava por uma Expedição Real ordenada por duas Cartas Régias de Dom João VI, pode ser considerada efetiva após 1812, quando se obtém a submissão de um grupo Kaigáng da região do Rio Jordão. Este seria o elemento fundamental da subseqüente tomada dos Campos de Palmas, em 1838, e da ocupação paulatina de todo o território Kaigáng na parte meridional da Província de São Paulo (compreendendo os atuais estados do Paraná e oeste de Santa Catarina) e parte norte do Rio Grande do Sul: a utilização de grupos Kaigáng submetidos (os chamados "mansos") contra os grupos que resistiam à penetração portuguesa/brasileira. Evidente que a manipulação correspondia a fatores internos da "geo-política" dos grupos Kaigáng, através de seus caciques principais, para quem aliar-se ao poder dos portugueses, significava contar com importantes recursos contra grupos rivais, especialmente armas de fogo (D'ANGELIS, 1989, p. 93).

Já com as tribos dos botocudos, também descendentes dos antigos Guaianá - entre elas se destacando os Xokleng, a situação foi outra. Muito arredios, permaneceram internados nas matas, vivendo em estado pré-histórico até os primeiros anos do século XX. Dominando as partes altas das serras da Taquara Verde, Espigão e Geral, escaparam de todas as tentativas de pacificação, de catequese ou de aldeamento. Às vezes, atacavam os tropeiros ou casas isoladas, para matar os brancos; noutras, para roubar ferramentas, utensílios, facas e alimentos. Por serem vingativos ao extremo, até os Kaigang os respeitavam.

Desde quando os Guarani foram caçados e aprisionados pelos bandeirantes, para serem escravos dos brancos, os índios não eram respeitados como cidadãos. A segunda metade do Século XIX foi marcada pela atividade dos "bugreiros", sertanistas que se profissionalizaram na matança de índios, às vezes, a soldo dos governos provinciais, às vezes, dos fazendeiros desbravadores, ou mesmo, das autoridades das primeiras vilas. As muitas expedições etnocídias realizadas pelos portugueses e pelos lusos-brasileiros no Brasil Meridional foram mascaradas pelas "tentativas de aldeamentos".

A política do povoamento brasileiro nunca levou em consideração o fato de que os indígenas eram nativos há milhares de anos e que, só por isso, tinham direitos naturais às suas terras. Preocupavam-se as autoridades em como conceder sesmarias aos brancos, pouco se importando se as terras dadas eram ou não habitadas pelos índios. As frentes expansionistas paulista-curitibano-paranaenses entendiam que intrusos eram aqueles que historicamente ocupavam as áreas que lhes interessavam para criar gado, e não elas, constituídas por brancos alienígenas, mas que estavam nas terras novas, trazendo a civilização.

Por terem os Kaigang e os Xokleng resistido à aculturação com o elemento branco, seus sobreviventes conseguiram adentrar no Século XX. E com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais - SPILTN, em 1910, pelo Governo Federal, impôs-se novas tentativas de amparo e defesa dos interesses indígenas no Brasil.

Nos seus primeiros anos, no entanto, na região Sul, o Serviço limitar-se-á às tentativas de contato pacífico com os Xokleng do rio Itajaí do Norte, com os Xokleng da região de Palmas-União da Vitória, com os Kaigang do interior paulista e, na década de 20, com os Kaigang da região de Laranjinha e Cinzas, no Norte do Paraná.

Na região de Palmas, os Kaigang iriam aguardar ainda alguns anos para conhecer uma presença do Serviço. A área de Palmas teria ação de encarregados do Serviço na década de 30, e na área do Xapecó - com terras delimitadas por Decreto Estadual de 1902 - essa presença ocorreria somente a partir de fins da mesma década. Em 1940 é instalado um Posto Indígena no Xapecó (CIMI/SUL, 1984, p. 56).

Encontramos as primeiras referências sobre o aldeamento de um grupo Kaigang em Palmas, entre 1850 e 1852. Deste tempo em diante, ele avolumou-se com a chegada de grupos retirantes de Guarapuava. Em 1859, nele residiam 215 índios, sob as ordens do cacique Viri. Vale destacar, então, que o Posto Indígena de Palmas já existia como “aldeamento de Palmas”, quando da criação da Província do Paraná, em 1853. Constatava-se, dois anos depois, que os Kaigang estavam relegados à indigência e à caridade dos fazendeiros latifundiários. Tratava-se de um aldeamento irregular, ou seja, agrupamento de famílias Kaigang vivendo ao lado dos fazendeiros sem assistência alguma.

Poucas informações restam sobre o desenvolvimento desse aldeamento e por isso mesmo supõe-se ter sido relegado ao abandono por muito tempo, por falta de recursos humanos e financeiros. A verdade é que, em 1884, segundo alguns documentos da época, só havia em Palmas três toldos, isto é, três agrupamentos indígenas, provavelmente despojados das terras a eles destinadas para uso coletivo. Um desses toldos junto à vila de Palmas, outro no local denominado Formiga a três léguas e meia de Palmas. E o terceiro no Passo da Balsa. Consta ainda que o governo pretendia reunir os três toldos num só aldeamento em Formiga, mas o que tudo indica nunca foi realizado. Os índios continuaram despojados de suas terras, na ociosidade e dados à embriaguez e ao furto (BOUTIM, 1979, p. 84).

Em 1882, na grande Comarca de Palmas, foi instalada a Colônia Militar de Xapecó (depois em Xanxerê) que, entre outras finalidades, objetivava a atração dos índios e sua incorporação à civilização branca.

O censo demográfico de 1890 “apontava, para a Comarca de Palmas, um total de 9.601 habitantes, dos quais 4.759 brancos, 2.074 índios, 2.099 mestiços e 669 pretos” (CIMI, 1984, p.38). Neste tempo, existiam os aldeamentos de Palmas, Xapecó e Formigas, mas os índios e mestiços foram contados nos distritos da comarca, que incluía Palmas, Palmas do Sul, Boa Vista, Campo Erê, Mangueirinha, Colônia Militar do Chopim, União da Vitória, mais o distrito do Passo do Carneiro (abrangendo os índios do Baixo Irani, onde, mais tarde, surgiria o Toldo Chimbangue) e da Colônia Militar em Xanxerê (reunindo os Kaigang do Alto Irani)54.

Sobre os remanescentes Kaigang no Oeste Catarinense, há o aldeamento de Xanxerê. Criada em 1967, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI veio a administrar a Reserva Indígena de Xanxerê que nasceu a partir do Posto Indígena Xapecó. A reserva, com 50 mil hectares, havia sido criada pelo Estado do Paraná, em 1902, sendo reduzida, por volta de 1950, a apenas 15 mil hectares pelo Estado de Santa Catarina.

Uma das bandeiras da luta indígena no Oeste Catarinense ainda é o reconhecimento final de toda a área reclamada historicamente pelos Kaigang no Baixo Irani, na margem direita deste rio, denominada Toldo Chimbangue (ou Toldo Irani), cujas terras, em grande parte, foram ocupadas por colonos após a década de 20, quando dos planos de colonização do Alto Uruguai55.

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Ressaltamos a informação deste censo de 1890 na região: 45% da população era formada por índios puros e por mestiços de brancos e índios. Este dado comprova a importância Kaigang na formação étnica do caboclo pardo - o homem do Contestado primitivo - dos setores Setentrional e Ocidental do Contestado, fato que alguns historiadores catarinenses, ainda hoje, insistem em menosprezar, como se esta comprovada mistura fosse irreal, e também fato que descendentes miscigenados de índios pensem que a mescla tenha sido algum ruim.

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Hoje, pode-se encontrar índios Kaigang remanescentes nas aldeias do Oeste Catarinense, instaladas nas reservas de Condá, de Chimbangue 1 e 2, de Xapecozinho, do Imbu e de Pinhal, nos municípios de Chapecó, Seara, Saudades, Abelardo Luz, Ipuaçu, Marema e Xanxerê. Tem-se ali um ambiente de pobreza e abandono, miséria material e

MAPA 4:

DISTRIBUIÇÃO DAS TRIBOS INDÍGENAS CONHECIDAS

EM SANTA CATARINA E NO CONTESTADO – SÉCULOS XVI A XIX

Desenho de Nilson Thomé, sem determinação de escala, para simples visualização.

Fonte: BRASIL. Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendaju. Rio: IBGE, 1981. Mapa. Anexo.