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2.2 A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO CABOCLO

2.2.4 Reflexos da Gesta Carolíngia

Para quem não está familiarizado com estudos históricos, a expressão “Gesta Carolíngia” pode parecer estranha. “Gesta” significa feitos guerreiros, façanhas, acontecimentos históricos ou celebração de grandes realizações. “Carolíngio” é a atribuição ao pertencente ou relativo à dinastia de Carlos Magno, o Rei dos Francos e Imperador do Ocidente (768-814). “Gesta Carolíngia”, portanto, significa as grandes façanhas guerreiras do Imperador Carlos Magno99. E Carlos Magno tem tudo a ver com o Contestado, fato histórico ainda que dele distante mais de um milênio.

Era difundida no Contestado a História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França,

seguida de Bernardo Del Cárpio que venceu em Batalha aos Doze Pares de França, de autoria

de Alexandre Caetano Gomes, traduzida para o português por Jeronymo Moreira de Carvalho, obra composta por duas partes e nove livros, editada pela Livraria Garnier, do Rio do Janeiro, no século XIX. E havia outra, Histórias do Imperador Carlos Magno ou os Doze Pares de França, editada pela Livrarias Império, também do Rio de Janeiro.

O Tenente Herculano Teixeira d’Assumpção, que participou da Guerra do Contestado, expôs sua percepção de ser esta literatura “comum” nos lares da Região do Contestado:

Esses nossos patrícios que, sob o império do malfazejo obscurantismo, procuravam, grosseiramente, praticar a onirocricia, têm desusado temos aos espíritos maus – talvez o Aguian dos nossos supersticiosos oborigenes ou alguns novos gênios dirigidos pela figura mythica de Ophineo. Além disso, são incorrigíveis admiradores das lendas a respeito do grande filho de Pepino – o Breve, o heróico Carlos Magno, rei dos Francos e imperador do Occidente. Em geral, em todos os lares, desde os mais fartos aos mais necessitados, é commum a existência do conhecido livro phantasioso “A Historia de Carlos Magno ou os Doze Pares de França” – e isso também fal-os propender para as aventuras (ASSUMPÇÃO, 1917, p. 210-211).

À imprensa, a influência de Carlos Magno no Monge José Maria, em 1912, também não passou despercebida: “José Maria fez da história do famoso rei a sua bíblia. Que teria nesse livro que tanto impressionou o espírito grosseiro desse caboclo? Qual seria a façanha que o levou a fazer desse livro o seu evangelho?” (Diário da Tarde, 1 nov. 1912). Esta influência, presente também dois anos depois, novamente é observada pelos correspondentes dos jornais:

99

Imperador em 768, com apenas 28 anos de idade, em latim chamavam-no de Carolus Magnus ou Carlos - o Grande (Cherlemagne, em francês). Em português, consagrou-se como Carlos Magno. Envolvido com a religião católica, disposto a estabelecer a supremacia cristã e a promover o enriquecimento espiritual e educacional do seu povo, ele importou estudiosos e deflagrou o renascimento cultural. Vêm deste tempo, por exemplo, a padronização dos caracteres da escrita, a minúscula carolíngia, bem como os cantos gregorianos e a instituição do dízimo na Igreja. Carlos Magno comissionou um fiel corpo de inspetores (missi domini), que andavam aos pares. Estes ficaram conhecidos na História como os “Pares de França”. O saudosismo dos seus admiradores ensejou lendas sobre o velho guerreiro, que se espalharam pelo mundo cristão.

Acreditamos que a leitura demasiada do pândego Carlos Magno, que existe em profusão pelas casas sertanejas, ocasionou o desequilíbrio dessa pobre gente, que no dizer de Euclides da Cunha, está atrazada de 400 anos em civilização. As estórias cavalheirescas dos Roldão e Gui de Borgonha, pares do grande Imperador, fizeram virar a cabeça dos já não mui equilibrados José Maria, velha Querubina e outros pobres diabos” [...] “Eram os 12 pares de França, isto é, 24 combatentes dos mais fortes e mais fanatizados acompanhados de outros, infelizes victimas das artimanhas do tal Eusébio (Folha do Comércio, 26 mar. 1914).

A ignorância dessa gente é absoluta. A maioria não sabe contar além de cem! Raro é o que sabe ler e deste o livro predileto é uma maravilhosa Historia de Carlos Magno que entusiasma e alucina o seu espirito primitivo com aventuras extraordinárias de heróis invenciveis, homens que sozinhos atacam e derrotam exércitos aguerridos. E o caboclo acredita piamente nas façanhas de Roldão, e admira maravilhado a bravura cavalheirosa de Oliveiros (O Paraná, 21 fev. 1914).

Alfredo de Oliveira Lemos, descrevendo a participação de líderes rebeldes na Guerra do Contestado, da qual foi testemunha ocular, destaca em suas remiscências, por exemplo, sobre eles:

[...] Elias todos os dias mandava o povo formar, e gritando viva a monarquia, São Sebastião e José Maria. Elias tinha uma esperança ou uma fé que quando estivessem em forma, dando vivas, aparecia o exército de São Sebastião, e que ali vinha a monarquia”. [...] Alonso de Souza: “Foi organizado os pares de França; eram 24 homens armados de espada”. [...] Adeodato Manoel Ramos: “tendo sido nomeado comandante dos pares de França... (LEMOS, 1989, p. 46-48).

Era certo que José Maria levava consigo a História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França e nas horas de folga fazia a leitura de capítulos aos que o seguiam. Em estudo que abrange o país inteiro, mas, em particular o Nordeste, notou-se acertadamente que esse livro, foi, até poucos anos, o mais conhecido pelo povo brasileiro do interior.

Nos sertões do Contestado, àquela época, era comum a existência, mesmo longe das vilas, de uma velha edição dessa história. Um repórter observou que entre os sertanejos alfabetizados ‘o livro predileto é uma maravilhosa História de Carlos Magno que entusiasma e alucina o seu espírito primitivo com aventuras extraordinárias de heróis invencíveis, homens que sozinhos atacam e derrotam exércitos aguerridos’ (jornal Pa. 21-1-1914). Ignora-se de que maneira José Maria comentava as façanhas dos cavaleiros da Távola Redonda, mas – como irão confirmar os episódios subseqüentes – essa literatura que exaltava a coragem pessoal, a luta contra os “infiéis” e a fraternidade entre os campeões, marcaria, diretamente os acontecimentos (QUEIROZ, 1981, p. 82- 83).

Durante o movimento messiânico do Contestado, encontramos três fases distintas de inspiração nas histórias de Carlos Magno para a formação dos Doze Pares de França caboclos:

- A primeira, em 1912, quando o Monge José Maria estava acampado em Taquaruçu e ali, para ele, os caboclos formaram uma guarda de honra de 24 cavaleiros. Esta guarda acompanhou- o até o Irani, em outubro deste ano.

José Maria permaneceu pouco mais de um mês em Taquaruçu. Dirigia terços, receitava narrativas sacras e contava histórias de Carlos Magno. Naturalmente, continuava receitando. Já em Campos Novos parece que ele havia organizado um séquito de 25

apóstolos. Agora, em Taquaruçu, promoveu uma guarda de honra, composta de 24

homens e mais o comandante, com a denominação de Doze Pares de França, todos montados em cavalos brancos. É possível que tenha se inspirado não apenas no livro de Carlos Magno, como na organização das cavalhadas, em que os cristãos em sua luta figurada contra os mouros, costumavam ser denominados pares de França (QUEIROZ, 1981, p. 85).

- A segunda, um ano após o Combate do Irani, de curta duração, verificou-se entre o final de 1913 e o início de 1914, quando os caboclos, identificados como fanáticos, agora consideravam "Pares de França" os seus principais líderes, que integravam o grande Conselho de Comandantes, criado para organizar a defesa de Taquaruçu e a retirada para o Norte. Quando o menino-vidente Joaquim assumiu o comando espiritual dos caboclos da cidade-santa de Taquaruçu e os fanáticos mobilizaram-se para organizar o reduto de Caraguatá, suas lideranças assumiram papel igual ao dos pares (inspetores) de Carlos Magno. “[...] evidentemente, esse conselho dos 12 pares é constituído por aqueles fanáticos que são intermediários entre o vidente Joaquim e a totalidade dos crentes” (QUEIROZ, 1981, p. 125). Alguns destes "novos" Pares de França eram os mesmos do agrupamento anterior.

- A terceira fase, mais demorada, que iniciou na segunda metade de 1914 e se estendeu até agosto de 1916, foi observada quando foram constituídos mais de um grupo de Pares de França, distribuídos em vários piquetes de elite do Exército Encantado de São Sebastião, com homens escolhidos entre os mais experimentados na arte da guerra, os mais valentes e destemidos. Aqui, “[...] teve influência também a reinterpretação da História de Carlos Magno, cujos "reis", "nobres" e "fidalgos" eram considerados modelos de coragem, fraternidade e devoção a uma causa” (QUEIROZ, 1981, p. 141). Nesta etapa, os Pares de França não eram mais os membros do Conselho de Comandantes, pois cada conselheiro recebeu a incumbência de comandar um grupo de Doze Pares. Foi o caso, por exemplo, de Adeodato, que, além de membro do Conselho, passou a ser também comandante de piquete de Doze Pares de França.

Os caboclos colocaram o mundo das lendas de Carlos Magno e dos Doze Pares de França como reminiscência, que atenderia às suas expectativas de uma irmandade moderna ideal. Os tempos da dinastia carolíngia teriam sido um referencial.

A incorporação da lenda de Carlos Magno no universo ideológico da irmandade significou a busca de um nexo entre um presente intolerável e um passado percebido como a ordem justa e boa. As angústias concretas não se reduziam, desse modo, ao presente vivido, não apareciam como experiências singulares de privação, sofrimento e opressão, mas adquiriam o estatuto de um corte dentro de um tempo grandioso, tensão e crise de passagem entre uma ordem pretérita que degenerou e a construção de uma ordem sagrada. Desse ponto de vista, a instituição dos Doze Pares de França, a leitura pública da gesta carolíngia e a utilização do "tempo da guerra de Carlos magno" como referente cronológico, ganham um sentido mais profundo (MONTEIRO, 1974, p. 119).

Na Guerra do Contestado, o Exército Encantado de São Sebastião destacava seus caboclos mais valentes nos piquetes de cavalaria, organizados como “Doze Pares de França”, assim copiando um modelo que surgiu na História como “cavalaria avançada”, com cavaleiros escolhidos entre os melhores nas “cavalhadas”, um torneio muito comum na região (até hoje) que, em dias de festa, dividia os cavaleiros em cristãos e mouros, lembrando os tempos medievais, quando simulavam jogos e lutas, com lanças e espadas.

As cavalhadas são presenças constante na maioria das grandes comemorações brasileiras, sejam elas cívicas ou religiosas. Apesar de diversas vezes não haver a representação explícita de um rei, em muitas cavalhadas os cavaleiros se dizem os “pares de França do imperador Carlos Magno”. Estranho caminho que faz da história uma grande metáfora (SCHWARCZ, 1998, p. 273).

Eram 12 os cavaleiros de Carlos Magno, mas 24 deles formavam um bloco no exército caboclo, pela interpretação matemática que 12 pares totalizam 24 integrantes. Guerreando nas linhas de frente, seus feitos viraram mitos em toda a região. Se a adoção do modelo dos Pares de França, por si só, atesta a influência da gesta carolíngia no imaginário dos nossos caboclos, temos, ainda, outras representações simbólicas que reforçam a tese da interação entre o modo de pensar, sentir e de agir dos "fanáticos" do Contestado e as lendas sobre Carlos Magno, associadas ao sebastianismo, destacando-se, entre estas representações: a utilização preferencial da arma

branca (facas, facões e espadas) pelos combatentes; a preferência pelos combates corpo-a-corpo

contra os militares, a exemplo do que se fazia nas antigas guerras; o uso de amuletos (patuás), com orações que protegiam os santificados apóstolos-caboclos das agressões dos infiéis; a adoção da bandeira branca com a cruz verde, símbolo do Exército Encantado de São Sebastião; o modelo de irmandade que orientava a formação dos redutos, onde tudo era de todos, a defesa da honra, mais a lealdade e o amor aos companheiros, paralelamente aos sentimentos de repulsa aos infiéis e ao desejo de vingança pelas agressões; a idéia de uma monarquia orientada por uma ordem divina, para a instauração de um mundo novo, marcado pela justiça social; a decisão pela deflagração da guerra santa, iniciada no inverno de 1914 e conduzida como forma de guerra de

conquista; e o respeito ao cristianismo, pela manutenção de um catolicismo rústico, mas modificado pelos valores de uma nova santa religião.