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2.2 A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO CABOCLO

2.2.1 Religiosidade Popular no Contestado

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O produto intelectual da nossa primeira incursão sobre o sentimento religioso do Homem do Contestado resultou, em 1999, no livro “Os Iluminados - Personagens e Manifestações Místicas e Messiânicas na História do

Contestado” (Florianópolis: Insular, 280 páginas), já entregue à sociedade como mais um trabalho, fruto do projeto

Uma expressão muito usada na historiografia e nos compêndios religiosos é Religiosidade Popular, ou Religião do Povo. Podemos entendê-la a partir da análise do “catolicismo popular”. No Brasil, ainda no século passado, havia dois tipos de catolicismo: o urbano, chamado “renovado”, que aglutinava os habitantes das cidades (caracterizado como romano, clerical, tridentino, individual e sacramental) e o rural, chamado “tradicional”, que predominava fora das cidades (caracterizado como luso-brasileiro, leigo, medieval, social e familiar).

O catolicismo popular, (tradicional) em suas diferentes manifestações históricas, esteve sempre bastante próximo dos cultos africanos e ameríndios, gerando não poucas vezes expressões religiosas que podem ser consideradas como verdadeiro sincretismo religioso. A partir do século passado o culto popular católico sofreu também influência do espiritismo e do protestantismo. Deste modo, não é raro encontrar católicos que freqüentam a umbanda, o espiritismo ou assembléias protestantes (AZZI, 1978, p. 11).

O populismo católico chegou às terras brasileiras em meados deste século, quando a Igreja ainda estava aliada ao sistema de opressão, promovido pelas classes dominantes, com a catequese sendo usada como instrumento de dominação. A catequese “em vez de libertar, escraviza” (HOORNAERT, 1978, p. 123). A ordem ainda era no sentido de combater as formas de paganismo, superstição, ignorância, sortilégio e pacto com o demonio, da religiosidade popular, por influência da ortodoxia romana.

Na época do Contestado, o panorama histórico procura negar até mesmo o estado de homem ao sertanejo. Logo, a ‘práxis’ religiosa lhe garantia a possibilidade de construir sua própria identidade, que pela religiosidade popular, ele reproduzia conhecimentos antigos e recriava novos conhecimentos, capazes de dar sentido ao seu dia-a-dia (OLIVEIRA, 1991, p. 35).

Referindo-se à religiosidade expressa nos movimentos messiânicos de Canudos, Contestado e Caldeirão, FACÓ (1975, p. 42) explica que parece ser uma tendência natural das massas rurais espoliadas, em determinadas condições, criar uma religião própria, que lhe sirva de instrumento em sua luta pela libertação social, como o cristianismo foi, em seus primórdios, religião de escravos e proletários da época.

[...] a religiosidade popular, entendida enquanto uma concepção de mundo, é uma das possibilidades dos homens simples, ou seja, das classes subalternas. É oposta à religião oficial, pois esta forma de religião supõe uma ruptura com a hierarquia eclesiástica da Igreja Católica (CHAIA, 1981, p. 35).

Nesta religiosidade, o padre seria uma figura dispensável, já que o contato que se faz com Deus seria direto, sem a interferência dos sacerdotes, e que, neste sentido, o Espírito estaria no corpo dos homens, no grupo reunido. “[...] o que encontramos na religiosidade popular é uma

série de crenças e de práticas religiosas que não se enquadram com a religião proposta pela hierarquia oficial da Igreja Católica” (CHAIA, 1981, p. 35). Este é também o pensamento de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1973), para quem, do ponto de vista religioso, “o povo brasileiro foi obrigado a se adaptar a duas condições fundamentais, desde os primeiros tempos da colonização: quantidade mínima de sacerdotes e falta de conhecimentos religiosos” (p. 75).

A chamada religiosidade popular e o chamado catolicismo rústico seriam então profanos em relação à religião oficial (Igreja Católica), só esta tida como sagrada (oficial). Isso nos remete à abordagem de alguns fundamentos históricos sobre religião.

O totemismo e o animismo influenciaram todas as religiões que surgiram depois, inclusive a Católica. Tanto se impregnaram nas religiões que, em alguns casos, até as superaram, como que dando uma imensa volta, vindo do passado distante e paralelamente a elas chegar aos nossos dias, alcançando a população do Contestado de menos cultura ou de quase nenhuma cultura. Os valores cristãos da Igreja do Século XIX, aqui, foram preteridos aos valores do Império Carolíngio do Século IX. A Igreja Católica conservadora da época da Guerra do Contestado, aqui representada por padres franciscanos oriundos da Alemanha, não aceitava isso.

A religiosidade popular na Região do Contestado é tida historicamente como sendo o “Catolicismo Rústico”, manifestado através das práticas mágico-religiosas ligadas ao tratamento de moléstias, a recursos de auto-defesa e proteção, e à tradição das festas dos padroeiros locais. Ele concorda que a história desta religião popular está ligada de forma definitiva aos feitos e às lendas de monges, beatos rezadores e curadores itinerantes:

Em contraste com o padre - porta-voz de uma instituição estranha - que, saindo de sua sede paroquial, situada numa vila ou cidade, também percorria o sertão, o ‘monge’ vivia no sertão. [...]. Ao contrário do padre, porém, esses estranhos se deixavam assimilar. Conquanto vivessem uma vida apartada e cultivassem hábitos mais ou menos ascéticos, passavam a fazer parte integrante da vida social sertaneja, como se fossem uma florescência natural da religião católica rústica. Representava o ‘monge’ um papel equivalente ao do padre, mas estava a serviço e era a expressão da autonomia do religioso rústico (MONTEIRO, 1974, p. 81).

A Igreja Católica mantinha paróquias nas únicas poucas cidades catarinenses existentes no Contestado no início do século, em Lages, Curitibanos, Campos Novos e Canoinhas e, nas cidades paranaenses de União da Vitória, Rio Negro e Palmas, com um mínimo de padres atendendo os fiéis em demoradas viagens pelos sertões. Neste quadro de distanciamento entre a hierarquia católica e o rebanho cristão, despontaram na região pessoas “diferentes”, peregrinas e eremitas, algumas consideradas “monges” pela população regional por se exercitarem como

pregadoras e curandeiras, outras delas, profetas, visionárias, charlatães ou fanáticas. Em algumas localidades do Planalto Catarinense, entre os caboclos, existiam ainda os “rezadores”, pessoas que se ocupavam das atividades e manifestações religiosas populares nas grandes fazendas.

Persiste no tempo presente, na Região do Contestado, a herança cultural da referência a João Maria como “santo” e a ele ainda hoje a população de maior idade se refere ao “São” João Maria. Isso para o caboclo era sagrado, mas para a Igreja era uma heresia. Na atualidade, observamos que sacerdotes e bispos mais pacientes e progressistas até que toleram a menção, pois ela faz parte do folclore regional. Da tradição de João Maria, o que muito se observa é o respeito. Esta é a palavra-chave para definirmos a veneração ao “santo”. A par de outros santos canonizados pela Igreja, é ao “São João Maria” a quem muitas pessoas recorrem em momentos de aflição. Na sua religiosidade popular, o Homem do Contestado Primitivo defendia a santidade do monge mesmo sem tê-lo conhecido e considerava hereges aqueles que pensarem profaná-lo.

Como adjetivo, entre outras aplicações, o termo “São” é usado pela Igreja Católica, empregado quando os nomes dos santos a que se junta começam por consoantes: São Pedro, São Paulo, etc., pois que, quando os nomes começam com vogal, usa o termo “Santo”, por exemplo: Santo Antonio, Santo Agostinho, etc. Por sua vez, o adjetivo “santo” tem várias aplicações, empregando-se não apenas às pessoas canonizadas pela Igreja, como também, por exemplo, a locais: cemitério (campo santo), igrejas (templos santos) ou a momentos: celebração eucarística (santa missa). No caso da referência a João Maria como santo, fica o entendimento de que o termo se aplica a quem está puro, isento de imperfeições, que não tem culpas, que pode servir de modelo religioso, às pessoas virtuosas, respeitáveis, que vivem de acordo com a lei de Deus, aos bondosos, aos que inspiram benevolência e compaixão, a quem é digno de respeito e veneração pelas suas virtudes, e a tudo aquilo que é digno de respeito, que não pode ser violado sem que se cometa uma espécie de profanação.

A figura de “São João Maria” passou a integrar o rol dos santos mais venerados pelos caboclos da região, inclusive sendo invocado nas ladainhas pelos “puxadores de reza”, ao lado de São Sebastião (o guerreiro espetado de flechas), de São João dos Pobres (o pobre pastor), de São Gonçalo (o padroeiro dos violeiros), de São Benedito (o homem de cor), do Anjo Custódio (da adaga inflamada), de São João Batista, entre outros.

Observamos que, dentro do período do nosso estudo, não foram poucas as manifestações dos representantes da Igreja Católica no Sul do Brasil, contra alguns costumes e tradições das

pessoas mais simples, considerados profanos para a sagrada religião. Existem muitas discussões a respeito dos termos “sagrado” e “profano”. São dois termos que têm grande riqueza de significados e precisam ser entendidos conforme suas aplicações, caso a caso. Por uma inferência legítima, “[...] é-se levado a afirmar que ‘profano’ e ‘sagrado’ distinguem-se, não como categorias antiéticas, gêneros opostos, mas como gêneros diversos" (MONTEIRO, 1974, p. 173). Assim, dependendo do ponto-de-vista, não necessariamente as palavras conflitam entre si ou têm sentidos antagônicos.

Coinforme a Igreja Católica, por sagrado, é tudo aquilo que recebe a consagração, o caráter de santidade por meio de cerimônia religiosa; também, as pessoas que inspiram ou devem inspirar veneração profunda e respeito religioso e, ainda, o lugar privilegiado, vedado a profanações. Um símbolo cristão, uma cruz, por exemplo, passa à condição de “sagrada” ao ser benta por um sacerdote. Um templo, uma capela, são locais sagrados desde que a Igreja os consagre. A celebração eucarística é um ato sagrado para o catolicismo. O padre é um homem sagrado, porque é consagrado à missão do sacerdócio. Um velório ou um sepultamento são momentos sagrados porque exigem respeito.

Ainda conforme a Igreja Católica, por profano, tem-se tudo aquilo que é estranho à religião, contrário à “verdadeira” religião, herético; também pessoas não iniciadas em certos conhecimentos, em maneiras de pensar, sentir e agir. Vem do verbo “profanar”, que significa tratar com irreverência ou sem respeito, ou injuriar, ofender, manchar e macular. Os monges e profetas daqui seriam, então, profanos por não estarem dentro da Igreja, por serem hereges. Os “quadros-santos”, implantados pelos caboclos nos acampamentos (redutos) durante a Guerra do Contestado, seriam profanos, da mesma forma como os ritos que neles se praticavam. As cruzes plantadas por João Maria seriam profanas, por não terem sido consagradas pela Igreja. Poderiam ser consideradas profanas as pregações dos monges por não terem eles autorização da Igreja para evangelizar. Esta era a visão da Igreja, da aristocracia, até recentemente.

Mas, contrariando a Igreja, para o povo simples, heresia seria chamar de profanos os seus monges, evangelizadores e profetas, como José Maria, bem como a herança cultural que legaram, esta por ele considerada sagrada. Nossa gente, assim, sem antagonismos, acolheu como sagrados, tanto os símbolos da Igreja, como aqueles que ela mesma elegeu.

Não devemos esquecer o duplo sentido da interpretação dos dois termos. Um “pouso” de São João Maria, um “ôlho d’água”, um “cruzeiro de cedro” ou uma árvore, considerados

sagrados para o povo, por força da magia, podem ser profanos para a Igreja e para quem neles não crêem, mas isso não significa que aí existe oposição. Para os católicos, ouvir os monges pregar o Evangelho seria um ato de profanidade. Antigamente, profano servia para designar apenas o que estava fora de recinto consagrado, mas não necessariamente em oposição ao sagrado, pois poderia vir a sê-lo posteriormente, se e quando acolhido pela Igreja.

Em diversos “pousos” de São João Maria (locais onde este monge repousava), espalhados pela Região do Contestado, são deixados os “ex-votos” de pessoas que se disseram curadas ou tiveram graças alcançadas, como velas, muletas, peças de vestuário, próteses, etc. Os “ex-votos” são os testemunhos públicos das graças alcançadas e, ao mesmo tempo, das promessas cumpridas. Explicando que esta tradição no Brasil nos vem desde o período colonial92.

Posta claramente, no cotidiano, a dissensão entre o mundo oficial e o dos caboclos acelera entre estes, o processo de articulação de sua própria visão de mundo acompanhado, como não poderia deixar de ser, do fim das ambigüidades até então admitidas, como é o caso das "associações morais" (sistema de compadrio) entre caboclos e "coronéis" e o caso das relações de identidade entre o catolicismo erudito de frei Rogério e o catolicismo popular dos monges.

Ao articular sua visão de mundo, o caboclo desarticula o que corresponde à normalidade vigente no mundo oficial da República Velha, o mundo dos "coronéis", do padre, das companhias Brazil Railway e Brazil Lumber e dos soldados.

A religiosidade popular do Contestado dirigiu a ação dos sertanejos em sua rejeição à realidade opressora. Esta ação, por sua vez, implicou na necessidade de se repensar seguidamente a própria representação religiosa, conferindo-lhe novas explicações, de modo a possibilitar a continuidade e a coesão do movimento rebelde, acentuada limitação do nível de saber vigente, frente à presença de profundas transformações históricas, promoveu a elasticidade do discurso religioso, que a tudo explicou e a tudo deu sentido. Esse discurso religioso representou para os caboclos, ao mesmo tempo e contraditoriamente, uma limitação e uma possibilidade. Foi a resposta concreta aos problemas vividos por eles (AURAS, 1997, p. 154-155).

No final do século XIX as instituições povo & Igreja estavam longe um do outro, na Região do Contestado. Em 1891, Lages contava com apenas um padre - Antônio Luiz Esteves de Carvalho - que faleceu em outubro deste ano, quando o Bispo do Rio de Janeiro confiou a paróquia lageana aos franciscanos, chegando por primeiro Frei Amando Bahlmann e, em seguida,

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Todo o conceito antigo de religião fundamentava-se numa espécie de aliança entre o homem e a divindade. Nessa aliança Deus fez a sua parte atendendo às súplicas dos devotos, e estes por sua vez manifestam sua gratidão cumprindo as promessas feitas e deixando junto dos lugares de culto seus ex-votos. Eis um exemplo: caso se curar ou receber proteção para suas plantações, o fiel promete oferecer algo ao santo de sua devoção. Recebida a cura ou a graça pedida, o fiel se vê na obrigação de pagar o voto feito. Dessa transação com o sobrenatural resulta com freqüência a confecção dos ex-votos. Há ex-votos simples, como fitas que são penduradas ao pé da imagem do santo, e outros mais elaborados, como fac-símiles em cera ou madeira de partes do corpo humano (AZZI, 1978, p. 84).

Frei Herculano Limpinsel, mais os irmãos leigos Frei Mariano e Frei Maurício Schmalohr, seguidos, em fevereiro de 1892, por Frei Rogério Neuhaus.

A Guerra do Contestado também foi uma “guerra santa” à moda cabocla e, à medida em que acirrou ânimos, revelou o “fanatismo”. Fanático é aquele que se considera inspirado por uma divindade, iluminado por ela, é o exaltado, o faccioso, o entusiasmado. Nossos sertanejos foram então chamados de "fanáticos", termo que se empregou também para referenciar os líderes de outros movimentos messiânicos, mas eles não assim se consideravam: chamavam-se de “irmãos”. Foi a aristocracia quem deu ao termo “fanático” uma conotação altamente pejorativa, aqui vinculada à de jagunço, bandoleiro e bandido93.

O fanatismo, sem dúvida, foi um dos ingredientes que caracterizaram as manifestações de parte dos caboclos - não de todos - durante o conflito, sendo observado nos sertanejos e camponeses que aderiram cegamente à então nova ordem milenarista, no choque aberto entre a religiosidade popular e a religião da Igreja dominante, a Católica.

O fenômeno messiânico aconteceu quase sempre fora da Igreja constituída, e não raras vezes contra ela. É verdade que, em grande parte, esses movimentos pecaram por fanatismo, utopia e pressa, enguetamento, e mentalidade demais marcada pelos mitos e magias” (BROD, 1974, p. 22).

O fanatismo no Contestado havia revelado “uma drástica separação entre a ideologia das classes dominantes e camadas médias urbanas e a ideologia dos setores empobrecidos da população rural” (FACÓ, 1978, p. 41). O caboclo do tempo da Guerra do Contestado praticava uma religião típica a partir da sua ideologia:

No nível cultural de desenvolvimento em que se encontravam as populações rurais, mergulhadas no quase completo analfabetismo e no obscurantismo, a sua ideologia só podia ter um cunho religioso, místico, que se convencionou chamar de ‘fanatismo’. Sob esta denominação têm-se englobado os combatentes de Canudos ou do Contestado, do Padre Cícero ou do Beato Lourenço: ‘fanáticos’. Quer dizer, adeptos de uma seita, ou misto de seitas, que não a religião dominante. Só que a seita por eles abraçada, fortemente influenciada pela religião católica, que lhe dá o substrato, era a sua ideologia (FACÓ, 1978, p. 39-40).