• Nenhum resultado encontrado

7.4 Procedimentos de análise

8.2.3 Deficiência ou deficiências?

Os alunos com deficiência carregam uma marca comum, no entanto não são considerados todos iguais entre si, há diferenciações fundamentadas nos diferentes tipos de deficiência. Isto acarreta uma dificuldade no momento de demarcar o que é ser ou não “deficiente” de forma geral, visto que a deficiência mental e a motora ou sensorial (comumente englobadas no mesmo grupo) são consideradas marcadamente diferentes,

podendo-se dizer que são tecidas diferentes teorias a fim de dar conta de cada uma delas separadamente.

Ah! Uma série de coisas que diferencia. A questão do aprendizado, a questão assim que a gente falava aqui, da deficiência realmente demonstrada, aquela física né? Por que a física, você olhou e está vendo que a pessoa tem uma deficiência. E a criança que não apresenta fisicamente nenhuma deficiência, você já vai analisar a questão mental, se aquela criança tem facilidade de aprendizagem, se não tem. É, eu acho que a gente tem que analisar esses dois lados, físico e não físico.

A deficiência física, então, parece ser mais fácil de ser diagnosticada, visto que está no corpo, é algo visível, perceptível, enquanto a deficiência mental é mais relativizada e é de difícil diagnóstico. No entanto, é um elemento complicador o fato de que muitas vezes ambas se encontram imbricadas e uma deficiência física pode gerar uma mental e vice-versa.

Agora pode ser físico, mas esse físico dificultar a aprendizagem, dificulta tudo, entendeu?

No que se refere ao que as professoras denominam deficiência mental ou, mais comumente DM, o diagnóstico é normalmente complexo e fluido. Ele implica uma série de valores compartilhados pelo grupo, de forma que qualquer desvio de conduta, qualquer comportamento incomum e, principalmente, a dificuldade de aprendizagem, parece ser suficiente para enquadrar o aluno nesta ampla categoria. Desta forma, as docentes vivenciam quase uma obsessão por diagnosticar qualquer aluno difícil como tendo uma “deficiência”, “problema”, “dificuldade” ou “doença” mental, engendra-se, portanto um perigoso jogo de “achismos”, no qual sempre quem perde são as crianças.

E SERIA ESSA DIFERENÇA QUE VAI DETERMINAR SE UMA CRIANÇA TEM UMA DEFICIÊNCIA OU NÃO? É ISSO OU NÃO? -É, no caso é um comportamento né, um comportamento assim diferente... Ou pode ser agressivo demais, uma criança muito ãããã, uma criança que briga por tudo, que tem uma reação, né, violenta.... Ou então a criança que de repente é muito apática, que é justamente o oposto, né?

...eu descartei a possibilidade dele ser hiperativo, porque uma criança hiperativa, jamais ela ia se concentrar mesmo que eu desse enes atividades tranqüilas.Então, era questão de limite mesmo, na época o que eu notava era a questão do limite.

...o desenvolvimento dela é excelente, o que me preocupa é o balançar agora assim e para frente e as vezes rodando assim.Tipo assim, eu pensei já numa questão de autismo. Mas já descartei, porque ela se concentra e a gente sabe que o autista ele não se concentra.Mas parece que tem outra síndrome, o que destaca a necessidade da gente estudar mais.

Neste jogo, as dúvidas são constantes e as informações raras, logo a palavra do médico sempre prevalece. Comumente o diagnóstico médico é acatado sem discussões, mesmo que para as docentes as evidências provem o contrário. A opinião do especialista é tão decisiva

que ela demarca uma nova realidade e não apenas uma nova forma de enxergar a mesma realidade.

Até os 3 anos ele era uma criança normal, depois é que descobriram. Mas eu acho que ele está bem pior.

É, mas pode ter crianças também que possa até ter alguma deficiência, mas a gente não perceba. X mesmo, no início, eu não imaginava, ele tinha uns comportamentos mais... - A gente chegou a encaminhar para o psicólogo. –É, e isso foi comprovado, né, ele foi para o neurologista. -Eu percebia que ele tinha uma hiperatividade, mas não a ponto de ser uma coisa como esta.

Ele tinha alguma dificuldade, assim, ele tinha uma dificuldade, ele era, ele era, ele teve problema no parto e tal, que comprometeu, mas para mim ele não era. Ele não era minha gente, o único problema dele era esse, que realmente enchia o saco.

Esta última fala ilustra bem o conflito que se estabelece quando os critérios do especialista se chocam com os próprios critérios. O fato de existir um correspondente físico para um problema comportamental põe em xeque a noção antes referida de que um mesmo aluno não pode ter uma deficiência e produzir satisfatoriamente. Neste caso, vê-se que a professora fica confusa em afirmar se a criança tem ou não uma deficiência, visto que ela não apresenta tanta limitação, o que seria fundamental para se considerar alguém “deficiente”.

No que se refere na constatação das origens, ou causas da deficiência, as variações também estão presentes. As docentes fundamentam a deficiência sobre as causas mais diferentes possíveis, que vão desde um aspecto físico como a falta de alguma substância no cérebro, ou a falta de um sentido desde o nascimento, até a associação com um estilo de vida reprovável. No entanto, cabe salientar que na discussão das causas mantêm-se as diferenças entre a deficiência mental e as demais, sendo a primeira mais complexa.

As deficiências físicas podem surgir ao acaso, por questões biológicas incompreensíveis, por complicações na gestação ou no parto, por falhas no processo de desenvolvimento, como pular alguma fase, ou ainda por acidente. As complicações na gestação são comumente justificadas por alguma conduta da mãe, como tomar remédio para abortar, uso de álcool e drogas, entre outros.

Já as deficiências mentais são mais complexas quanto a sua origem, visto que são mais fortemente associadas a um estilo de vida, ou alguma conduta reprovável, às novas formações familiares e à pobreza. São vinculadas com o contexto em que se insere a criança, principalmente no período gestacional, mas também não só no início da vida, como atualmente. No entanto, as origens puramente biológicas não deixam de ser consideradas.

Um curso que a gente fez, que eu tava fazendo, ele pontua muito bem isso, que fala dos traumas que acontecem, né? -E um problema só no cérebro, de oxigenação, ele vai dar problemas seriíssimos na criança, né isso? E as vezes é uma coisa pequena que com o

tempo vai dar... -Como o engatinhar, né, a criança não engatinhar, né? Uma etapa queimada que no futuro vai refletir em outras coisas. -É, e ai você vai ver depois na fala, na voz, na locomoção, no que for.

Tem Y que ela fica aérea... por que eu sei que a mãe dela é alcoólatra, né? Eu não sei se a mãe dá bebida a ela. Porque as vezes o jeito que ela chega na sala parece que é como se ela tivesse alcoolizada... -É, mas eu já vi que tem uma doença que se a mãe beber muito na gravidez, pode afetar, tem uma síndrome que a criança nasce.

Então é assim, isso são muitas coisas que levam, vamos dizer, a uma deficiência... Então, o que é conseqüência das coisas que ela passou, né? Ou da mãe na gestação, né, que tomou um remédio para abortar, que não se alimentava direito e ao nascer a criança também não foi bem alimentada. Então tem uma série de coisas que pode desencadear daí.

É, mas vai ver a história de vida dele. Porque a gente já viu que tinha a dificuldade dele. Tinha um pai, que não foi pai biológico, que foi preso. Não, a mãe dele era mulher de rua. Ele queria porque queria visitar o pai no presídio, tudo isso.

Percebe-se, então, que a representação da deficiência também está a serviço de reafirmar alguns valores do grupo em questão na medida em que a deficiência do filho pode ser compreendida como a conseqüência indesejada de condutas inapropriadas dos pais. A possibilidade da deficiência serve, portanto, para reafirmar os modelos de família, de educação dos filhos, de alimentação, entre outros.

De fato as deficiências não são vistas como uma só: como se percebe, se diagnostica, as causas atribuídas, tudo isso varia em função de que tipo de deficiência que se está falando, se são físicas, ou mentais. Outro aspecto também variável é como lidar e as dificuldades impostas por cada tipo de deficiência. As professoras apresentam opiniões variadas quanto a esta questão e desenvolvem escalas com níveis de dificuldades diferentes.

É quase uma unanimidade a deficiência mental ser considerada a mais difícil, visto que a pessoa que a possui é compreendida como tendo um funcionamento completamente diferente das demais. As sensoriais também foram eleitas as mais difíceis por uma minoria, que justifica esta escolha devido a conseqüente dificuldade de comunicação. Já as deficiências físicas (motoras) são entendidas como as mais simples de lidar, visto que requerem mais adaptações estruturais do que propriamente nas estratégias de ensino.

Eu acredito, assim, que trabalhar com deficiências que sejam auditivas, ou deficiências visuais, eu acredito que sim. Até porque você tem que ter uma especialidade maior, um estudo né, você tem que ter um aprofundamento. Porque imagina, você ter que falar, ou ter que gesticular para aquela pessoa entender e você não saber dele se ele tá compreendendo e ele não se fazer entender para mim de que aquilo que foi passado foi compreendido e ele não ficou com nenhuma dúvida. Então eu acho que é complicado a deficiência auditiva e a deficiência visual.

Eu acho que a deficiência mental, eu acho que a mental também é difícil para quem não tem assim nenhum conhecimento de como lidar... talvez você não consiga. Eu acho que talvez uma motora não, seria tranqüilo, como a da menina que já estava se adaptando, né, mesmo no primeiro dia.

É interessante notar que se impõe uma enorme barreira comunicativa entre a pessoa cega ou surda e as demais. Não se pode negar que dificuldades existem e novas estratégias de comunicação precisaram ser construídas na relação com estas pessoas para que esta seja bem sucedida, mas há a possibilidade do professor estudar e se familiarizar ao menos parcialmente com uma nova língua, como a Língua Brasileira de Sinais (libras). No entanto, percebe-se que há, entre alguns professores, a fantasia da impossibilidade total de compreensão mútua e, conseqüentemente, a educação de uma criança com deficiência sensorial em sala regular se torna impossível.

Um aspecto a ser salientado é que esta concepção é compartilhada entre as poucas professoras que nunca tiveram a experiência de trabalhar com este tipo de aluno, enquanto aquelas que têm mais proximidade com eles, imediatamente contam suas experiências e estratégias razoavelmente bem sucedidas.

...baixa visão, ele desce ele sobe, ele tem dificuldade enxergar letra. Aí eu aprendi com ele que eu tenho que escrever tudo grande que é para ele poder enxergar. Até talvez um auditivo, se ele já souber ler os lábios e tal ele já pode até ter uma compreensão. Porque lá na escola tem uma de baixa visão e como é feito o trabalho? Ela escuta tudo, ela participa da aula. Agora quem escreve? A colega bota um carbono com o papel, ai a colega escreve, ai depois uma pessoa que tem, vai ajudá-la, vai transcrever, vai ler para ela, vai explicar, vai fazer a atividade junto com ela. Diante de experiências bem sucedidas com alunos com deficiências sensoriais e da concepção de que as deficiências motoras isoladas não acarretam grandes repercussões no desempenho escolar dos alunos, a nomeação destes casos como deficiência é posta em xeque. Como o aluno com deficiência é aquele que apresenta grandes limites e baixo desempenho, estas pessoas, apesar de possuírem uma falta, a qual também é definidora da deficiência, não são considerados tão “deficientes”, quanto as outras com maiores limitações.

Foi aqui que eu conheci o trabalho que é feito com alunos deficientes físicos, né, porque nesse caso aqui são físicos. Aqui são crianças ditas normais entre parênteses, né, mas que você encontra também inúmeras dificuldades como eu já falei.

Eu acho que talvez uma motora não, seria tranqüilo, como a da menina que já estava se adaptando, né, mesmo no primeiro dia. Seria mais fácil porque ai é só uma questão de ajudar, mas na questão da compreensão, da aprendizagem, se ele não tiver nenhuma deficiência, eu acredito que não.

Desta forma, vê-se que os “deficientes físicos” ainda são considerados “crianças normais” se não tiverem nenhuma deficiência na compreensão e ou na aprendizagem. A deficiência por excelência, aquela que é considerada anormalidade, é a que gera transtornos cognitivos, ou comportamentais acarretando problemas na aprendizagem. Logo, as

deficiências mentais são vistas como as deficiências mais radicais, chegando a se considerar a impossibilidade de trabalho com estas crianças em sala regular.

O QUE SERIA MAIS DIFICIL? -É DM, é um problema seriíssimo ali. Eu acho que é bem mais complicado do que uma criança que não vê, mas que tem, não sei, tem a consciência, entendeu? Tem a consciência perfeita, que tem uma deficiência, claro, que não enxerga, mas é totalmente consciente pra tudo. Porque alguém como X, por exemplo, que não tem consciência, não tem, ela não tem consciência, como é que você vai trabalhar com uma pessoa que não sabe o que está fazendo, que não sabe quem é.

O mais difícil de todos, eu acho assim, é o mental que precisa de uma pessoa ali junto com aquele aluno porque lá na escola a gente teve uma experiência assim com uma aluna com deficiência mental no ensino regular e foi um sufoco. Os alunos queriam desistir porque essa aluna, ela tumultuava a sala, ela batia nos colegas, ela xingava, ela fazia tudo. Quer dizer, a professora não sabia como lidar.

A deficiência mental é associada diretamente com o descontrole e a imprevisibilidade e os alunos que a possuem são marcados pelo não saber pleno, pela falta de consciência e pelo comportamento absurdamente inadequado. Desta forma, os alunos com déficit cognitivo e os com problemas comportamentais são postos todos numa mesma categoria, como se ambos os aspectos estivessem sempre associados, dificultando ou até impossibilitando qualquer tentativa de educação formal regular.

Estes são considerados os alunos com maior necessidade de um especialista, visto que seu funcionamento mental é dotado de peculiaridades com as quais os professores não se julgam capazes de lidar. Por isto, são estes alunos que causam maiores problemas para os professores, tanto em termos concretos em sala de aula, quanto angústias, medos e sofrimentos. Estes sentimentos serão trabalhados mais adiante, neste momento são as dificuldades concretas referidas pelos professores que serão discutidas mais detalhadamente.