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10 ESTUDO 2: RESULTADOS E DISCUSSÕES

10.1 Fase 1 Associação Livre

10.3.2 Ser ou estar “deficiente”?

Um outro aspecto que as crianças ensaiam considerar para definir a existência ou não de uma deficiência é se a característica diferenciadora é de nascença ou adquirida, permanente, ou não.

QUANDO É QUE VOCÊ DIZ QUE UMA PESSOA É DEFICIENTE E QUANDO É QUE DIZ QUE NÃO É? Porque o deficiente, ele já nasce com algum problema, já o que não é, ele nasce normal. Mas assim, fica muito tempo na televisão, muitas horas, ai fica com problema na vista. Mas o deficiente mesmo, ele já nasce com aquele problema... ENTÃO A DIFERENÇA É QUEM JÁ NASCEU COM UM PROBLEMA NO OLHO? -É, ele já nasceu com um problema.

POR EXEMPLO, VOCÊ TEM ALGUMA DEFICIÊNCIA OU NÃO TEM? Não. – POR QUE? A pessoa que tem deficiência nasce troncho. TEM DEFICIÊNCIA QUEM NASCE TRONCHO? E A PESSOA PODE FICAR DEFICIENTE, OU NÃO? -Não.-Às vezes pode, se acontecer um acidente pode.

As falas acima evidenciam que os alunos tentam justificar que uma característica só pode ser considerada deficiência se ela for de nascença, ou seja, se a pessoa “nascer troncho”. Isto diferenciaria, por exemplo, o pai de um aluno que possui problemas de vista, mas não tem deficiência, de M e W, colegas considerados deficientes visuais. No entanto, ao passo que utilizam este critério, algumas das crianças consideram que é possível alguém se tornar deficiente durante a vida, principalmente mediante um acidente.

AGORA UMA CRIANÇA QUE NÃO NASCEU DEFICIENTE ELE PODE FICAR DEFICIENTE, OU SÓ É DEFICIENTE SE NASCER? -Não. -Não. -Não. -Pode. MAS ME DIGAM UMA COISA, A PESSOA PODE NÃO TER NENHUMA DEFICIÊNCIA E SE TORNAR DEFICIENTE? -Não. -Pode. PODE? COMO? -Eu não sei não.VOCÊ ACHA QUE PODE, MAS NÃO SABE DIREITO COMO? -Pode, porque tem a pessoa que corta a perna assim. -Ela pode ter algum acidente. -Se isso aqui piorar eu vou ter que perder a perna, aí vai ficar deficiente.

Desta forma, percebe-se que diante da provocação a que são submetidas no grupo as crianças procuram uma razão para justificar a classificação de alguém como deficiente. No entanto, classificar é um exercício que elas executam no dia a dia sem precisar raciocinar muito sobre isso e sem que compartilhem definições socialmente aceitas para explicar estas classificações.

Uma forma ainda mais flexível de se pensar a deficiência é que, além de poder tornar- se deficiente, a pessoa que já o é pode deixar de sê-lo. Esta é uma concepção compartilhada por grande parte das crianças e possui importantes repercussões práticas.

E A PESSOA DEFICIENTE, PODE DEIXAR DE SER DEFICIENTE? -Não. -E TU, ACHA QUE NÃO TAMBÉM, OU TU ACHA QUE PODE? -Eu acho que pode. - COMO? -Pode ajeitar ele, operar, fazer alguma coisa. Eu acho que pode.

PODE DEIXAR DE SER? COMO? -Se ele for operado. Assim, o que não tem perna não pode não, porque ele nunca vai ter. -POR EXEMPLO, SE A PESSOA NÃO TEM UMA PERNA, SE ELE COLOCAR UMA PERNA MECÂNICA... ELE VAI DEIXAR DE SER OU NÃO? -Não. -Também acho que não. -Não, mas vai ajudar ele a andar sim. Vai ajudar ele a agüentar o peso, porque com uma perna ele não vai agüentar o peso todinho.

MAS SE VOCÊ COLOCAR UMA PERNA DESSAS PERNAS MECÂNICAS, ...VOCÊ VAI CONTINUAR SENDO DEFICIENTE OU VOCÊ DEIXA DE SER DEFICIENTE?-Eu vou deixar de ser deficiente porque eu vou ter uma parte nova no meu corpo. -E TU A, ACHA QUE A PESSOA DEIXA DE SER DEFICIENTE OU CONTINUA A SER DEFICIENTE?-Eu acho que ela vai continuar a ser deficiente, mas eu acho que incomoda aquele negócio na perna.

Alguns dos alunos não consideram possível alguém deixar de ter uma deficiência, outros julgam que a pessoa, ao fazer uma cirurgia e “ajeitar” o que está faltando ou está errado no corpo, pode deixar de ser deficiente, no entanto, o uso de próteses e aparelhos não

modificaria a situação de deficiência. Já um terceiro grupo considera que o uso de próteses é suficiente para que a pessoa deixe de ter uma deficiência.

Este último caso aponta para uma concepção baseada na funcionalidade, na forma como a pessoa vive e na idéia da deficiência como uma limitação ou incapacidade. Caso a pessoa passe a fazer tudo o que as demais fazem e as características dela deixem de impor limitações às suas atividades, ela deixa de ter uma deficiência. Além disso, destaca-se também a reposição de algo físico que estava faltando, como uma perna.

Já a noção de que apenas com uma cirurgia ou uma mudança permanente no estado da pessoa ela deixa de ser deficiente aponta para uma concepção mais baseada na expressão física da deficiência do que na sua funcionalidade. Mesmo que alguém consiga andar com a perna mecânica, ainda vai continuar lhe faltando uma perna caso a prótese seja retirada momentaneamente, assim como um surdo continua sem ouvir na ausência de aparelhos. No entanto o aspecto de funcionalidade não deixa de existir na medida em que se aponta para as imperfeições dos aparelhos. O surdo escuta, mas só se falar alto e a pessoa anda com a prótese, mas sente-se incomodada.

AGORA, POR EXEMPLO, SE UMA PESSOA É SURDA E ELA BOTA UM APARELHOSINHO E ELA CONSEGUE OUVIR COM ESSE APARELHO... -Ela consegue ouvir, mas tem que falar alto. -MAS ELA CONTINUA A SER DEFICIENTE, OU ELA DEIXA DE SER? -Deficiente ainda. -Ela ainda fica surda. Por fim, ainda há aqueles que consideram a deficiência algo definitivo e não vêm nenhuma possibilidade da pessoa modificar seu estado, ou é ou não é. Esta é uma concepção ainda compartilhada por muitos dos alunos.

E SE UMA PESSOA É DEFICIENTE ELE PODE DEIXAR DE SER? -Não. -Não. - Não. PODE NÃO? ENTÃO UMA PESSOA QUE É DEFICIENTE AGORA, ELA VAI SER DEFICIENTE PARA SEMPRE? -Vai.

A maioria dos alunos também compartilha uma outra concepção de deficiência que, segundo a lógica formal, é incompatível com esta noção, apesar de conviver com ela: a deficiência como um estado. Para uma grande parte dos alunos, a pessoa pode ficar deficiente momentaneamente. Neste caso, o conceito de deficiência baseia-se na funcionalidade das partes do corpo, se existe algo que não está funcionando normalmente, logo a pessoa encontra-se momentaneamente deficiente.

PARTE O OSSO DA PERNA, AI A PESSOA BOTA UM GESSO... AI ELA VAI TER QUE FICAR ANDANDO COM MULETA, OU NÃO VAI CONSEGUIR ANDAR, AI NESSE TEMPO ESSA PESSOA FICA DEFICIENTE OU NÃO FICA? -Fica. -Fica. -Eu acho que fica. Eu acho não, eu tenho certeza.MAS POR QUE ELA FICA DEFICIENTE? Porque assim, por exemplo, eu quebrei essa mão aqui e eu não conseguia escrever, eu não podia comer sozinha, tinha que ter a ajuda de alguém para comer, eu não conseguia pegar nada com essa mão.

E TU ACHA QUE QUANDO UMA PESSOA QUEBRA A PERNA ELA FICA DEFICIENTE TAMBÉM? -Fica. –POR QUE? -Ela fica igual a um deficiente físico. MAS ELE VAI FICAR SÓ ENQUANTO ELE TÁ COM O BRAÇO ENGESSADO, OU DEPOIS? -Só enquanto ele ta com o braço engessado... –POR QUE TU ACHA QUE ELE FICA DEFICIENTE? -Porque ele ta com o braço engessado. -Ele não vai poder pegar as coisas como antigamente. A mesma coisa fui eu, quebrei o braço e ficou enfaixado, depois voltei pro normal.

È interessante notar que este aspecto se evidenciou nos três momentos de coleta, nos quais as crianças, além de evocarem e desenharem o membro quebrado, elas se referiam a algumas pessoas como “estando” e não “sendo” deficientes. Este é um conteúdo importante na medida em que além de evidenciar um critério de definição da deficiência, também aponta para uma outra forma de lidar com o fenômeno, bastante diferente dos adultos.

Enquanto as representações dos adultos atuam em função da defesa identitária de modo a manter barreiras simbólicas e concretas entre os diferentes grupos, as crianças acabam permitindo uma maior mistura entre o eu e o outro. Esta possibilidade de confusão eu-outro deve-se à flexibilidade inerente ao termo “estar com alguma deficiência”, posto que isto se coloca como uma possibilidade, ou até uma vivência, presente na vida de todos, diminuindo assim as distâncias entre aqueles considerados com e sem deficiência. No momento em que eu considero que já estive deficiente, ou que posso ficar deficiente a qualquer momento, eu acabo diluindo as barreiras entre os grupos dos com e sem deficiência .

No entanto, uma certa diferenciação se mantém quando se considera que há níveis de deficiência. Alguns são um “pouquinho” deficientes, enquanto outros são muito, a depender da gravidade da falta ou falha no corpo e das repercussões que as características físicas assumem em termos de impedição na vida da pessoa que a possui.

ENTÃO TEM PESSOAS QUE SÃO MAIS DEFICIENTES QUE OUTRAS MENOS DEFICIENTES? Eu acho que tem uns que ficam piores que os outros. E QUANDO É MAIS DEFICIENTE, QUANDO UM É PIOR QUE O OUTRO? Porque é mais grave, né tia... É como M, ele faz um negócio que W não faz. -ENTÃO W É PIOR QUE M? -É. -ELE É MAIS DEFICIENTE, POR QUÊ? POR QUE UM ENXERGA MENOS QUE O OUTRO, OU POR QUE UM CONSEGUE FAZER MENOS COISAS QUE O OUTRO? -Um faz menos coisas que o outro.

Desta forma, dois colegas com o mesmo tipo de deficiência podem ser considerados mais ou menos deficientes por aquilo que são capazes ou não de fazer em seus cotidianos, independente do nível de cegueira ou de surdez que possuam. Isto mais uma vez aponta para uma concepção de deficiência como uma característica limitante ou impeditiva de se realizar algo.

Esta forma de pensar a deficiência se tornou evidente no momento do grupo em que se discutiu as estórias criadas conjuntamente. Foi quase unanimidade a afirmação de que crianças com e sem deficiência possuem rotinas diferentes porque as primeiras não podem fazer uma série de atividades desenvolvidas pelas segundas. Como, então, foram estas estórias?