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2.3 ASPECTOS RELEVANTES DE TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.3.6 Deveres fundamentais

Os deveres fundamentais são imposições de conduta, previstas constitucionalmente de modo explícito ou implícito, com base em valores coletivos ou comunitários, que apresentam especial significado para a sociedade. Os direitos fundamentais configuram projeções particulares da liberdade, da igualdade e da fraternidade ou solidariedade. Os deveres fundamentais são manifestações próprias da responsabilidade.149

Os deveres fundamentais hão de ser tratados como categoria distinta dos direitos fundamentais. Não existe correlação entre direitos e deveres fundamentais. Os deveres fundamentais não são o aspecto passivo dos direitos fundamentais; não se trata dos deveres correspondentes aos direitos fundamentais. A esse respeito, José Joaquim Gomes Canotilho destaca: “Vale aqui o princípio da assinalagmaticidade ou da assimetria entre direitos e deveres fundamentais, entendendo-se mesmo ser a assimetria entre direitos e deveres uma condição necessária de um ‘estado de liberdade’”.150

Do mesmo modo, apesar da proximidade entre ambas as ideias, não há como considerar os deveres fundamentais como integrados à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, exatamente porque se cuida de conceitos autônomos, embora relacionados por fundamentos similares.151

assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo n° 639.337/SP. Agravente: Município de São Paulo. Agravado: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 23 ago. 2011. Diário da Justiça Eletrônico, 14 set. 2011).

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Ao tratar dos deveres fundamentais, José Casalta Nabais os relaciona à responsabilidade, ressaltando que “há que ter em conta a concepção de homem que subjaz às actuais constituições, segundo a qual ele não é um mero indivíduo isolado ou solitário, mas sim uma pessoa solidária em termos sociais, constituindo precisamente esta referência e vinculação sociais do indivíduo – que faz deste um ser ao mesmo tempo livre e responsável – a base do entendimento da ordem constitucional assente no princípio da repartição ou da liberdade como uma ordem simultânea e necessariamente de liberdade e de responsabilidade, ou seja, uma ordem de liberdade limitada pela responsabilidade” (NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão do Estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009. p. 31).

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 533.

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A dimensão objetiva dos direitos fundamentais acentua seu caráter axiológico, ressaltando a ideia de que os direitos fundamentais são valores que o Estado e a sociedade devem realizar, concretizar e promover. Por isso, ela apresentaria estreita relação com os deveres fundamentais. Sobre o assunto, José Carlos Vieira de Andrade aduz: “A concepção dos deveres fundamentais é geralmente apresentada em conexão com a dimensão objectiva dos direitos fundamentais, por se entender estarem em causa em ambos os casos a moderação, a correção ou a superação das teses emancipatórias do liberalismo individualista, quer para a defesa da democracia, promovendo a participação activa dos cidadãos na esfera pública, quer em favor de um empenho solidário de todos na transformação das estructuras sociais” (ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 150). No entanto, o tratamento diferenciado dos deveres fundamentais afasta sua consideração como um simples aspecto, ainda que objetivo, dos direitos fundamentais.

A principal classificação dos deveres fundamentais os divide em deveres autônomos, de um lado, e deveres conexos a direitos, de outro.152 Os deveres fundamentais autônomos são os estabelecidos pelas normas constitucionais independentemente de qualquer direito. Apontam-se como deveres fundamentais autônomos, por exemplo, o dever fundamental de pagar tributos, decorrente do sistema tributário disciplinado nos artigos 145 a 162 da Constituição de 1988, e o dever fundamental de prestação de serviço militar, previsto no artigo 143 do texto constitucional. Os deveres fundamentais conexos a direitos são os estatídos pelas normas constitucionais em associação com direitos. Indicam-se como deveres fundamentais conexos, por exemplo, a responsabilidade pela segurança pública, associada ao direito à segurança pública, conforme o artigo 144 da Constituição de 1988, o dever de educação a cargo da família, associado ao direito à educação, segundo o artigo 205 do texto constitucional, bem como o dever de defesa e preservação do ambiente, associado ao direito ao ambiente, consoante o artigo 225 da Constituição de 1988.153

Os deveres fundamentais são classificados, ainda, de acordo com outros critérios. Conforme sejam ou não expressamente previstos no texto constitucional, existem deveres fundamentais explícitos e implícitos. De acordo com o tipo de conduta exigida, há deveres fundamentais defensivos ou negativos, que impõem uma abstenção, e deveres fundamentais prestacionais ou positivos, que impõem uma prestação. Consoante seu conteúdo, existem deveres fundamentais cívico-políticos, de um lado, e sociais, econômicos e culturais, de outro. Segundo o sujeito passivo, há deveres fundamentais individuais e coletivos. Tais classificações, contudo, ostentam menor relevância.

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Sobre a classificação em referência, Ingo Wolfgang Sarlet aduz: “Uma primeira distinção entre os diversos tipos de deveres costuma ser tratada levando em conta a existência de deveres conexos ou correlatos (aos direitos) e deveres autônomos, cuja diferença reside justamente no fato de que os últimos não estão relacionados diretamente à conformação de nenhum direito subjetivo, ao passo que os primeiros tomam forma a partir do direito fundamental a que estão atrelados materialmente” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 450). José Carlos Vieira de Andrade designa os deveres conexos a direitos como “deveres fundamentais associados a direitos” (ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2009. p. 151).

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O Supremo Tribunal Federal, ao analisar a constitucionalidade de alterações no Código Florestal que diziam respeito à realização de atividades em áreas de preservação permanente, tratou do dever fundamental de defesa do ambiente: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.540/DF. Requerente: Procurador-Geral da República. Requerido: Presidente da República. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 01 set. 2005. Diário da Justiça da União, 03 fev. 2006, p. 14).

As normas que preveem deveres fundamentais não são plenamente eficazes. Os deveres fundamentais, em regra, não podem ser imediatamente exigíveis, com base apenas no texto constitucional. De acordo com José Casalta Nabais, “os deveres fundamentais não têm o seu conteúdo concretizado, ou totalmente concretizado, na constituição ou, mesmo que o tenham, não são diretamente aplicáveis”.154 Cabe ao legislador disciplinar as condições e o modo de cumprimento dos deveres fundamentais, bem como prever as sanções para o caso de sua inobservância.155 Sem tais elementos não há como reclamar o adimplemento ou a satisfação dos deveres fundamentais.

No entanto, as normas constitucionais de deveres fundamentais produzem alguns efeitos diretos e imediatos. Elas revogam a legislação anterior incompatível, servem de parâmetro para aferição da constitucionalidade de leis supervenientes, influenciam a concretização das demais normas constitucionais e das normas infraconstitucionais, bem como representam fundamento para restrições a direitos fundamentais. Além disso, alguns deveres fundamentais podem ser considerados como exigíveis independentemente de legislação integradora, como o dever de assistência mútua entre pais e filhos, previsto no artigo 229 da Constituição de 1988. Os princípios da força normativa da constituição e da máxima efetividade impõem que se extraiam efeitos ótimos das normas de deveres fundamentais.

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NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão do Estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009. p. 149.

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A ausência de previsão de sanção nas normas constitucionais de deveres fundamentais enseja questionamento sobre a possibilidade de se falar, de fato, na existência de deveres jurídicos no caso. Realmente, a teoria jurídica positivista tradicional considera que somente se pode cogitar em dever quando a conduta oposta à prescrita é pressuposto de uma sanção. A propósito, Kelsen afirma: “Finalmente, uma ordem social pode – e este é o caso da ordem jurídica – prescrever uma determinada conduta precisamente pelo fato de ligar à conduta oposta uma desvantagem, como a privação dos bens acima referidos, ou seja, uma pena no sentido mais amplo da palavra. Desta forma, uma determinada conduta apenas pode ser considerada, no sentido dessa ordem social, como prescrita – ou seja, na hipótese de uma ordem jurídica, como juridicamente prescrita –, na medida em que a conduta oposta é pressuposto de uma sanção (no sentido estrito)” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 26). Pode-se responder a essa objeção afirmando que as normas constitucionais em questão impõem ao legislador que concretize os deveres fundamentais, cominando sanções para seu descumprimento; a inobservância do dever de legislar pode conduzir inclusive a declaração de inconstitucionalidade por omissão. Ademais, os deveres fundamentais podem ser considerados, pelo menos, como deveres imperfeitos, que não deixam de ser jurídicos, uma vez que não há relação biunívoca entre dever e sanção, como defende Eerik Lagerspetz: “Em todo sistema jurídico constitucional existem alguns deveres imperfeitos. São parte do sistema; podem ter fontes jurídicas e podem ser modificados por meios legislativos. Por esta razão, não são simplesmente ‘moralidade positiva’ como diria Austin. Sua existência mostra que as obrigações jurídicas não podem ser definidas em termos de sanções institucionalizadas”. No original: “En todo sistema jurídico constitucional hay algunos deberes jurídicos imperfectos. Son parte del sistema; pueden tener fuentes jurídicas y pueden ser modificados por médios legislativos. Por esta razón, no son simplesmente ‘moralidad positiva’ como diría Austin. Su existência muestra que las obligaciones jurídicas no pueden ser definidas em términos de sanciones institucionalizadas” (LAGERSPETZ, Eerik. Normas y sanciones. In: AARNIO, Aulis; GARZÓN VALDÉS, Ernesto; UUSITALO, Jyrki (Comp.). La normatividad del derecho. Barcelona: Gedisa, 1997. p. 60).

Assim, esclarecida a estreita relação entre constitucionalismo, Estado de direito e direitos fundamentais, destacadas as especificidades da hermenêutica constitucional e da concretização das normas de direitos fundamentais, bem como explicitados aspectos relevantes da teoria dos direitos fundamentais, têm-se por consignados os pressupostos teórico-conceituais necessários ao tratamento do tema da investigação criminal e da vedação ao anonimato no sistema jurídico brasileiro. Cumpre, em seguida, tratar especificamente da investigação criminal.

3 A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E SEUS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS

Um adequado entendimento da relação entre a investigação criminal e a vedação ao anonimato no sistema jurídico brasileiro requer uma noção sobre a atividade investigatória do Estado em geral. Além disso, mostra-se necessária uma compreensão da investigação criminal como específica atividade estatal investigatória. Como se adota a perspectiva do sistema jurídico brasileiro, também é indispensável expor os contornos da investigação criminal no Brasil. Revela-se essencial, ainda, apontar e explicar os fundamentos constitucionais da investigação criminal no sistema jurídico brasileiro.