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Evolução histórica do direito de petição

4.3 O DIREITO DE PETIÇÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

4.3.1 Evolução histórica do direito de petição

Na Idade Antiga, como não havia surgido a ideia de direitos fundamentais, não existiu, rigorosamente, um direito de petição. Não se reconhecia juridicamente a possibilidade de as pessoas se dirigirem a autoridades estatais formulando pedidos de interesse particular ou

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Diante de situação em que se discutia a validade de o Tribunal de Contas da União realizar investigação administrativa de fatos comunicados por meio de representação anônima, o Supremo Tribunal Federal decidiu: “Vê-se, pois, não obstante o caráter apócrifo da denúncia, que, em se tratando de comunicação de fatos revestidos de aparente ilicitude, existiria possibilidade de o E. Tribunal de Contas da União adotar medidas destinadas a esclarecer a idoneidade das alegações de irregularidades que lhe foram transmitidas, em atendimento ao dever estatal de fazer prevalecer – consideradas razões de interesse público – a observância do postulado ético-jurídico da moralidade administrativa e da legalidade” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão monocrática. Mandado de Segurança n° 24.369/DF. Impetrante: Conselho Federal de Farmácia. Impetrado: Tribunal de Contas da União. Relator: Min: Celso de Mello. Brasília, 10 out. 2002. Diário da Justiça da União, 16 out. 2002, p. 24).

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O Supremo Tribunal Federal admite a validade da prisão em flagrante realizada pela polícia a partir de informações fornecidas por pessoa não identificada: “Não é flagrante forjado aquele resultante de diligências policiais após denúncia anônima sobre tráfico de entorpecentes” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Habeas Corpus n° 74.195/SP. Paciente: Antônio Carlos Rosa. Impetrante: Antônio Carlos Rosa. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relator: Min. Sydney Sanches. Brasília, 13 ago. 1996. Diário da Justiça da União, 13 set. 1996, p. 33235).

geral. Apenas na Grécia, em especial na democracia ateniense, pode-se identificar o exercício de uma faculdade assemelhada ao direito de petição. A isagoria, uma das bases do regime democrático grego, possibilitava que os cidadãos, ao se manifestarem publicamente nas reuniões, participando da vida política, elaborassem pleitos relativos a assuntos de interesse comunitário.357

Na Idade Média, também não houve a consagração explícita de um direito de petição, até mesmo em razão da ausência de uma concepção firmada de direitos fundamentais. No entanto, precisamente na era medieval são identificadas as origens do direito de as pessoas endereçarem pedidos às autoridades públicas. Nos séculos VI e VII já se observa o exercício costumeiro pelos súditos da faculdade de solicitar graças aos monarcas.358 Essa faculdade, todavia, era bastante limitada, pois os reis normalmente só dispensavam atenção aos pleitos quando estes coincidiam com seus interesses e lhes traziam algum benefício.359 A previsão formal do direito de se dirigir aos monarcas formulando pedidos ocorreu, pela primeira vez, na Inglaterra. A Magna Carta, de 1215, através da qual o Rei João Sem Terra assumiu uma série de compromissos em favor dos senhores feudais e do clero, em seu artigo 40, estabelecia: “O direito de qualquer pessoa a obter justiça não será por nós vendido, recusado ou postergado”. Na época, cabia exatamente aos monarcas corrigir injustiças.360

Na Idade Moderna, na Inglaterra, o Parlamento fez uso da faculdade de postular ao rei por meio da Petition of Rights, de 1628, que foi aprovada pelo monarca. Através desse relevante documento da tradicional evolução constitucional inglesa se impôs ao Rei Carlos I o reconhecimento de certas liberdades públicas, reafirmando-se direitos anteriormente previstos em outros textos, como a Magna Carta. A consagração específica do direito de petição em um diploma normativo se deu, pioneiramente, na Inglaterra, no bojo do Bill of Rights, de 1688. Tal declaração de direitos, em seu artigo 5°, estipulava que “os súditos têm o direito de petição ao rei, sendo ilegais todas as prisões e perseguições contra o exercício desse direito”. O direito de petição serviu, na época, principalmente, para formulação de postulações estamentais e para a defesa de interesses particulares. O Parlamento inglês passou a ser

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BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de petição: garantia constitucional. São Paulo: Método, 2004. p. 75.

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PASTOR, Bartolomeu Colom. El derecho de petición. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 17.

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MARK, Gregory A. The vestigial constitution: the history and significance of the right to petition. In: RUSSEL, Margaret M. (Ed.). The First Amendment, freedom of assembly and petition: its constitutional history and the contemporary debate. New York: Prometheus, 2010. p. 51.

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Sobre o artigo 40 da Magna Carta, Fábio Konder Comparato aduz: “A partir da Magna Carta reconhece-se, portanto, que o rei tem o poder-dever de fazer justiça, assim que solicitado pelos súditos” (COMPARATO. Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 77). Tal dispositivo é considerado como a fonte comum do direito de petição e do direito de ação ou de acesso à justiça.

utilizado como instrumento para veiculação dos pedidos, transformados em projetos de lei e dirigidos aos monarcas.361

Na Idade Contemporânea, com o constitucionalismo e o Estado de direito, a faculdade de dirigir pedidos ao poder público consolidou-se como direito fundamental. No entanto, nem a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, de 1776, no âmbito da Revolução Americana, nem a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, no campo da Revolução Francesa, referiram-se ao direito de petição.362 Em 1791, contudo, a Primeira Emenda à Constituição norte-americana de 1787 previu o direito do povo de “dirigir ao governo petições para a reparação de seus agravos”. A Constituição francesa de 1791, por meio do artigo 3° do Título Primeiro, estabeleceu que “os cidadãos têm a liberdade de endereçar às autoridades constituídas petições assinadas individualmente”. Em momento posterior, o direito de petição difundiu-se, passando as constituições dos diversos países a prevê-lo como direito fundamental.

No plano internacional, o direito de petição não se encontra previsto expressamente como direito humano pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. No entanto, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, também de 1948, em seu artigo 24, estabelece: “Toda pessoa tem o direito de apresentar petições respeitosas a qualquer autoridade competente, quer por motivo de interesse geral, quer de interesse particular, assim como de obter uma solução rápida”. A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950, não consagra claramente o direito de petição. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, também não prevê de modo explícito o direito de petição como direito humano. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, igualmente, não aclama de forma específica o direito de petição.

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PASTOR, Bartolomeu Colom. El derecho de petición. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 17-18.

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Artur Cortez Bonifácio entende que o direito de petição foi implicitamente previsto tanto pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão como pela Declaração de Direitos do Estado da Virgínia. Em relação ao primeiro documento, o autor ressalta: “A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26/08/1789, corolário da Revolução Francesa, não acomodou diretamente o direito de petição. Nada obstante, na confluência dos ideais de felicidade (preâmbulo), resistência à opressão (art. 2°), legalidade (arts. 4° e 5°), liberdade de opinião (art. 10) e expressão (art. 11) e do direito de fiscalização da administração pública e de pedir contas de sua administração (arts. 14 e 15), pode-se extrair de forma implícita a configuração deste direito”. Quanto ao segundo, salienta: “Na Declaração de Virgínia, de 12/06/1776, o instituto está subentendido nas entrelinhas, por três de suas características fundamentais: o ideal democrático à atuação dos poderes públicos; a condução da coisa pública de forma transparente e a participação popular” (BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de petição: garantia constitucional. São Paulo: Método, 2004. p. 77, 80).

A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981, não se refere diretamente ao direito de petição como direito humano.363

No Brasil, o direito de petição tem sido previsto como direito fundamental em todas as constituições. A Constituição de 1824, em seu artigo 179, inciso XXX, estabelecia que todo o cidadão poderia apresentar por escrito ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo reclamações, queixas ou petições, bem como expor qualquer infração às normas constitucionais, requerendo perante a autoridade competente a efetiva responsabilidade dos infratores. A Constituição de 1891, em seu artigo 72, § 9°, preceituava: “É permitido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos Poderes Públicos, denunciar abusos das autoridades e promover a responsabilidade de culpados”. A Constituição de 1934, no artigo 113, item 10, adotava a mesma redação, relativa ao direito de petição, do texto constitucional anterior. A Constituição de 1937, em seu artigo 122, item 7, assegurava “o direito de representação ou petição perante as autoridades, em defesa de direitos ou do interesse geral”. A Constituição de 1946, no artigo 141, § 37, estatuía: “É assegurado a quem quer que seja o direito de representar, mediante petição dirigida aos Poderes Públicos, contra abusos de autoridades, e promover a responsabilidade delas”. A Constituição de 1967, em seu artigo 150, § 30, estabelecia o seguinte: “É assegurado a qualquer pessoa o direito de representação e de petição aos Poderes Públicos, em defesa de direito ou contra abusos de autoridade”. A Emenda Constitucional de 1969 não trouxe alterações quanto ao assunto; no entanto, os atos institucionais editados na época pelo regime militar autorizavam o estabelecimento de restrições a quaisquer posições jurídicas, tendo havido consideráveis cerceamentos à defesa de direitos e à impugnação de abusos de autoridade. A Constituição de 1988, atualmente vigente, em seu artigo 5°, inciso XXXIV, alínea a, assegura a todos, independentemente do pagamento de taxas, “o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”.

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Embora a maioria dos documentos internacionais não consagre expressamente o direito de petição como direito humano, esses textos normativos, em regra, preveem o direito de indivíduos formularem petições a tribunais internacionais, conselhos, comitês ou comissões de acompanhamento relatando violações a seus dispositivos. Isso constitui uma decorrência da consideração do indivíduo como sujeito de direito internacional, como ressalta Antônio Augusto Cançado Trindade: “O direito de petição individual, mediante o qual é assegurado ao indivíduo o acesso direto à justiça em nível internacional, é uma conquista definitiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos. É da própria essência da proteção internacional dos direitos humanos a contraposição entre os indivíduos demandantes e os Estados demandados em casos de supostas violações dos direitos protegidos. Foi precisamente neste contexto de proteção que se operou o resgate histórico da posição do ser humano como sujeito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dotado de plena capacidade processual internacional” (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A personalidade e capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito do direito internacional. In: Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. Fortaleza: IBDH, 2002. a. 3. v. 3. n. 3. p. 38-39).

O direito de petição como direito fundamental assumiu, ao longo da história, dois aspectos, um individual e outro público. Em seu aspecto individual, de caráter prevalentemente subjetivo, o direito de petição propicia a defesa de interesses pessoais. Em seu aspecto público, de feitio predominantemente objetivo, esse direito fundamental enseja a participação na formação da vontade estatal, mediante colaboração para a tutela de interesses coletivos ou comunitários.364

Analisada a evolução histórica do direito de petição, cumpre formular seu conceito. Revela-se essencial, também, identificar o âmbito de proteção de tal direito fundamental.